Novas regras para Ordens Profissionais: Só Marcelo e Constitucional podem decidir
As novas regras das ordens profissionais foram aprovadas na Parlamento. A vozes contra apontam baterias para Marcelo: o veto com a fiscalização preventiva da constitucionalidade podem ser a solução.
O projeto de lei relativo às ordens profissionais, que altera questões como as condições de acesso a algumas profissões (advogado, contabilista ou médico), introduz estágios profissionais remunerados e cria uma entidade externa para fiscalizar os profissionais, acabou mesmo por ser aprovado pelo Parlamento, a 22 de dezembro. Alterações que geraram polémica até ao fim, com PSD e PCP a insistirem nas críticas ao texto em declarações de voto orais no final das votações.
E as vozes contra não se ficam por aqui. No caso da Ordem dos Advogados — que conta com cerca de 35 mil advogados inscritos e é uma das associações públicas profissionais mais antigas (criada em 1927) — o assunto foi denominador comum nos discursos dos sete candidatos a bastonário para as eleições para o cargo que, a 15 de dezembro, elegeram Fernanda de Almeida Pinheiro como líder da classe. Nos últimos dias, multiplicaram-se apelos para travar a entrada em vigor deste diploma, criaram-se grupos de Facebook com o mesmo propósito e apelou-se ao próprio Marcelo Rebelo de Sousa.
Porque, agora, o destino deste diploma está nas mãos do Chefe de Estado — também ele advogado e professor de direito — com um possível veto e pedido de análise de fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei, a enviar ao Tribunal Constitucional.
Porém, o diploma não surge ‘da cabeça’ da maioria absoluta do PS de António Costa. Surge, sim, na sequência de inúmeros alertas da Comissão Europeia e da OCDE relativamente ao facto de em Portugal existirem demasiadas restrições no acesso às atividades profissionais, prejudiciais à nossa atividade económica. Alertas que se intensificaram com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que trouxe de novo a questão da desregulamentação das ordens profissionais, incluindo a sua fiscalização por entidades exteriores, também em matéria disciplinar, e o fim do acesso reservado da atividade a profissionais inscritos nas mesmas, como médicos, advogados, engenheiros, economistas, psicólogos, contabilistas, nutricionistas ou arquitetos. Portugal comprometeu-se junto de Bruxelas que a lei relativa às profissões regulamentadas entraria em vigor até ao quarto trimestre deste ano. É um dos marcos que Portugal tem de cumprir para ter acesso ao terceiro cheque do PRR de 2,4 mil milhões de euros.
Segundo dados do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), existem atualmente em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem das Assistentes Sociais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais.
Viola-se o artigo 27.º, “visto que não é possível assegurar o sigilo profissional ao permitir a coexistência de profissionais com deveres de denúncia na mesma organização em que há profissionais que têm de assegurar o sigilo”.
No texto final foram introduzidas alterações como precisões sobre as taxas cobradas durante o estágio e a possibilidade de serem reduzidas. A duração dos estágios fixou-se em 12 meses, podendo ser maior em casos excecionais. Outra das alterações introduzidas foi a aprovação da existência de um órgão disciplinar (não previsto na anterior lei-quadro), que prevê a fiscalização sobre a atuação dos membros das ordens profissionais.
Outra das questões polémicas é a de introduzir as chamadas sociedades multidisciplinares. Uma questão que poderá levantar problemas na advocacia, uma vez que a profissão de advogado é dificilmente compatível com outras profissões, nomeadamente com os contabilistas certificados. Basta ver que os contabilistas certificados não têm sigilo profissional, são obrigados a reportar à Autoridade Tributária, enquanto os advogados têm sigilo profissional.
O ECO/Advocatus quis saber se, efetivamente, faz sentido falar de uma provável inconstitucionalidade do diploma. E a resposta — segundo os especialistas contactados — é ûnanime: sim.
Jorge Bacelar Gouveia, constitucionalista e também ele membro da ainda estrutura das Ordem dos Advogados responde: “espero bem que o decreto sobre as ordens profissionais aprovado pela AR seja objeto de veto por parte do Presidente da República, havendo fortes razões políticas e jurídicas para travar este processo legislativo”. E que razões então? Do ponto de vista político, “o reconhecimento de sociedades multidisciplinares implicará, na prática, a destruição da identidade da advocacia e dos atos próprios dos advogados, cujo respeito, neste momento, já tem sido pouco fiscalizado, e claro que os outros profissionais que lhe “roubam” o campo de intervenção agradecem, como sucede com alguns contabilistas e solicitadores”, diz o advogado. “Do ponto de vista jurídico, além da contradição de haver uma lei que protege uma profissão permitir que a mesma se “misture” com outras profissões, sendo certo que a Lei-Quadro, prevista na CRP, só se justifica na defesa dos seus interesses próprios, há uma óbvia inconstitucionalidade na desfiguração da especialização funcional da advocacia com a criação de sociedades multidisciplinares que até podem ser geridas por pessoas externas a tais profissões. Não se esqueça também que o seu estatuto de agente da justiça está previsto no art. 208º da CRP, este conferindo-lhe imunidades e garantias próprias de substancialidade profissional como se deve lembrar finalmente que aquelas soluções suscitam dúvidas de constitucionalidade se se considerar o direito à escolha de profissão – e o seu subsequente exercício com uma identidade funcional – que está previsto no art. 47º, nº 1, da CRP, sendo mesmo um crime constante no Código Penal a usurpação de funções”.
Do ponto de vista jurídico, além da contradição de haver uma lei que protege uma profissão permitir que a mesma se “misture” com outras profissões, sendo certo que a Lei-Quadro, prevista na CRP, só se justifica na defesa dos seus interesses próprios, há uma óbvia inconstitucionalidade na desfiguração da especialização funcional da advocacia com a criação de sociedades multidisciplinares que até podem ser geridas por pessoas externas a tais profissões”
Ana Sofia Sá Pereira, advogada e uma das vozes ativas contra este diploma, defende que “a representação e a defesa dos interesses gerais da profissão (prevista na nova lei) viola o fundamento constitucional das ordens profissionais (267.º, n.º 4 da CRP), sendo que no nosso ordenamento jurídico não é esta a configuração das ordens profissionais. Porque as Ordens profissionais servem o escopo de defender o interesse público de profissionais que não podem ser exercidas e/ou acedidas como qualquer profissão, uma vez que têm especificidades técnicas, científicas e deontológicas”.
Na questão dos estágios remunerados, do que sob o ponto de vista constitucional, “vai constituir a maior barreira artificial à liberdade de exercício de uma profissão (o que também é uma liberdade fundamental e nessa medida só pode ser limitada de acordo com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade). No caso concreto da advocacia, se ainda não está resolvido o problema dos advogados e das advogadas que não podem fazer face às despesas mensais com a CPAS, é de facilidade palmar perceber que os putativos patronos não conseguirão custear os estágios, adicionalmente às despesas com o exercício da profissão. Mas tal também só poderá ser imposto se o estagiário em causa estiver habilitado a praticar atos próprios da profissão de relevo, o que implica alterar o tipo de formação ministrada pela Ordem e, nessa medida, está-se a violar os artigos 13.º e 18.º, ambos da CRP”
Do ponto de vista orgânico, a advogada relembra ainda que “as alterações introduzidas violam também o artigo 267.º, n.º 4 da CRP, flagrantemente, pela obrigatoriedade da remuneração do provedor dos destinatários dos serviços e, sobretudo, pela abertura aos não associados da matéria disciplinar. .
Esta alteração da matéria disciplinar põe tudo em causa, porque põe em causa os fundamentos do Estado de Direito Democrático. No caso concreto da Advocacia – considerando que é a única profissão com consagração constitucional – a questão adquire fundo de maior gravidade, por frontal violação ao artigo 208.º da CRP (preceito da Lei Fundamental que rege da forma seguinte: “Patrocínio forense – A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça).
José Luís Moreira da Silva, presidente da Associação das Sociedades de Advogados em Portugal (ASAP) e sócio da SRS Legal, admite que esta nova lei “pode pôr em causa as imunidades dos advogados, na medida em que o poder disciplinar deixa de estar auto-regulado e passa a ser hétero-regulado, por a maioria dos membros que exercem a função disciplinar dos advogados não são advogados. Será que isso pode pôr em causa a imunidade dos advogados? Em abstrato é difícil dizer, penso que só face a casos concretos se poderá ver se as imunidades previstas na lei para os advogados (principalmente os constantes dos artigos 66.º e seguintes do Estatuto da Ordem dos Advogados) são violadas – nesse caso e se o forem há inconstitucionalidade no caso concreto”.
A inconstitucionalidade pode ser, ao invés, sustentada pela “eventual não conformidade com o artigo 267.º, n.º 4 da Constituição em que as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos”. O advogado relembra que esta norma, introduzida em 1997, “vem garantir o respeito pela auto-organização das associações publicas, incluindo as profissionais, o que poderá estar posto em causa pela nova lei, ao impor membros não eleitos pelos profissionais de cada Ordem, que têm de escolher membros fora da classe profissional. Tenho muitas dúvidas se não se esta a violar esta norma da Constituição, ao poder por em causa o respeito dos membros e a formação democrática dos órgãos”.
Esta nova lei “pode pôr em causa as imunidades dos advogados, na medida em que o poder disciplinar deixa de estar auto-regulado e passa a ser hétero-regulado, por a maioria dos membros que exercem a função disciplinar dos advogados não são advogados”.
Ana Sofia Sá Pereira admite ainda que — no que toca à questão das sociedades multidisciplinares – viola-se o artigo 27.º, “visto que não é possível assegurar o sigilo profissional ao permitir a coexistência de profissionais com deveres de denúncia na mesma organização em que há profissionais que têm de assegurar o sigilo (o qual é indispensável ao patrocínio forense e coloca em causa a boa administração da justiça, porque retira uma garantia fundamental aos cidadãos, afrontando-se, assim, igualmente, o artigo 20.º da CRP)”.
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