Ordens Profissionais. Constitucionalistas e Ordens concordam com decisão de Marcelo
Marcelo enviou para o Constitucional para fiscalização preventiva o decreto relativo às associações públicas profissionais. Constitucionalistas e Ordem concordam com decisão do Chefe de Estado.
Marcelo Rebelo de Sousa enviou, na quarta-feira, para o Tribunal Constitucional (TC) um pedido de fiscalização preventiva da Lei das Associações Públicas, aprovada a 22 de dezembro pela Assembleia da República. No requerimento, o Chefe de Estado despiu, por alguns momentos, a pele de Presidente da República que deu lugar ao constitucionalista e professor de direito que é e avisou os juízes do Palácio Ratton, ao referir uma provável violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da autorregulação e da democraticidade das associações profissionais – todos previstos na Constituição da República Portuguesa (CRP).
Marcelo enviou o diploma cinco dias depois de o ter recebido do Parlamento. Agora, o TC tem 25 dias, que terminam a 27 de fevereiro, para se pronunciar sobre este pedido.
Marcelo Rebelo de Sousa relembrou que o regime das associações públicas profissionais é “muito próprio”, sublinhando a existência do princípio da autorregulação das associações profissionais que devem reger-se por “princípios democráticos internos, dotados de órgãos próprios e eleitos pelos seus associados”. Relembra ainda o artigo 267º da CRP que define que “as associações públicas só podem ser constituídas para satisfação de necessidades específicas e que não podem ser constituídas como sindicatos” e ainda o artigo 165º, 1, alínea s) — que não é de todo uma questão menor — e que estipula a reserva relativa que a Assembleia da República tem em matérias de associações públicas. E invoca ainda o artigo 47º que estipula a liberdade de todos no acesso à profissão. Por isso, e mantendo a tónica sempre no princípio da autorregulação, a criação de um órgão de supervisão, de um provedor, de um órgão disciplinar e de um júri para avaliação no estágio, todos eles com entidades externas à profissão, “violam esse mesmo princípio”.
Bem como a criação de um regime de incompatibilidades absolutas relativamente ao exercício de funções dirigentes na função pública, deixando de lado o regime de avaliar essas incompatibilidades em cada caso concreto, que viola o princípio da proporcionalidade, ao criar-se esta “restrição desproporcionada”. Marcelo vai mais longe ao dar o exemplo de um diretor de serviço de um hospital público do SNS ficar impedido de ter funções em órgãos diretivos na Ordem dos Médicos. O que não acontece com um médico do serviço de um hospital privado, violando assim também o princípio da igualdade.
Decisão e argumentação que já lhe valeram muitos elogios, quer da parte das Ordens Profissionais, quer da parte de dois juristas contactados pelo ECO.
Jorge Bacelar Gouveia, constitucionalista, defende que, “do ponto de vista jurídico, além da contradição de haver uma lei que protege uma profissão permitir que a mesma se “misture” com outras profissões, sendo certo que a Lei-Quadro, prevista na CRP, só se justifica na defesa dos seus interesses próprios, há uma óbvia inconstitucionalidade na desfiguração da especialização funcional da advocacia com a criação de sociedades multidisciplinares que até podem ser geridas por pessoas externas a tais profissões. Não se esqueça também que o seu estatuto de agente da justiça está previsto no art. 208º da CRP, este conferindo-lhe imunidades e garantias próprias de substancialidade profissional como se deve lembrar finalmente que aquelas soluções suscitam dúvidas de constitucionalidade se se considerar o direito à escolha de profissão – e o seu subsequente exercício com uma identidade funcional – que está previsto no art. 47º, nº 1, da CRP, sendo mesmo um crime constante no Código Penal a usurpação de funções”.
José Luís Moreira da Silva, presidente da Associação das Sociedades de Advogados em Portugal (ASAP) e sócio da SRS Legal, congratula-se com a decisão do Chefe de Estado e admite que esta nova lei “pode pôr em causa as imunidades dos advogados, na medida em que o poder disciplinar deixa de estar auto-regulado e passa a ser hétero-regulado, por a maioria dos membros que exercem a função disciplinar dos advogados não são advogados”. O advogado sustenta ainda que a inconstitucionalidade pode ser, ao invés, também ser sustentada pela “eventual não conformidade com o artigo 267.º, n.º 4 da Constituição em que as associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e têm organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos”. O advogado relembra que esta norma, introduzida em 1997, na altura em que Moreira da Silva fazia parte da Comissão de revisão constitucional e que aprovou esta mesma regra, “vem garantir o respeito pela auto-organização das associações publicas, incluindo as profissionais, o que poderá estar posto em causa pela nova lei, ao impor membros não eleitos pelos profissionais de cada Ordem, que têm de escolher membros fora da classe profissional. Tenho muitas dúvidas se não se esta a violar esta norma da Constituição, ao poder por em causa o respeito dos membros e a formação democrática dos órgãos”.
E o que dizem as Ordens Profissionais?
O diploma já nasceu torto, com praticamente todas as Ordens Profissionais a mostrarem-se frontalmente contra esta proposta que nasceu do PS e do PAN, aprovado em votação final global com votos favoráveis de PS, Iniciativa Liberal e PAN e votos contra de PSD, Chega e PCP e abstenções de BE e Livre. Segundo dados do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), existem atualmente em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem das Assistentes Sociais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais.
Ao ECO, já depois do envio do diploma para o TC, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, considerou esta decisão de Marcelo de positiva e acrescenta: “Tal como a Ordem dos Médicos já tinha referido e alertado, o diploma apresentado pela AR não respeita a essência das associações públicas profissionais no âmbito da auto-regulação e ultrapassa limites em questões fundamentais que não são aceitáveis”.
A recem eleita bastonária dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, relembrou que “o Conselho Nacional das Ordens Profissionais fez chegar ao PR as suas preocupações com as alterações que se pretendem implementar com a Lei das Associações Públicas Profissionais. E, aparentemente o senhor Presidente foi sensível aos argumentos e agora esperamos que o TC se pronuncie de forma favorável às pretensões apresentadas. A OA acredita que as questões da autorregulação, da multidisciplinariedade e da forma de remuneração dos estágios, entre outras, têm que ser necessariamente alteradas, sob pena de uma ingerência inadmissível do poder político na gestão das ordens públicas profissionais”, disse a também advogada.
Ana Rita Cavaco, bastonária dos Enfermeiros, defende que a posição da Ordem está nos pontos, precisamente, em que o PR também teve dúvidas. “Quando fomos ouvidos na AR, focamo-nos muito nesses pontos até porque a Ordem dos Enfermeiros não tem nenhuma barreira de acesso à profissão. Isso de facto foi o que Bruxelas chamou a atenção relativamente ao que poderia ser um entrave e que não deveria existir nas Ordens profissionais. O que achamos que aconteceu é que o Governo usou as barreiras de acesso e essas recomendações e aproveitou para ir muito mais longe e pôr o pé em cima das Ordens profissionais, sobretudo como a nossa que é incómoda”.
A bastonária defende que este diploma “é uma tentativa de controlar a liberdade das Ordens ao introduzir comissários políticos que serão pagos pelos profissionais, já que não temos dinheiro do erário público. Marcelo rebelo de Sousa fez bem em enviar o diploma para o TC, já que este é mais um ataque à democracia e à forma dos profissionais se poderem regular livremente. Não esquecer que fazemos um trabalho essencial na parte disciplinar e que outros não podem fazer. Como é que um advogado ou assistente social vai avaliar a boa ou má prática profissional de um enfermeiro?”.
Também a Ordem dos Farmacêuticos congratulou-se com a decisão do Presidente da Republica. “Espero que esta medida permita criar as condições para que possa haver alterações significativas à lei no sentido de eliminar o espírito intrusivo e controlador dos orgãos de regulação da profissões. Esta nova lei deve resultar numa melhoria para a sociedade e não é claramente o que resulta da versão da lei que foi aprovada”, disse o bastonário, Helder Mota Filipe.
Já o Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP) — que agrega todas as Ordens Profissionais do país — logo na altura da aprovação do diploma, criticou a manutenção de “aspetos não coerentes”, como o órgão de supervisão. O presidente do CNOP, António Mendonça — também ele bastonário da Ordem dos Economistas — referiu que a principal atribuição das ordens ser a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços acabou diluída no projeto de revisão apresentado pelo PS.
“Era crítico manter-se essa atribuição das ordens exatamente para reforçar que estas não são meros organismos de defesa corporativa dos interesses dos seus membros, como alguns agentes políticos pretendem incutir na opinião pública”, indica o memorando.
“Daí se impor, nesse texto final neste dia aprovado, que o órgão de supervisão tenha uma maioria de membros não pertencentes à ordem, que o Provedor dos Destinatários dos Serviços, obrigatoriamente remunerado quando o não são a esmagadora maioria dos outros titulares de órgãos sociais, também não seja membro da ordem, que o Conselho Disciplinar, órgão encarregado de apreciar a adequação de práticas profissionais, integre membros que, por não serem membros da ordem, não exercem a profissão, que os júris de exame de estágios profissionais, integrem vogais desligados do exercício da profissão por não serem, necessariamente, membros da ordem”, indica a CNOP.
Outra das reivindicações do CNOP e que foram atendidas neste texto final – adianta o documento – foi “a de não se impor um longo período de nojo a dirigentes sindicais para poderem exercer cargos nas ordens, mas, contraditoriamente, mantém-se, nesse mesmo texto final, como sendo uma incompatibilidade para o exercício desses mesmos cargos associativos o desempenho de quaisquer funções dirigentes na função pública, quando, em algumas ordens, por exemplo as da saúde, elevado número dos seus membros exercem funções dirigentes nas unidades de saúde do SNS”.
O caso “da existência de um órgão de supervisão, quando a atividade das ordens é escrutinada por uma miríade de entidades, desde logo o Governo que sobre elas exerce uma tutela inspetiva” é um dos aspetos considerados negativos.
“A obrigatória adoção de soluções organizativas únicas, como se todas as vinte ordens existentes fossem idênticas na sua dimensão e no contexto em que se inserem, a rigidez de soluções normativas que desnecessariamente coartam a possibilidade da Assembleia da República, quando chamada a aprovar as alterações aos estatutos dessas mesmas 20 ordens, poder encontrar as soluções mais adequadas e especificas para cada uma dessas associações públicas”, são outras questões suscitadas.
No entender do CNOP, há depois soluções que “não se vislumbra como possam vir a ser operacionalizadas“, como por exemplo, o da obrigatoriedade, que é imposta no texto final aprovado, de 40% dos membros do órgão de supervisão, serem necessariamente professores do ensino superior, só que não podendo estar inscritos na ordem, mas que serão, contudo, eleitos pelos membros dessa mesma ordem”.
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