Os escritórios de advogados defendem que a Inteligência Artificial, como o ChatGPT, beneficia e auxilia o setor e que dificilmente irá substituir o papel do advogado, pelo menos para já.
“Sim, os advogados podem beneficiar significativamente com a Inteligência Artificial (IA)”. Foi esta a resposta que o ChatGPT, o chatbot mais famoso dos últimos tempos, deu à Advocatus quando questionado sobre o mesmo.
Lançado em novembro de 2022, o ChatGPT tem estado na “boca do mundo” nos últimos meses e a causar impacto na internet, nas universidades e até mesmo em contexto laboral. Este sistema de IA da OpenAI utiliza linguagem baseada em machine learning e fornece respostas elaboradas por um algoritmo às perguntas dos utilizadores.
Segundo o diretor da Nova SBE, Pedro Oliveira, o ChatGPT é um “desafio” para as universidades e “põe em causa muitas profissões”, dos professores aos jornalistas, com estas novas soluções IA.
Vários bancos de investimento até já começaram a restringir o uso deste chatbot pelos seus colaboradores, como é o caso do Bank of America, Citigroup, Goldman Sachs Group e JPMorgan Chase.
O uso de chatbots como o ChatGPT está também a começar a “piscar” o olho ao setor da advocacia. No estado de Minnesota, nos Estados Unidos da América, o ChatGPT foi submetido a um exame da Ordem dos Advogados e passou, ainda que com uma avaliação baixa. Mas o recurso a este tipo de IA está a começar a alastrar-se pelo mercado de advocacia.
Por exemplo, a DLA Piper contratou dez cientistas de dados para aconselhar clientes sobre o uso de IA. Segundo referiu o Financial Times, esta nova unidade do escritório internacional será impulsionada por Bennett Borden, um ex-funcionário da CIA.
Também a PwC já anunciou que vai recorrer à IA e experimentar um chatbot de forma a acelerar o trabalho dos cerca de 4.000 advogados. Segundo a consultora, o contrato celebrado com a startup Harvey permitirá o acesso à IA por parte dos advogados e levará a que desempenhem as suas tarefas mais rapidamente, como análise de contratos e due diligence.
A Advocatus questionou três escritórios de advogados sobre o impacto da Inteligência Artificial, em particular do ChatGPT, no setor da advocacia. Todos defendem que beneficia e auxilia o setor e que dificilmente irá substituir o papel do advogado, pelo menos para já.
Para Ricardo Henriques, sócio da Abreu Advogados, o ChatGPT pode ser uma “excelente” ferramenta para ajudar os advogados nas mais variadas tarefas, como na pesquisa de informação, preparação de documentos e revisão de textos e documentos. Ou seja, considera que tem a “potencialidade de acelerar a capacidade de execução” e “melhorar a eficiência de várias tarefas”, permitindo assim uma redução do esforço e custo associado às mesmas.
“Apesar de não apresentar ainda resultados muito perfeitos e consistentes, em especial em língua portuguesa, e por vezes ter algumas “alucinações”, tem o potencial para, se utilizado com o devido cuidado, ser um grande auxílio para os advogados agora e no futuro”, sublinhou o sócio.
O escritório liderado por Inês Sequeira Mendes já utiliza “pontualmente” o ChatGPT e estão a avaliar possíveis utilizações desta e de outras ferramentas de inteligência artificial sempre como um auxílio ao exercício da advocacia, “procurando maximizar a eficiência dos serviços, mas tendo sempre presente os riscos inerentes”.
Já a Morais Leitão não está “diretamente” a utilizar o ChatGPT no escritório. “Acompanhamos os temas de inteligência artificial e de machine learning desde 2018 e não vamos mudar radicalmente a estratégia que definimos e o trabalho que temos feito. Até porque acreditamos que a experiência para o utilizador proporcionada pelo ChatGPT não é a que gera maior engagement com o advogado”, explicaram Gonçalo Rosas e Joana Maria Andion, associado principal e associada da Morais Leitão.
O escritório lançou o seu primeiro projeto de IA em 2018, utilizando-o em vários assuntos e processos jurídicos. Este projeto dispõe de ferramentas de legal tech que auxiliam os advogados. “Trata-se de um conjunto de novas tecnologias que ainda têm de ser exploradas, testadas e adaptadas ao nosso trabalho; processo que exige sempre algum tempo e ponderação”, notam.
À Advocatus, os advogados da Morais Leitão levantaram uma questão, a questão de um milhão de euros: “Poderá o ChatGPT substituir os advogados?”. Apesar das “impressionantes” faculdades das tecnologias de IA, consideram que não, pelo menos para já, uma vez que os algoritmos continuam a ser binários e “muito limitados nos resultados que geram”.
“Não obstante, é verdade que certas tarefas tradicionalmente associadas à advocacia podem ser já nos dias de hoje desempenhadas por tecnologias de inteligência artificial ou por advogados com auxílio dessas tecnologias. A interpretação do Direito, embora o pensamento jurídico possa ser codificado, ainda se encontra dependente da subjetividade e, porventura, encontrar-se-á sempre ou, pelo menos, enquanto o Direito for produzido por homens, que ainda não é alcançada pelas máquinas”, explicaram.
Os associados da Morais Leitão relembraram também que o Direito é uma ciência de palavras e o significado das mesmas está “dependente do contexto cultural e social, de sentimentos, crenças e convicções”. “A interpretação das normas e a submissão de situações factuais específicas às mesmas depende de outros elementos que não se limitam ao da dedução lógica”, acrescentaram.
Já Paula Gomes Freire, managing partner da Vieira de Almeida (VdA), realçou que o ChatGPT veio inaugurar um novo capítulo de “uma história muito interessante”: a “história de como a inteligência artificial impactará a prestação de serviços jurídicos”.
A líder da VdA destacou quatro palavras para ilustrar o que pode mudar no setor da advocacia: amplificação, libertação, abundância e colaboração.
Sobre a amplificação, Paula Gomes Freire afirmou que a IA amplia o que podem fazer e a que velocidade. “Gosto de pensar na IA como um “superpoder”, pois vem criar novas oportunidades em áreas que, até aqui, não era possível alcançar, tendo em conta o volume ou complexidade dos dados ou informação. Parece-me, por isso, impensável não integrar a IA na prestação de serviços jurídicos e considero que, com as cautelas necessárias, deveremos ser proativos na sua adoção”, sublinhou.
A managing partner da VdA acredita também que o avanço tecnológico terá um papel libertador, permitindo que os advogados fiquem mais disponíveis para se dedicarem a questões jurídicas mais estratégicas, com foco na criação de vantagem competitiva, gerando verdadeiro valor acrescentado para os clientes.
Adiantou ainda que a IA irá expandir o mundo dos serviços jurídicos. “No entanto, a IA e a crescente digitalização de todos os processos impactam o modelo de negócio tradicional das sociedades de advogados, obrigam a repensar toda a cadeia de valor, o modelo de relação com os clientes, as políticas de pricing e o próprio papel que as firmas de advogados querem desempenhar num mundo em que parte do que fazemos estará disponível em novos canais de oferta de produtos e serviços”, referiu.
Por fim, relativamente à “colaboração”, Paula Gomes Freire defende que os sistemas de IA são multidisciplinares por natureza e a sua integração na prestação de serviços jurídicos vai exigir dos advogados a capacidade de trabalhar de forma colaborativa ao lado de outros profissionais.
IA é o futuro e não uma ameaça
Otimistas com todos estes avanços tecnológicos, os escritórios de advogados acreditam que sistemas de Inteligência Artificial, como o ChatGPT, são parte do futuro e não uma ameaça.
Ricardo Henriques considera até que não faz sentido “olhar” para esta ferramenta como algo que pretende substituir em “absoluto as pessoas”, ou os advogados em particular, no desempenho das suas tarefas.
“Esta ferramenta não consegue reproduzir artificialmente qualidades humanas como a empatia e todas as emoções que nos fazem entender a complexidade das relações humanas. Temos de aproveitar as potencialidades e benefícios que traz, tendo presente que certamente irá ter um impacto na nossa forma de trabalhar e na organização da sociedade e da advocacia em particular”, notou o sócio da Abreu Advogados.
Também os associados da Morais Leitão, Gonçalo Rosas e Joana Maria Andion, sublinham que não têm qualquer objeção ao ChatGPT ou a quaisquer outras ferramentas de IA, uma vez que podem ser “benéficas para os clientes”.
“Como sucede com todas as inovações tecnológicas, a sua integração nos vários setores económicos provoca um certo desconforto nos mais conservadores e entusiasma aqueles que se intrigam e apostam nas novas realidades futuras”, disseram.
Segundo Gonçalo Rosas e Joana Andion, a integração de novas tecnologias, independentemente do setor, traz vantagens “visíveis” e “percetíveis”, como o acesso rápido, facilitado e organizado a um conjunto alargado de informação e a automatização de tarefas simples e pouco criativas. Ainda assim, deixam o alerta: a “ausência de juízo crítico relativamente à informação obtida através do ChatGPT ou tecnologias similares é uma consequência perigosa”.
Prós e contras
Os escritórios contactados pela Advocatus apontaram alguns riscos associados ao uso do ChatGPT, tais como proteção de dados, inexatidão de informações e até “sobrestimação” dos conhecimentos jurídicos.
O sócio da Abreu Advogados sublinhou alguns riscos relacionados quer com a informação disponibilizada ao ChatGPT para processamento, quer com a utilização dos resultados que este produz.
“Em primeiro lugar, uma preocupação com a confidencialidade e segurança da informação, associada ao sigilo profissional. Por outro lado, uma preocupação com a proteção de dados pessoais e a sua divulgação não autorizada. Por último, é também muito importante assegurar e confirmar a qualidade e exatidão da informação obtida com a utilização desta ferramenta, uma vez que muitas vezes existem incorreções e “alucinações” que podem produzir informação errada”, enunciou Ricardo Henriques.
Já os associados da Morais Leitão diferenciam os riscos em dois casos: no uso do ChatGPT em formato aberto como conhecido atualmente pela maioria, “cujas bases de dados são pouco transparentes e das quais se desconhece muitas vezes a fonte”; e a utilização de uma Interface de Programação de Aplicações (API) do ChatGPT nos sistemas e bases de dados da organização “cujo input será controlado pela própria organização”.
“No primeiro caso, o maior risco é a sobrestimação dos conhecimentos jurídicos. Embora o ChatGPT em formato aberto seja capaz de responder a questões jurídicas simples, pode não ter a capacidade para compreender conceitos mais complexos ou de responder a situações inovadoras com os desvios necessários ou até perceber as inúmeras nuances do sistema jurídico e da própria vida”, sublinham.
Já relativamente ao segundo caso, apontam que se os dados que “alimentam” a plataforma forem controlados pela própria organização, o “risco é mitigado pela utilização da ferramenta em ambiente controlado – esta vai aprender apenas de acordo com a informação que a organização lhe der”.
Em ambos os casos, Gonçalo Rosas e Joana Andion notam que haverá sempre um risco do ChatGPT falsificar a existência de fontes e factos quando não tem acesso a informação suficiente. “Esta tendência é particularmente problemática, uma vez que o ChatGPT exibe o mesmo nível de confiança ao fornecer respostas factualmente corretas e incorretas”, afirmaram. Segundo dados fornecidos pelos associados da Morais Leitão, a taxa de falsificações de fontes e factos do ChatGPT varia entre 15% a 20%.
“Em qualquer das opções, os advogados terão sempre de exercer um controlo de qualidade significativo sobre as respostas geradas pelo ChatGPT ou por tecnologias similares. A monitorização constante dos resultados gerados tem sido, aliás, uma norma comum de auto-regulação das organizações que utilizam com frequência ferramentas dotadas de IA, não apenas pelo controlo do rigor da informação gerada, como também para controlar a forma como a mesma é obtida”, explicaram.
Ainda assim, existem também benefícios associados a estes avanços tecnológicos. Ricardo Henriques enunciou a maior eficiência, rapidez e capacidade de processamento de grandes volumes de informação.
“A rapidez e urgência exigida pelas necessidades da vida atual é incompatível com a complexidade do tratamento da informação sem o auxílio de ferramentas de inteligência artificial, pelo que estas ferramentas poderão certamente melhor a nossa capacidade de análise de decisões judiciais, de pesquisa de doutrina e de jurisprudência, de elaboração e de revisão de documentos e contratos”, disse o sócio da Abreu Advogados.
Já para os associados da Morais Leitão, as vantagens existirão sobretudo na utilização de uma API controlada. “Com o input certo, ferramentas como o ChatGPT têm a capacidade de preparar rapidamente minutas de documentos, como contratos, conseguem facilmente localizar a informação mais relevante dentro de documentos mais extensos e podem identificar potenciais pontos de melhoria e sugestões de revisão, ajudando os advogados a digerir mais rapidamente informação complexa e melhorando a sua produtividade e eficiência”, referiram.
Contudo, Gonçalo Rosas e Joana Andion alertaram que terá de existir sempre um trabalho de revisão “absolutamente necessário” por parte do advogado, “sob pena de o cliente ser exposto a riscos desnecessários de interpretações jurídicas erradas”.
Os advogados sublinharam ainda que o ChatGPT pode tornar-se uma ferramenta útil na pesquisa jurídica, “ajudando os advogados a aceder a um leque mais amplo de fontes de conhecimento”.
“Em suma, o ChatGPT e tecnologias similares não são um fim em si mesmo, nem aplicam a substituição dos advogados, mas constituem antes ferramentas cada vez mais importantes. São o início de um novo caminho na advocacia e noutras profissões”, notaram.
Governo aposta em IA e tecnologias para a Justiça
Em fevereiro, o Governo apresentou uma nova estratégia centrada em IA e tecnologias emergentes “para transformar a Justiça”, a Estratégia Govtech. Cerca de 26 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) serão utilizados para desenvolver a primeira Estratégia de Govtech, especificamente dirigida ao setor.
“A iniciativa materializa-se num conjunto de projetos de inovação e transformação digital, desenvolvidos em colaboração com universidades, centros de investigação e startups com o objetivo de tornar os serviços da justiça mais ágeis e eficientes”, referiu o Ministério da Justiça em comunicado.
Com o mote “Juntos para transformar a Justiça”, esta estratégia integra vários projetos de base tecnológica, que recorrem a ferramentas de inteligência artificial, e projetos de desenvolvimento de competências na área da inovação.
A Ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, já apresentou várias soluções já implementadas e iniciativas em curso. Entre elas está o pedido online de nacionalidade com validador automático da autenticidade de documentos está disponível nesta primeira fase para mandatários, possibilitando a entrada do processo totalmente desmaterializado e com automatismos e inteligência artificial que reduzem o trabalho manual.
“A anonimização de processos vai permitir, em breve, publicar as sentenças de todas as instâncias, aumentando a transparência, melhorando a pesquisa de informação para os magistrados e, simultaneamente, reduzindo a afetação de funcionários dos tribunais para tarefas manuais, com recurso a um algoritmo de inteligência artificial”, explicaram.
Outra das iniciativas é o Guia de Acesso à Justiça. Com lançamento previsto para março, este é o “primeiro modelo de linguagem avançada desenvolvido com machine learning na Justiça”, informando os cidadãos sobre os serviços mais adequados para cada situação. “Sem substituir as competências atribuídas aos mandatários, procura esclarecer e acompanhar para um melhor acesso à informação da Justiça, através do uso de tecnologia inovadora, com características semelhantes ao ChatGPT”, referiu o Ministério da Justiça.
A primeira versão deste guia incidirá sobre a temática do casamento e do divórcio, e, no futuro, oferecerá informações relacionadas com os vários serviços prestados pelo sistema judicial, meios de resolução alternativa de litígios e registos.
A Automatização da Bolsa de Firmas e Denominações foi outra das medidas apresentadas. Esta já se encontra em funcionamento e recorre a algoritmos de inteligência artificial para criar de forma automática nomes de empresas, uma tarefa que até aqui era exclusivamente realizada por intervenção manual. Atualmente, encontra-se em desenvolvimento a funcionalidade que tornará possível a sugestão de nomes com base na área de atividade da empresa.
Do investimento total PRR previsto para a Justiça, de cerca de 266,9 milhões de euros, já foram contratualizados mais de 39 milhões de euros para a modernização desta área, o que representa cerca de 15% do valor total previsto para a simplificação dos serviços eletrónicos para cidadãos e empresas.
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ChatGPT pode ajudar advogados, mas não os pode substituir
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