Regras para fabricar comboios em Portugal ameaçam concurso. CP alega não ter recebido queixas
Critério para produção em Portugal dos 117 novos comboios para serviços suburbano e regional viola regras europeias, alertam especialistas em contratação. CP alega não ter recebido queixas.
Há praticamente duas décadas que não se produzem comboios em Portugal, por conta do fecho, em 2004, da fábrica da Bombardier, na Amadora. A esperança reacendeu-se quando a CP abriu o concurso para comprar, por 819 milhões de euros, 117 novos comboios, em dezembro de 2021. O ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, fez questão de valorizar a produção nacional e de afirmar: “a pontuação é tanto maior quanto mais tarefas forem feitas em Portugal; no limite, a totalidade do fabrico”. Em 2023, o seu sucessor, João Galamba, foi ainda mais longe e fez questão de anunciar: “na pior das hipóteses teremos uma fábrica em Portugal“.
Entre os 100 pontos disponíveis, há 15 que servem como “bonificação do fabrico e da montagem em Portugal”, segundo o caderno de encargos. O critério de avaliação, no entanto, está a levantar dúvidas, pondo em perigo o concurso. A transportadora defende-se e afirma que nenhum concorrente apresentou qualquer queixa até agora.
Para obter a pontuação máxima, os concorrentes têm de se comprometer em fabricar e montar em Portugal os principais componentes de pelo menos 100 das novas automotoras elétricas e ainda incluir, em pelo menos 5% da equipa de operários, jovens à procura do primeiro emprego, desempregos de longa duração, pessoas com mais de 50 anos e ainda elementos com algum tipo de deficiência.
O critério viola os artigos 34 e 36 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no entender do especialista Pedro Telles. “Um potencial operador económico que desejasse concorrer utilizando a sua capacidade de fabrico baseada noutro estado-membro da UE, por exemplo, só poderia competir em 85% da pontuação total disponível, pois seria classificado como zero no critério de fabrico/montagem. Além disso, seria classificado com zero mesmo se cumprisse o requisito dos recursos humanos especiais”, escreveu o advogado num texto publicado em 14 de junho. “O único propósito é garantir que a atividade económica associada ao contrato seja desenvolvida em Portugal em detrimento dos outros estados-membros”, acrescenta.
O professor associado na escola de negócios de Copenhaga (CBS, na sigla original) antecipa que, mesmo que seja adjudicado o contrato, o Tribunal de Contas acabará por chumbar o documento. Pedro Telles alega que também está em causa a violação do princípio da concorrência. “O procedimento foi naturalmente desenhado para restringir artificialmente a concorrência. A sua intenção é tornar competitivas apenas as propostas que incluam um grau de fabrico/montagem feito em Portugal”, sustenta.
A posição é corroborada por Jane Kirkby, especialista em contratação pública. “Uma empresa sediada em Itália, que forneça comboios fabricados, construídos e montados em Itália, parte para a avaliação das propostas com um limite de pontuação máxima de 85%, enquanto uma empresa que se comprometa com a construção de uma fábrica de comboios em Portugal já pode almejar os 100%”, exemplifica a sócia da Antas da Cunha Ecija. “Ou seja, o Governo está a privilegiar o desenvolvimento de uma atividade económica em território português, colocando um obstáculo à importação de bens a partir de outros Estados Membros, o que consubstancia uma medida cujo efeito é limitar o valor ou o volume de importação de determinados produtos”, detalha.
Para esta advogada, um critério de pontuação como este apenas seria admissível, “por exemplo, se estivesse em causa a aquisição de bens de soberania, como material militar, em que é legítimo que o Estado queira controlar o fabrico e a manutenção do mesmo, sem depender de empresas sediadas em estados com interesses contrários ou diferentes”.
“Compreendo que possa ser difícil para a opinião pública entender como uma empresa pública não possa valorizar ou favorecer operadores nacionais, mas tal possibilidade encontra-se vedada pelo Direito da União Europeia, atento às exigências do mercado interno que obrigam a que não existam entraves, designadamente, discriminatórios à circulação de fatores de produtivos, designadamente quanto às mercadorias”, argumenta Pedro Cerqueira Gomes, também especialista nesta área. O sócio da Cerqueira Gomes & Associados compara mesmo esta situação com a “grande resistência da opinião pública” à decisão de o Tribunal Geral da UE de anular as ajudas Estado alemão à Lufthansa durante a pandemia.
Concurso que não exclui
O concurso para a compra dos 117 novos comboios captou o interesse inicial de seis empresas: o consórcio luso-francês DST/Alstom, a suíça Stadler e a espanhola CAF chegaram até à última fase; de fora da lista final ficou a dupla germano-espanhola Siemens/Talgo; os chineses da CRRC e os japoneses da Hitachi não passaram da fase preliminar.
Perante esta diversidade de candidatos, José Luís Moreira da Silva entende “não há qualquer ilegalidade nem violação do Código da Contratação Pública e das normas europeias”. O sócio da SRS Legal considera que uma alegada ilegalidade “parte de um pressuposto errado que as normas do concurso aqui em causa obrigariam o contratante a fabricar e/ou a montar os comboios em Portugal. Ora o que o concurso faz é apenas pontuar mais favoravelmente quem o fizer, mas não exclui quem o não fizer”.
O líder do departamento Administrativo e Contratação Pública da SRS Legal também “qualquer operador económico seja de que nacionalidade for, pode apresentar proposta como bem entenda, apenas sabe que pode ver a sua proposta valorizada em até 15% se fabricar ou montar parte dos comboios em Portugal. Esta regra é igual para qualquer operador económico. Veja-se que a regra nem sequer obriga a fabricar ou a montar a totalidade do comboio em Portugal, mas apenas parte dos seus componentes”. “A solução encontrada é viável para recomeçar a haver know-how em Portugal no fabrico de comboios, como antigamente”, complementa o advogado.
A CP alega que ao longo do concurso “nenhum dos candidatos ou concorrentes suscitou qualquer questão relacionada com o tema“. Ao ECO, fonte oficial da transportadora defende estar “empenhada em cumprir toda a legislação em vigor, garantindo um processo transparente e justo”. Para apoiar juridicamente na elaboração do caderno de encargos, a empresa pública contratou mesmo uma sociedade de advogados.
Resta saber se o concurso para os 117 comboios vai até ao final ou se será necessário regressar à casa de partida. O consórcio DST/Alstom é o favorito, pois obteve a melhor classificação na avaliação prévia das últimas propostas, segundo o jornal Público (acesso pago). Falta a decisão final do júri e o sinal verde do conselho de administração da CP.
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