Carlos Vaz de Almeida, sócio da Pérez-Llorca, sublinha que se o país quer alcançar as metas a que se propôs, é “crucial que haja um reforço substancial da capacidade da rede” e um investimento.
Carlos Vaz de Almeida juntou-se à Pérez-Llorca em 2023 como partner para contribuir para a estratégia internacional da empresa e está baseado em Portugal onde é responsável pela prática de Banking, Energy & Infrastructure. Antes de ingressar na Pérez-Llorca, foi sócio da RRP Advogados, onde chefiou a área de Finanças, Energia e Infraestruturas. Antes disso, foi advogado sénior no departamento de Banking & Projects da Linklaters e advogado na Uría. Foi ainda membro do gabinete do Ministro de Estado e das Finanças português e consultor sénior da UTAP (a unidade portuguesa de Parcerias Público-Privadas).
Em entrevista, o sócio da Pérez-Llorca defende que Portugal deve manter “ambições elevadas” no domínio da descarbonização e transição energética e persistir nos seus esforços. O advogado sublinha que se o país quer alcançar as metas a que se propôs, é “crucial que haja um reforço substancial da capacidade da rede” e um investimento na sua modernização.
Quais as principais dificuldades com as quais os vossos clientes se têm confrontado, ao nível do licenciamento dos projetos?
Como ponto prévio, e porque sou avesso a discursos pessimistas, julgo que é importante começar por destacar que Portugal tem demonstrado uma progressão assinalável no que toca à implementação de procedimentos mais céleres e simples, assim como ao nível da coordenação entre as entidades públicas, aliás, em linha com as recomendações recentes da Comissão Europeia no âmbito do REPowerEU.
Contudo, persistem algumas dificuldades no desenvolvimento de projetos. Problemas esses que não são menores, especialmente se considerarmos os objetivos e prazos de implementação ambiciosos a que Portugal se propôs internacionalmente em matéria de descarbonização e transição energética, a ordem de magnitude dos investimentos expectáveis no setor da energia e o seu potencial retorno económico-social e a necessidade premente de combatermos a pobreza energética e reduzirmos a dependência energética face a terceiros, a nível nacional e da União Europeia.
E, na sua opinião, qual a principal causa para essas dificuldades?
É um problema multifatorial e alguns dos seus fatores não são evidentes. Sublinho os seguintes: legislação/regulamentação, informação e colaboração com os promotores, articulação entre os interesses nacionais e os interesses locais, articulação entre os interesses nacionais e os interesses locais e a multiplicidade de agentes envolvidos e diluição de responsabilidades.
Sobre a questão da legislação/regulamentação e, apesar dos progressos feitos nos últimos anos, a verdade é que continua a existir uma teia legislativa confusa, complexa e muitas vezes sem coerência. Por exemplo, em 2022 foi aprovado o Decreto-Lei n.º 15/2022, que é “Pedra de Roseta” do Sistema Elétrico Nacional e ajudou a codificar e a organizar o funcionamento do sistema elétrico nacional. Contudo, este diploma carece de regulamentação que continua sem ser aprovada, precisa de ser interpretado e articulado com vários outros diplomas – alguns deles inteiramente anacrónicos, como é o caso do paradigmático RLIE de 1936(!) – e o ecossistema legal continua povoado por regimes excecionais que têm tendência para se eternizarem.
No que diz respeito à informação e colaboração com os promotores e, pela minha experiência, os promotores querem cumprir com a lei e ter segurança jurídica, especialmente quando estão em causa investimentos avultados, que requerem uma mobilização substancial de recursos.
O problema não se resolve só por alteração da lei. É necessário que, à semelhança do que acontece noutros países – sendo o Reino Unido um exemplo notório, designadamente através da atuação da Ofgem –, as entidades licenciadoras, reguladoras e concessionárias envolvidas no desenvolvimento de projetos produzam conteúdos que ajudem os promotores (e financiadores) a ter clareza quanto aos caminhos que podem ser seguidos e divulguem o seu entendimento sobre os temas relevantes. Na prática, falta-nos mais soft law. Mais, têm de ser promovidos canais de comunicação ágeis e céleres entre a Administração e os promotores, sendo para o efeito necessário um substancial reforço de meios.
Em termos de articulação entre os interesses nacionais e os interesses locais e, fruto provavelmente da crescente contestação pública dos projetos pelas populações locais, temos assistido a crescentes dificuldades ao nível do licenciamento urbanístico dos projetos a nível municipal. Isto apesar de o legislador já ter simplificado bastante o licenciamento de projetos de energias renováveis, através da introdução da figura da comunicação prévia com prazo. O que se verifica, na prática, é um conflito entre os objetivos ambiciosos estabelecidos a nível nacional e as opções seguidas depois pelas câmaras municipais a nível local, que muitas vezes criam obstáculos relevantes ao desenvolvimento dos projetos (com ou sem mérito).
Por fim, a multiplicidade de agentes envolvidos e diluição de responsabilidades. Apesar da crescente centralização na coordenação dos procedimentos administrativos, a verdade é que se continua a assistir à intervenção de múltiplas entidades nestes procedimentos, muitas vezes sem grande utilidade prática. Exemplo disso é o caso dos procedimentos de avaliação de impacte ambiental, onde temos, frequentemente, uma panóplia de entidades a pronunciarem-se sobre um projeto (e.g., ANAC, ANACOM, câmaras municipais, Direções Regionais de Agricultura e Pescas, Direção-Geral do Território, E-Redes, CCDR), algumas das quais sem qualquer contributo material, donde resulta, não só, uma injustificada diluição de responsabilidades, como torna estes procedimentos anormalmente morosos. E isto tem, obviamente, impacto quando o promotor faz uma avaliação do custo/oportunidade do capital.
Que impacto notam que têm tido as reformas recentes no que diz respeito à simplificação ambiental?
Destacaria, sem dúvida, a aprovação do SIMPLEX ambiental, que representou uma evolução muito favorável no sentido da simplificação, agilização e desmaterialização de procedimentos administrativos, designadamente ao nível do procedimento de avaliação de impacte ambiental (uma fase crítica nos projetos que estão abrangidos pelo seu regime). De entre as reformas mais positivas destacaria ainda as seguintes: a limitação dos casos em que a realização de procedimento AIA depende de uma decisão discricionária das entidades competentes, o que veio introduzir maior previsibilidade; restrição da necessidade de promover uma AIA aos projetos com maior materialidade; a eliminação de casos de “duplicação de procedimentos de AIA” no caso de alterações ou ampliações de projetos, desde que verificados certos pressupostos; a clarificação do conteúdo das declarações de impacte ambiental favoráveis condicionadas, devendo as condições fixadas, a adotar ao longo do desenvolvimento do projeto, ser devidamente fundamentadas e objeto de um juízo de proporcionalidade; a limitação dos casos em que podem ser solicitados aos proponentes elementos adicionais e a eliminação da possibilidade de diligências complementares com a consequente suspensão do prazo de decisão (expediente muitas vezes utilizado para atrasar os procedimentos); e, a aplicação da figura do deferimento tácito aos pareceres e autorizações previstos na DIA, quando não emitidos em tempo pelas respetivas entidades.
Ora, tendo em conta o teor das alterações introduzidas e baseado na nossa experiência, não temos dúvidas de que as mesmas contribuem positivamente para incentivar o desenvolvimento de novos projetos em Portugal.
No leilão offshore, por exemplo, abriu-se nova fase de diálogo com os promotores, a propósito da entrada em funções do novo Governo. Que impacto é que a mudança de Governo está a ter no geral do calendário de licenciamento?
À data não vemos sinais de mudança nos planos estabelecidos – cremos que continuará a ser uma prioridade nas políticas públicas. Em todo o caso, a configuração do leilão não está ainda definida e cremos que é expectável algum atraso no seu lançamento.
Ciente das potencialidades do hidrogénio verde para a economia, imagino que o Governo esteja a reavaliar a estratégia seguida até aqui e a sua implementação, o que é perfeitamente normal para um Governo que acabou de entrar em funções.
Estão prestes a lançar uma plataforma digital para agilizar o licenciamento, têm vindo a ser reforçados os recursos humanos das entidades licenciadoras. Que impacto esperam que tenha em termos do tempo de licenciamento?
Este é um ponto absolutamente crucial – num setor que está em constante evolução tecnológica e que é altamente regulado, estando intrinsecamente dependente da intervenção do Estado, especialmente ao nível do licenciamento e regulação, é essencial que a Administração disponha de recursos para fazer face às solicitações e necessidades do setor, seja em volume, seja ao nível da capacidade técnica.
Assumindo que o investimento necessário é feito e que são criados os incentivos certos ao nível da gestão de recursos humanos, cremos que tal poderá não só encurtar os prazos de decisão, mas também melhorar a qualidade dos projetos e, consequentemente, assegurar a justa composição dos interesses de todas as partes envolvidas.
Em paralelo com o licenciamento, as redes têm sido um entrave relevante para o desenvolvimento de novos projetos? Ou prevê que passem a sê-lo?
Se Portugal quer alcançar as metas a que se propôs, é crucial que haja um reforço substancial da capacidade da rede – o que não é novidade para ninguém, incluindo para os agentes públicos –, mas também que haja um investimento na sua modernização para fazer face ao desenvolvimento do setor e à alteração do mix de fontes de produção.
Mais concretamente, a atribuição de títulos de reserva de capacidade e correspetivos investimentos terão de ser assegurados com maior celeridade; e a rede terá de ser adaptada para integrar produção descentralizada, assegurar bidirecionalidade, permitir a inclusão de tecnologias de armazenamento em larga escala, garantir flexibilidade operacional na gestão da oferta e da procura e começar a incorporar sistemas de inteligência artificial e big data que permitam prever padrões e, assim, otimizar o funcionamento da rede.
Para isso, precisamos, claramente, de planos de desenvolvimento e investimento nas redes mais ambiciosos.
Num plano macro, Portugal deverá fazer um esforço para estar no centro das discussões europeias relativas à unificação do mercado europeu de energia – a península ibérica não pode ser uma ilha ao nível do mercado grossista da eletricidade. Aumentar as interligações entre os países permitirá assegurar o desenvolvimento das energias renováveis nos países onde elas são abundantes – como Portugal –, aumentando a flexibilidade do sistema elétrico europeu e a redução da sua dependência face ao exterior.
Portugal deverá fazer um esforço para estar no centro das discussões europeias relativas à unificação do mercado europeu de energia – a península ibérica não pode ser uma ilha ao nível do mercado grossista da eletricidade.
Uma das apostas mais sonantes no país tem sido o eólico offshore. Tendo em conta as condições existentes, o país está a ser demasiado ambicioso, ou parece-lhe possível respeitar estas metas?
Apesar de apenas se ter começado a falar a sério do eólico offshore em Portugal nos últimos anos, a verdade é que não se trata de um método de produção novo, sem provas dadas (desde o primeiro parque em Vindeby, em 1991, até aos dias de hoje, a tecnologia tornou-se substancialmente mais madura). Aliás, repare-se que a expectativa, a este nível, é a de que a capacidade instalada cresça 380 GW a nível mundial nos próximos 10 anos, o que é bem ilustrativo do investimento nesta área.
Dito isto, trata-se de um método de produção em relação ao qual Portugal não tem grande experiência e enfrenta desafios muito próprios, como o facto de implicar investimentos de capital intensivo, o que é particularmente desafiante no contexto atual, com preços da eletricidade baixos e taxas de juro elevadas; ou o facto de ser necessário o desenvolvimento de todo um conjunto de infraestruturas de suporte onshore que à data praticamente não existem em Portugal.
Por estes e outros fatores, confesso que tenho dúvidas de que os objetivos estabelecidos venham a ser alcançados, a curto e médio prazo.
O que não significa que não se deva continuar a apostar nesta área. A eólica offshore é uma tecnologia muito interessante para Portugal, que traz a promessa da criação de um cluster industrial, numa área estratégica, com um enorme potencial de mercado.
A questão que fica no ar é: como e a que custo é que Portugal quer desenvolver estes projetos? O sucesso do eólico offshore dependerá, em grande medida, do preço que o Estado Português está disposto a pagar para assegurar a viabilidade dos projetos (do strike price dos CfD) e por quanto tempo, o que implica uma análise de custo-benefício difícil. Para este efeito, valerá a pena olharmos para quem já trilhou este caminho, designadamente Reino Unido e França, para que possamos aprender com os seus sucessos e evitar os seus falhanços.
Ainda no campo do solar, temos cada vez mais a questão do descentralizado. Esta aposta pode ganhar escala no curto prazo? O que falta?
A produção da potência instalada aumentou 2,5 GW de 2021 para 2023. Estamos a falar de um crescimento significativo e que creio que terá tendência para se tornar mais acentuado, especialmente se forem criados os incentivos certos.
Na minha ótica, trata-se de uma das áreas de investimento mais importantes, como aliás tem vindo a ser reiterado pela Comissão Europeia. Isto porque: contribui para combater a pobreza energética e relembre-se que Portugal é, segundo as estatísticas europeias, um dos piores países europeus nesta matéria; aumenta a segurança e autonomia energética – desenvolve fontes locais de produção; torna o produtor/consumidor mais consciente dos seus gastos e desperdícios; são projetos com menor impacto ambiental; e ajudam a garantir a estabilidade de fornecimento de energia.
Contudo, para que a produção descentralizada se consiga realmente desenvolver é necessário: regulação mais clara e flexível, especialmente ao nível das Comunidades de Energia Renovável; melhorar os esquemas de incentivos, em particular ao nível do Fundo Ambiental: da forma como o sistema está montado, as famílias necessitam de ter capital para investir. Precisam, pois, de ser contemplados outros modelos como a subscrição/locação operacional (Espanha, por exemplo, já inclui o modelo de subscrição no âmbito dos seus apoios públicos); e maior celeridade na análise dos processos de candidatura e atribuição de incentivos.
O hidrogénio verde tem sido das tecnologias mais badaladas. Recentemente, registou-se uma desistência de um projeto em Sines. Em paralelo, a nova ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho, já se declarou com mais reservas em relação ao hidrogénio do que a antiga administração. Regista algum recuo neste campo? Mais desistências, ou novas orientações?
É difícil avaliar nesta fase. Ciente das potencialidades do hidrogénio verde para a economia, imagino que o Governo esteja a reavaliar a estratégia seguida até aqui e a sua implementação, o que é perfeitamente normal para um Governo que acabou de entrar em funções.
Tendo em conta as dificuldades e oportunidades que fomos aqui discutindo, é realista pensar que Portugal conseguirá atingir as metas de instalação de renováveis a que se propõe?
Para isso acontecer, os astros terão de estar alinhados na perfeição, o que é sempre difícil. Dito isto, creio que Portugal deve manter ambições elevadas no domínio da descarbonização e transição energética e persistir nos seus esforços, pois creio que o retorno a médio-prazo será elevado para o país (a nível ambiental, social e económico).
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