Ana Avoila explica o que une médicos, professores, assistentes técnicos, e tantos outros funcionários públicos que estiveram em greve: "Cada vez perdemos mais do estatuto que tinha a Função Pública".
Na última sexta-feira por todo o país os sindicatos esperam escolas fechadas, hospitais a meio gás e serviços públicos de portas encerradas. A greve geral da Função Pública convocada para 27 de outubro pela Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública reuniu em si também o apoio da Fenprof, o maior sindicato dos professores, e do Sindicato Independente dos Médicos, que decidiram juntar-se e parar também nesta sexta.
As reivindicações variam entre carreiras — se uns querem vinculação, outros pedem aumentos, e outros ainda precisam de ver respondidas reivindicações relacionadas com os horários extraordinários. Mas há um grande descontentamento que os une, explicou ao ECO, em entrevista, Ana Avoila, a coordenadora da Frente Comum. O Orçamento do Estado para 2018, afirma, faz pouco para responder às preocupações da Administração Pública, embora “a comunicação social” possa dar a entender o contrário. E uma coisa Ana Avoila diz saber com certeza: na Função Pública o descontentamento tem “sempre consequências e os governos sabem disso”.
Porque é que a falta de negociação no campo dos aumentos salariais é uma parte tão fulcral para a Frente Comum na convocação da greve?
Os aumentos salariais e a negociação anual dos salários são uma questão central da negociação na Função Pública. Aliás, da Função Pública e do setor privado — são fundamentais para construir a remuneração mensal dos trabalhadores e também depois todos os acréscimos que têm a ver com outros subsídios. É a remuneração anual, ou seja, o aumento dos salários, que vai conduzir a que a pessoa do futuro tenha uma reforma condigna.
O aumento dos salários é fundamental para fazer face ao aumento do custo de vida, por causa das pensões, e porque é com base nos salários que as pessoas constroem as suas reivindicações todas. Foi com muita luta que conseguimos introduzir no estatuto socioprofissional da Função Pública a anualidade dos salários. Já está congelada desde 2009, ilegalmente e inconstitucionalmente — a Constituição é muito clara no que se refere à negociação coletiva.
Considera que está a ser bem feita na comunicação social a diferenciação entre a reposição de rendimentos que tem vindo a acontecer e aumentos salariais?
Acho que a verdade não está toda em cima da mesa. Este governo tem feito a reposição de rendimentos, aquém das necessidades. Fez a revogação da lei das 40 horas [de trabalho semanal], que foi fruto de uma grande reivindicação. O Governo quando fala — e depois a comunicação social faz a notícia — de que este Orçamento tem reposição de rendimentos e uma data de coisas, esquece-se de dizer certas coisas. A administração pública está congelada desde 2009 e o Governo vai repor às prestações uma só posição remuneratória. Isso, em média, dá, para as carreiras gerais, que são as maiores, 11, 13 euros por prestação [de 25%]. O resto fica congelado no Orçamento do Estado — os salários, as horas extraordinárias…
Mas as horas extraordinárias vão voltar agora a ser pagas na totalidade. Não foi uma das grandes vitórias negociais?
Não, não vão.
Pode explicar melhor?
As horas extraordinárias não são pagas na totalidade porque o Governo PSD/CDS alterou a Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas para reduzir o valor do trabalho extraordinário. A lei alterou-se no tempo da troika. O Governo tem de repor aquilo que está no Código de Trabalho, que são valores muito diferentes. São acréscimos de 50%, 75% e 100%.
Sobre a contratação mudar de regime de 2 por 1 para regime de 3 por 2…
Esse regime, quando foi criado, tinha um objetivo que vai continuar com esta regra: o de reduzir os trabalhadores da Função Pública. Isso continua a ser uma redução. Não resolve qualquer tipo de problema.
E relativamente aos professores, que se juntaram a esta greve, foi anunciado pelo Bloco de Esquerda que vão ser vinculados 3.500 em 2018. Sabe a pouco?
Isso não resolve qualquer problema dos professores. A Fenprof tem reivindicações muito concretas relativamente às necessidades dos trabalhadores docentes que é preciso resolver nas escolas. Os milhares de trabalhadores, professores, que estão fora, querem discutir a sua entrada nos quadros — não são 3.500. E os outros? Não pode ser assim às prestações.
E quanto às 35 horas de trabalho semanal para todos os trabalhadores, mesmo aqueles com contrato individual de trabalho que não são atualmente abrangidos, tem havido algum progresso?
Há um compromisso do Governo de em junho resolver as 35 horas para todos. Só que nós já temos o compromisso do primeiro-ministro desde que a lei foi mudada, e ainda não aconteceu. É preciso que as 35 horas cheguem a todos. Não se pode estar numa sala com umas pessoas a trabalharem 35 horas e outras 40.
Há muita gente que se pudesse voltar atrás não entrava para a Função Pública. Não tinha mesmo. E não é que o setor privado esteja melhor.
Se a solução encontrada for através da criação de novos contratos coletivos, é possível que haja pessoas que continuam a ficar de fora. O que o Governo quer pôr nos instrumentos de contratação coletiva são coisas que os sindicatos não aceitam, especialmente os nossos, da Federação. Não aceitam porque põem lá banco de horas, por exemplo, o que nós não aceitamos. O que deve ser feito é o que foi feito para os outros: uma norma a dizer que a partir deste momento toda a gente é abrangida pelas 35 horas.
A greve de hoje tem alguma margem para afetar as negociações do Orçamento do Estado. É esse o objetivo?
Nós temos um objetivo. É que durante o período de discussão na especialidade do Orçamento, o Governo perceba que isto não é caminho e que os trabalhadores da Função Pública estão a ficar muito zangados, não só por aquilo que lhes estão a fazer agora no Orçamento, que são pagamentos a prestações que na prática não se traduzem em quase nada, mas também porque têm péssimas condições de trabalho. As coisas não se alteraram. As condições de trabalho são precárias. Temos muito poucos trabalhadores. Saiu muita gente para a reforma. Temos trabalhadores a ganhar nas escolas 3,69 euros à hora, contratados à hora — o que é muito mau e feio. Não se pode fazer contratos de duas horas para pessoas para tomarem conta de crianças.
Naturalmente que, durante este período na especialidade, o Governo deve chegar-se à frente. É preciso é pagar o escalão na totalidade [em vez do faseamento em quatro prestações] e abrir as negociações para falarmos dos salários.
Neste momento, há uma expectativa de um grande impacto desta greve. O Sindicato Independente dos Médicos nunca fez greve geral, e fez um comunicado a dizer que se vai juntar à greve. As pessoas ouvem muita conversa sobre reposição, mas não veem nenhuma reposição. Se calhar no setor privado também não está a haver muita reposição.
Este Orçamento de Estado tem sido visto como de reposição e concessões do Governo à Administração Pública. Como é que esperam que a opinião pública reaja, com essa ideia em mente, ao ver a Função Pública na rua?
Estamos a falar de uma greve em que vamos ser mais de 700 mil trabalhadores, e as suas famílias sabem como é. Há uma grande parte da população que sabe o que está em causa.
Acho que há muita confusão na cabeça do cidadão comum, pela forma como a comunicação social passa a mensagem. Diz-se que é um Orçamento de Estado que continua na linha da reposição e que o maior beneficiário vai ser a Função Pública quando não é verdade. E como isto se diz assim, é natural que as pessoas se interroguem. Agora, há pessoas que não se interrogam certamente. São as que vão às escolas deixar os filhos, são as que vão às urgências dos hospitais, são as que vão à Segurança Social. Essas não se interrogam. São as que vão aos serviços públicos e veem cada vez menos qualidade.
Somos vítimas, há muitos anos, de uma campanha contra os funcionários públicos, e que não foi só cá que foi feita, foi em toda a Europa, para começar a tirar direitos às administrações públicas em geral.
Em que é que isso se traduz?
Cada vez perdemos mais do estatuto que tinha a Função Pública. Porque é que as pessoas concorriam antes para a Função Pública? Não é que tivessem salários mais altos do que na banca ou nos seguros. Era porque tinham a certeza da estabilidade de emprego por causa do vínculo, e perdemos o vínculo; tinham a certeza que tinham uma pensão melhorada porque tínhamos a pensão da Caixa Geral de Aposentações com o cálculo diferente, e perdemos o cálculo; tínhamos uma ADSE com comparticipações que valia o dinheiro que lá púnhamos, e agora pagamos 3,5% dos salários e com cada vez menos comparticipações.
Neste momento, há muita gente que se pudesse voltar atrás não entrava para a Função Pública. Não tinha mesmo. E não é que o setor privado esteja melhor — estamos a comparar com os setores cuja cronologia se comparava, que era o dos seguros, o dos bancários, o setor dos serviços. Não se pode comparar com os têxteis. E não tem nada a ver, nós perdemos sempre, e fomos perdendo. E as pessoas estão esgotadas.
E este descontentamento crescente que vê na Administração Pública, terá consequências?
Tem sempre consequências. Na Função Pública há sempre consequências e os governos sabem disso. Nós sabemos para onde as pessoas dirigem o descontentamento. Se as pessoas estão muito chateadas, não interessa de que partido são: ou se abstêm, o que também acontece muitas vezes, ou então vão castigar quem lhes fez a maldade. No privado, se calhar, nalguns casos também funciona assim, mas nós temos um patrão que é o Governo, e por isso aqui é diferente. E o PS sabe disso.
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Greve da Função Pública. “Aumento dos salários é fundamental”
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