Combater as alterações climáticas, fomentar a inovação, criar empregos, melhorar a qualidade de vida dos europeus... Tudo isto cabe no Pacote de Energias Limpas que está a cozinhar em Bruxelas.
As alterações climáticas são “uma das poucas ameaças existenciais que alguma vez enfrentámos”. A voz do Governador Jerry Brown, da Califórnia, ressoa no plenário do Parlamento Europeu em Bruxelas. É o grande problema dos nossos tempos, continua, embora a sociedade continue a preocupar-se mais com as “notícias do dia”, que têm dificuldade em mostrar as verdadeiras maiores ameaças.
O plenário em Bruxelas não está cheio apenas de eurodeputados mas também de empresários, representantes de organizações não-governamentais e membros da sociedade civil que aqui vieram para comparecer à Conferência de Alto Nível sobre o Financiamento das Energias Limpas, esta terça-feira de novembro.
Não só querem conhecer as propostas da União Europeia para fazer acontecer a transição energética, como se levantam mãos, no fim de cada intervenção, para questionar, aprofundar e propor estratégias. Menos no caso do Governador Jerry Brown, cujas palavras finais são acolhidas com um aplauso ensurdecedor: “Já combatemos grandes batalhas antes”, afirmou o californiano, cujo estado lidera os esforços pelas renováveis no único país do mundo a não subscrever o Acordo de Paris, agora que também a Síria o assinou. “Espero que a União Europeia possa inspirar” o mundo neste período de transição, finalizou.
As propostas da União Europeia estão, por agora, contidas numa série de documentos conhecida como o Pacote das Energias Limpas. Em conjunto, são mais de 4.000 páginas de legislação e recomendações preparadas pela Comissão Europeia, que estão agora em fase de serem avaliadas pelos Estados-membros e também pelos deputados do Parlamento Europeu. Mas o que se avizinha para a transição energética na Europa, e quem quer o quê?
Um pacote de energia limpa hiper ambicioso
Este Pacote das Energias Limpas é dos conjuntos de legislação mais ambiciosos que a Comissão Europeia já desenvolveu. Integrado na União Energética, que foi aprovada em 2015 e começou a ser implementada no ano passado, o pacote servirá para definir como impulsionar a transição energética, estabelecendo novas metas para a eficiência e para a produção e uso de energias limpas. A União Energética tem cinco objetivos principais:
- Segurança, solidariedade e confiança, para diversificar as fontes de energia da Europa e melhorar a segurança energética;
- Um mercado de energia totalmente integrado, para que a energia flua livremente através da União Europeia, com infraestruturas adequadas e sem barreiras regulatórias;
- Eficiência energética, para reduzir a dependência das importações e reduzir as emissões;
- Descarbonização da economia, com uma política climática ambiciosa, metas “rígidas mas justas” e a manutenção dos objetivos ratificados no Acordo de Paris;
- Investigação, inovação e competitividade, fornecendo apoio para as novas tecnologias nas áreas das energias limpas.
O novo Pacote de Energias Limpas integra-se nesta política, contendo oito diretivas que se focam especialmente na eficiência, na descarbonização e nos incentivos à produção de energias limpas. Agora, está a ser revisto pelos Estados-membros, que tomarão uma decisão conjunta no Conselho Europeu, e pelo Parlamento, nomeadamente por dois comités: principalmente a Comissão da Indústria, da Investigação e da Energia (ITRE), mas também com algumas alíneas a serem tratadas na Comissão do Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar (ENVI).
“O pacote vai estabelecer uma estrutura estável para investimentos nas energias limpas, o que irá contribuir para um aumento de 1% no PIB europeu ao longo da próxima década, além de criar 900 mil empregos”, explica o comissário europeu da Energia e do Ambiente, Miguel Arías-Cañete, perante a conferência no plenário.
Mas no piso inferior do edifício do Parlamento Europeu, no dia anterior, o também espanhol José Blanco exaltava-se ao falar com jornalistas portugueses e espanhóis sobre alguns dos objetivos da proposta da Comissão, que considerava pouco ambiciosos.
José Blanco, eurodeputado relator da diretiva das energias renováveis, pretende estabelecer metas mais rígidas do que as propostas pela Comissão, nomeadamente, por exemplo, chegar a 35% de energias renováveis consumidas até 2030. No entanto, ainda não há acordo entre os eurodeputados encarregados de tomar esta decisão, no comité ITRE — certos grupos conservadores consideram esta meta demasiado alta para ser realista.
O relator da diretiva — que é de esquerda –, e outros eurodeputados da mesma perspetiva, querem ainda que o Pacote de Energias Renováveis passe a incluir metas individuais por país, algo que, é quase certo, não deverá agradar aos países no Conselho Europeu. Para José Blanco, é essencial que haja “objetivos vinculativos para os Estados-membros no passado. Esses objetivos vinculativos funcionaram bem no passado e abdicar deles seria voltar atrás”.
O que importa aos contribuintes europeus?
Estas diretivas podem parecer distantes do dia-a-dia dos europeus, mas o seu impacto vai ser muito direto, e não falta assim tanto tempo. Há um bom exemplo numa das diretivas acerca das quais o Parlamento até já aprovou no seu parecer, no ITRE: a que se refere à eficiência energética dos edifícios.
Como explica o relator Bendt Bendtsen, que escreveu o parecer do comité, perante os presentes na conferência no plenário, a eficiência energética é essencial para reduzir os gastos desnecessários e consumir menos energia. “A Europa tem uma oportunidade de ouro: está na hora de agir, e vamos fazer o que é necessário”, disse o eurodeputado.
Para conseguir uma maior eficiência energética, é preciso regulamentar as normas de consumo nos edifícios, o que levanta um desafio: “80% dos edifícios atuais ainda estarão aqui em 2050”, diz Bendtsen. “Por isso é preciso renovar mais na Europa, já que os novos edifícios surgem apenas a menos de 1% por ano”.
Mas quando devem ser feitas estas renovações, e como devem funcionar? A diretiva aprovada no ITRE explica tudo: em mais de 53 emendas, feitas através do compromisso entre os membros dos diferentes grupos parlamentares, o ITRE propõe algumas mudanças à proposta da Comissão, incluindo a criação de mais incentivos para as renovações energéticas dos edifícios, e para assegurar que existem menos barreiras administrativas para o fazer. A proposta com 44 páginas recomenda: “Os Estados-membros devem (…) assegurar estratégias abrangentes e ambiciosas de renovação, que incluam ações específicas para atingir os edifícios com pior performance energética, (…) tendo em conta momentos importantes no ciclo de vida de um edifício”.
“Vamos reduzir a nossa dependência, aumentar a segurança energética, criar melhores condições de vida para muitos cidadãos, e vamos criar muitos empregos na Europa que não podem ser outsourced“, continua Bendt Bendtsen, explicando a importância desta melhoria na eficiência energética através da fiscalização e renovação dos edifícios europeus.
Mas quando é que os proprietários de edifícios europeus ou os empresários que fazem as renovações ou as empresas energéticas de cada país vão começar a sentir o peso destas novas regulamentações? Ainda falta algum tempo, porque os processos europeus são lentos. O Parlamento está agora a avaliar o documento, diretiva a diretiva, para apresentar o seu parecer. O Conselho Europeu, onde estão os ministros da tutela da área dos vários Estados-membros, vai também apresentar um parecer próprio. Depois disso, os três braços encontrar-se-ão para o que se chama um “triálogo” — à porta fechada, estas negociações vão decorrer com cada parte a fazer os compromissos necessários até haver um novo Pacote de Energia Limpa, desta vez com os contributos de todos. Quando é que as diretivas vão chegar à lei portuguesa? Talvez só daqui a três ou quatro anos, disse uma fonte europeia ao ECO, entre o tempo das negociações, o da aprovação, ratificação e transposição.
E quem paga?
Tudo isto requer dinheiro. Para atingir as metas europeias de energia e de combate às alterações climáticas até 2030, deverá ser necessário um investimento de perto de 380 mil milhões de euros por cada ano. Se se mantivesse o status quo, relembra Miguel Arías-Cañete no plenário, gastar-se-iam cerca de 177 mil milhões de euros a menos. “Financiar a transição para as energias limpas exige investimentos consideráveis”, afirma o comissário.
Quando a palavra chega ao dirigente do Banco Europeu de Investimento, Werner Hoyer é ainda mais perentório: “Para atingir os objetivos climáticos, uma coisa é certa: Todo o dinheiro público do mundo não vai chegar”. A solução? O envolvimento das empresas e das organizações. “Todos os estudos apontam a necessidade de mais investimento neste campo”, continuou.
Como pode incentivar-se esse investimento dos privados? A proposta da Comissão Europeia também aborda este aspeto. O comissário Arías-Cañete falou de algumas das iniciativas que já estão em efeito, entre elas a operação do Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos, que desde setembro de 2017 tem 20% das suas operações ligadas ao setor da energia, com uma meta futura proposta de 40% para a área do clima.
Outra prioridade: que as despesas feitas em investimentos para a eficiência energética em edifícios do Estado não contem para o cálculo da dívida e do défice público segundo as normas europeias, uma mudança nas orientações que chegou em setembro de 2017, continua Cañete. O setor público, assinalou, detém cerca de um em cada dez edifícios na União Europeia, pelo que o levantamento desta possível barreira à renovação é ainda mais significativo.
Numa altura em que todos, pelo menos nesta sala do Parlamento Europeu em Bruxelas, concordam que as alterações climáticas são o grande desafio que a humanidade enfrenta neste momento, Antonio Tajani lembra que a Europa pode ver este como um momento de oportunidade. O continente que criou a locomotiva a carvão e o motor de combustão interna tem de aprender a liderar esta transição energética, assinala, e o papel das empresas e da inovação vai ser fundamental. Devagar, sim, pelo meio de cada braço processual da União Europeia, a transição aproxima-se dos cidadãos europeus.
A jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu.
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A UE quer uma revolução energética. Como se faz? Devagar
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