Desligar do trabalho: falta legislação, limites ou vontade própria?
O direito a desligar é uma utopia ou uma conquista necessária? A Advocatus foi tentar perceber as implicações que a legislação deste direito pode ter e se um advogado se consegue desligar do trabalho.
Num mundo frenético cada vez mais digital, estarmos conectados 24/7 tornou-se na máxima dos nossos dias. Se existe uma fronteira entre vida profissional e pessoal esta está hoje, cada vez mais, esbatida e impercetível. Importa, por isso, perguntar: haverá um limite para o contacto fora de horas? Como se distingue o online do disponível? É o direito a desligar uma utopia ou uma conquista necessária? A Advocatus falou com advogados para tentar perceber se a legislação deste direito pode reforçar ou antes fragilizar o direito ao descanso e se um advogado, profissional liberal sem horário estabelecido, se consegue desligar também do trabalho.
A cidade que nunca dorme pode estar prestes a abrandar de ritmo nas horas vagas. Foi apresentado, no fim de março, um projeto de lei em Nova Iorque pelo congressista Rafael Espinal que propõe que as empresas com mais de dez trabalhadores não poderão contactar eletronicamente os seus trabalhadores depois do horário de trabalho. Embora a proposta não proíba as empresas de estabelecerem este contacto, dá ao trabalhador o direito de escolher não responder a mensagens e a e-mails ou não atender depois da sua hora de trabalho sem medo de represálias ou sanções. Caso isso não se verifique, as empresas podem mesmo a vir a pagar multas de 250 dólares.
Por cá, em outubro os partidos reuniam-se para apresentar as suas propostas para legislar sobre o direito a desligar do trabalho. Dessa “mesa” pouco ou nada se concluiu, além de não se ter gerado consensos: se por um lado o Bloco de Esquerda (BE) pediu que se definisse como assédio quaisquer contactos profissionais com o trabalhador em período de descanso, por outro o PS admitiu casos excecionais em que, “por exigências imperiosas do funcionamento da empresa”, possa ficar “consagrada” a possibilidade de utilização de ferramenta digital para fins de trabalho durante o período de descanso, férias e feriados dos trabalhadores”.
O CDS pediu ao Governo que iniciasse um debate com os parceiros sociais “com vista a incluir o direito ao desligamento quer no código do trabalho, quer nos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”. O PCP, por sua vez, não apresentou proposta, mas avançou com um projeto de resolução em que recomenda ao Governo que reponha a norma que obriga a entidade empregadora a enviar à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) os mapas de horário de trabalho, defendendo ainda um reforço dos meios de fiscalização da ACT e da contratação coletiva.
Já o PSD considerou que há propostas “perigosas”, salientando que a evolução da sociedade levou a uma indefinição das barreiras entre tempo de descanso e de trabalho. Clara Marques Mendes, deputada do PSD, considerou que a proposta socialista é “dar o total poder, completamente arbitrário, para que a entidade patronal decida que no período de descanso pode contactar o trabalhador por telefone, por e-mail e violar o tempo de descanso”. Defende, por isso, ponderação em consertar estas matérias entre empregadores e trabalhadores.
Reforço ou fragilização?
De facto, a consagração na lei de um direito a desligar do trabalho tem gerado discussão sobre se entra em confito ou reforça o direito ao descanso, já previsto no código de trabalho. Segundo Joana Carneiro, sócia especializada em direito do trabalho da JPAB Advogados, “em bom rigor, o direito a desligar do trabalho decorre do direito ao repouso, que se encontra consagrado na Constituição. Por outro lado, decorre expressamente do Código do Trabalho que o empregador deve proporcionar ao trabalhador condições de trabalho que favoreçam a conciliação da atividade profissional com a vida familiar e pessoal. Creio que, antes de pugnarem pela suposta criação de direitos, importa que todos conheçam e compreendam bem a legislação e o direito ao descanso já consagrado, sob pena de o fragilizarem, em vez de o reforçarem”, comenta a advogada.
Em bom rigor, o direito a desligar do trabalho decorre do direito ao repouso, que se encontra consagrado na Constituição. Por outro lado, decorre expressamente do Código do Trabalho que o empregador deve proporcionar ao trabalhador condições de trabalho que favoreçam a conciliação da atividade profissional com a vida familiar e pessoal. Creio que, antes de pugnarem pela suposta criação de direitos, importa que todos conheçam e compreendam bem a legislação e o direito ao descanso já consagrado, sob pena de o fragilizarem, em vez de o reforçarem.
Já Francisco Espregueira Mendes, sócio da Telles especializado em direito laboral, entende que as propostas de alteração dos vários partidos sobre esta matéria não são consistentes o suficiente para se formar uma maioria que permita a sua aprovação. “Basta para tal ver a reação do Bloco de Esquerda à proposta inicial do PS. Não vejo necessidade de este direito ficar expressamente consagrado no Código do Trabalho, pois o mesmo já tem inúmeros instrumentos que, sendo corretamente aplicados, permitem assegurar tal direito”, reforça o advogado que enumera vários pontos como a definição dos períodos máximos de trabalho, os horários de trabalho, os intervalos de descanso e as férias, entre outros.
“Com isto não quero dizer que o tema não mereça ser refletido, mas não da forma generalista, e até demagógica, com que é tratado nas propostas de alteração do CT, mas sim de uma forma mais setorial, nomeadamente no âmbito da contratação coletiva, permitindo aplicar as regras às necessidades casuísticas de cada setor de atividade”, defende.
Sobre a proposta do Bloco em considerar-se assédio o contacto entre empregador e trabalhador fora de horas, Joana Carneiro entende que “já decorre do normativo legal existente que a violação dos períodos de descanso, para além de consubstanciar infrações e contraordenações, pode constituir assédio, nomeadamente se tiver como objetivo ou efeito a perturbação e o constrangimento do trabalhador”. A advogada explica que temos um quadro legislativo que estabelece limites aos tempos de trabalho e o direito aos tempos de descanso — “o qual também abrange (ainda que não expressamente) os limites para o uso dos dispositivos eletrónicos do trabalho. Talvez se justifique mais um reforço de fiscalização do que propriamente de legislação”, comenta.
O artigo 29.º do Código do Trabalho já tem uma definição de assédio suficientemente ampla (e até perniciosa), não vendo motivos para ser alterada. Aliás, se o empregador adotar os comportamentos aí previstos durante o período de “desligamento” do trabalhador, tal já pode atualmente configurar uma situação de assédio. Ir para além disto parece-me abusivo e levará inevitavelmente a desnecessárias situações de conflito.
O sócio da Telles vai mais longe: “não concordo com a proposta do BE no sentido de considerar que a violação da regra de que o período de descanso deve corresponder a um tempo de estar profissionalmente desligado pode consubstanciar uma situação de assédio. O artigo 29.º do Código do Trabalho já tem uma definição de assédio suficientemente ampla (e até perniciosa), não vendo motivos para ser alterada. Aliás, se o empregador adotar os comportamentos aí previstos durante o período de “desligamento” do trabalhador, tal já pode atualmente configurar uma situação de assédio. Ir para além disto parece-me abusivo e levará inevitavelmente a desnecessárias situações de conflito”, remata.
Desligar do trabalho: e os advogados?
E um advogado consegue realmente desligar-se? A sócia da JPAB comenta que a relação entre o volume de trabalho e a possibilidade/oportunidade de os profissionais liberais desligarem do trabalho “está necessariamente ligada à maior ou menor afluência de solicitações e pedidos de aconselhamento ou intervenção. De todo o modo, o advogado não deve aceitar o patrocínio de uma questão se souber, ou dever saber, que não tem competência ou disponibilidade para dela se ocupar. No fundo, estamos sempre ligados às necessidades dos nossos clientes. Creio que é mais uma questão de experiência, bom senso e sensibilidade”, explica a advogada.
Francisco Espregueira Mendes, por seu lado, entende que como o advogado é, na generalidade dos casos, um profissional liberal, e por isso não estando sujeito aos limites definidos no CT, “o direito a desligar não se poderá enquadrar nos mesmos moldes. Como é evidente todos os profissionais devem ter direito a um descanso adequado e a “desligar” de todas as suas atividades profissionais. No meu caso pessoal, tento compatibilizar as minhas atividades profissionais com a minha vida pessoal, tendo que reconhecer que, a grande maioria das vezes, é muito difícil conseguir efetivamente “desligar”. Quero acompanhar em permanência os assuntos. Mesmo em férias, consigo ficar mais “descansado” quando vou acompanhando minimamente os dossiers e confirmo que tudo está a ser adequadamente tratado”, confessa o advogado.
Em todo o caso, com ou sem direito a desligar legislado, conclui-se que trabalho e descanso podem e devem ser conciliáveis de forma saudável. Basta encontrar um equilíbrio, que passa por saber dizer que não de vez em quando, mesmo quando isso implica ter de largar o telemóvel. Porque, afinal, “all work and no play makes Jack a dull boy”.
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