Da agricultura ao turismo. O medo da greve dos motoristas espalha-se por todas as áreas

Depois de, em abril, Governo e gestores terem sido incapazes de prever os efeitos da greve, a reação é agora a oposta, roçando o pânico generalizado. Todos exigem "serviços mínimos".

O alarmismo sucede à falta de antecipação. Depois de em abril nenhum governante ou gestor ter sido capaz de perceber e antecipar os impactos da greve dos motoristas de matérias perigosas, agora, e com mais de um mês para se prepararem, a reação de (quase) todos os setores da sociedade tem sido de alertar para o pior cenário possível, procurando dessa forma ser incluído nos serviços mínimos mas, e mesmo inadvertidamente, correndo o risco de lançar sementes para uma profecia autorrealizável. Se todos começarem a açambarcar, tudo faltará.

Se o Governo optou por recomendar o abastecimento prévio das viaturas, as associações empresariais também foram lestas a sublinhar os impactos que a greve de motoristas acarreta, apontando estarmos à beira da “paralisação generalizada do abastecimento de bens alimentares” e a um passo de ter o “pandemónio instalado”. Pedem-se militares nas ruas a conduzir camiões ou polícias nas bombas de gasolina e a proteger os motoristas que não fizerem greve.

Após ter patrocinado várias reuniões entre patrões e camionistas, o Governo parece ter decidido afastar-se do mediatismo — e até esta segunda-feira também das negociações, –, talvez para evitar danos colaterais. É que, depois de o “acordo para se negociar um acordo” ter sido saudado como uma vitória — e até foi para o PS, já que evitou uma greve nas eleições Europeias –, agora ficou a lição de que não há vitórias ao intervalo. Diferentes interpretações dos diferentes documentos assinados pelas partes levaram tudo à estaca zero — ou estaca -10, tendo em conta que as relações entre patrões e sindicato só azedaram durante as reuniões — e a greve tornou-se inevitável, estando quase aí à porta.

Face a esta inevitabilidade, e atentos agora aos problemas e protestos dos motoristas, as reações não se fizeram esperar. Quais são então os impactos estimados da greve? Que setores serão mais afetados? E quanto ao Governo? Aprendeu alguma lição em abril?

Distribuição: entre prateleiras vazias e reforço preventivo

As principais empresas de distribuição remeteram qualquer posição sobre a greve dos motoristas para a associação do setor, a APED e para esta a visão é simples: Ou os supermercados são incluídos nos serviços mínimos ou as prateleiras ficarão vazias.

“Não é só uma paralisação dos motoristas de matérias perigosas, é mais abrangente, o risco é maior”, apontou Gonçalo Lobo Xavier, diretor-geral da associação que reúne o Continente, Pingo Doce ou Lidl, ao Dinheiro Vivo.

“A distribuição de bens alimentares deve ser incluída nos serviços mínimos, caso a greve dos motoristas venha a avançar, tendo já formalizado o pedido junto da Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT)”, avançou o mesmo responsável à Lusa. Sem esta inclusão, a ameaça dos sindicatos de que faltará comida nas prateleiras dos supermercados, será concretizada.

Em declarações ao ECO, a Makro, distribuidora grossista, assumiu uma postura mais tranquila tanto sobre os impactos na distribuição como em todo o canal Horeca. Sim, haverá impactos, mas parte destes são antecipáveis e anuláveis através de um reforço preventivo de stocks.

“No âmbito da greve dos motoristas de transportes de Materiais Perigosos e Mercadorias prevista para 12 de agosto, a Makro Portugal informa que todos os seus serviços se encontram garantidos e assegurados”, sublinhou fonte oficial da empresa ao ECO. “Recomendamos, inclusive, a todos estes clientes de Hotelaria e Restauração o reforço antecipado de aquisição de bens não perecíveis, como mercearia, bebidas, descartáveis, e também, congelados, laticínios e charcutaria.”

Hotéis, restaurantes e cafés: danos irreparáveis

Do lado da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) não se olha para a paralisação de 12 de agosto com tranquilidade. A greve irá provocar “danos irreparáveis” a toda a economia, dizem. E a paralisação pode muito bem interromper a distribuição de refeições ou alimentos em lares, prisões ou hospitais, diz a associação que representa a hotelaria, restauração e similares.

“Perante a nova ameaça, a AHRESP vem uma vez mais chamar à atenção para os prejuízos que uma greve dos motoristas de materiais perigosos irá provocar, ao comprometer o abastecimento regular de combustível”, começa por apontar a associação em comunicado sobre a greve. Mas esta abrange muito mais do que motoristas de matérias perigosas, lembram.

“A AHRESP não pode deixar também de alertar para as consequências desta greve, ao impedir o abastecimento de matérias-primas, como produtos alimentares e que são indispensáveis para se confecionarem refeições que são fornecidas em empresas e instituições, mas sobretudo em locais sensíveis, como é o caso dos lares, das prisões e dos hospitais.”

A associação apela assim ao “bom senso de todas as partes envolvidas, para que rapidamente cheguem a um entendimento”, mas sublinhando que é ao Estado quem compete minimizar os impactos negativos da paralisação — “caberá ao Estado garantir que recorrerá a todos os meios ao seu alcance para minimizar os impactos negativos” da greve.

Hotelaria: Impacto “em cascata violentíssimo”

Fechando a análise à associação que representa apenas o setor hoteleiro, as previsões também são negras. “Isto tem um impacto em cascata violentíssimo”, alertou a Associação da Hotelaria de Portugal (AHP). E mesmo sabendo que a saúde e a segurança são prioritários, também os hotéis querem estar nos serviços mínimos. Porque até os lençóis podem faltar, sublinham.

“Neste momento, temos dito ‘atenção: os serviços mínimos têm que cobrir todo o território nacional e também ser percentualmente mais elevados, os 30% a 40%, e cobrir todas as áreas’”, afirmou Cristina Siza Vieira, presidente executiva da AHP, à Lusa.

Sabemos que a saúde e segurança são os pilares, mas neste caso é preciso perceber que no mês de agosto há muitíssimo mais gente no território nacional. No ano passado tivemos mais de três milhões de hóspedes do que é habitual só em agosto, e, portanto, temos que ter atenção a este peso de pessoas que usam os serviços de saúde, de segurança e tudo o mais como é o abastecimento”, detalhou a responsável.

“Nós não podemos operar se não tivermos víveres e frescos, mas também se não tivermos carrinhas que distribuem lençóis etc., etc. Não podemos servir os hóspedes se não formos servidos. Isto tem um impacto em cascata violentíssimo”, sintetizou.

Farmácia e agricultura: reforçar stocks e salvar culturas

Quem também já deu a sua antevisão do impacto da greve dos motoristas foram as associações ligadas à indústria farmacêutica, que, do lado dos distribuidores, já solicitou a inclusão na rede de emergência, tal como fizeram os táxis, aliás. A Associação de Distribuidores Farmacêuticos (Adifa) tem “alertado para a necessidade de se manter o critério prioritário e que sejam definidos os procedimentos para o abastecimento das viaturas especializadas que são responsáveis pelo transporte diário dos medicamentos”.

Também a Apifarma veio pedir ao Governo que inclua a distribuição de medicamentos nos hospitais e farmácias e a assistência técnica a equipamentos de análises clínica nos serviços mínimos decretados para a greve dos motoristas de transporte de matérias perigosas.

Já do lado da venda de produtos farmacêuticos, a palavra de ordem é reforçar. As farmácias estão a reforçar stocks e serviços de turno” com o objetivo de evitar grandes filas, conforme apontou Nuno Flora, secretário-geral da ANF.

Sem capacidade de reforçar ou de procurar medidas que reduzam o impacto da greve está a agricultura, cujos timings de colheitas não se sujeitam ao calendário dos dramas humanos. Agosto é mês de várias colheitas e, para as realizar, é preciso ter gasóleo agrícola ou outros combustíveis. Sem acesso a estas, as colheitas perdem-se, explicou o presidente da Confederação Agrícola de Portugal (CAP), Eduardo Oliveira e Sousa, à Lusa. E se as colheitas se perdem, “milhares de pessoas” podem ir à falência, até porque “os seguros agrícolas não contemplam este tipo de situações”.

“Pretendemos que o Governo tome a devida consciência da situação, porque em pleno mês de agosto com temperaturas elevadas, com culturas perecíveis, que têm de ser colhidas em períodos de tempo muito curtos que estão programados há meses, [as culturas] não podem de maneira nenhuma ficar no terreno.” Em causa tomate, a pera-rocha e a uva para o vinho, por exemplo.

No entender da CAP, explicou Oliveira e Sousa, também os agricultores devem ter acesso prioritário “de abastecimento dos postos” de combustível “para que as colheitas não fiquem postas em causa”. Caso contrário, instala-se o pandemónio: Na perspetiva de uma greve que não sabemos quanto tempo demora, é instalado um pandemónio no país e esse pandemónio no setor agrícola é a ruína, pura e simples.”

Mas do lado agrícola os riscos vão além das colheitas, já que muitas explorações de animais estarão igualmente em risco, segundo a análise aos riscos da greve comunicada pela Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais, que avalia “um prejuízo de quatro milhões de euros diários” caso os 1.700(!) camiões que todos os dias transportam matéria-prima ou rações até às explorações fiquem parados.

Esta associação já apelou ao Governo para que considere a alimentação dos animais “como prioritária” na definição dos serviços mínimos, lembrando que além das empresas de rações propriamente ditas, dependem destas “perto de 84.000 explorações pecuárias e a alimentação diária de 9 milhões de galinhas poedeiras para a produção de ovos, 23 milhões de frangos, 1,6 milhões de bovinos, dos quais 235.000 são vacas leiteiras, 2,2 milhões de suínos e 2,5 milhões de ovinos e caprinos”.

Petrolíferas e gasolineiras: do ‘fazer de morto’ às ações preventivas

As empresas petrolíferas foram o ausente mais presente nas reuniões — e fora delas — entre motoristas, empresas de transporte e Governo. São as principais contratantes de serviços de transporte de matérias perigosas e, como tal, são elas que forçam o esmagamento salarial no setor, acusam os sindicatos. Mas na paralisação de Abril a grande maioria das petrolíferas preferiu ‘fazer de morto’ a tomar alguma posição. Agora, optam pela antecipação.

O secretário-geral da Associação Portuguesa de Empresas Petrolíferas (Apetro), António Comprido, em declarações à RTP, explicou que a associação, assim como as empresas, já têm ações em curso para mitigar o impacto da greve.

“As ações são para mitigar o impacto da greve nos consumidores em geral. Passa sobretudo por aprender com o que aconteceu na última greve, ou seja melhorar os canais de comunicação entre os vários intervenientes, como as estações de enchimento e carga, as empresas de transporte, as petrolíferas e também com as entidades que estarão no terreno, sejam as forças policiais, sejam os representantes do Governo”, detalhou ao canal público de televisão.

O representante das empresas petrolíferas acrescentou que além das ações que a Apetro, como associação pode tomar, há também outras medidas que cada uma das empresas pode tomar individualmente e/ou com os seus clientes. “Cada uma das empresas está a tentar fazer o planeamento de abastecimentos de forma a antecipar, dentro do possível, a greve, para que a atravesse da melhor forma possível”, explicou António Comprido. Além disso, há também processos que estão a ser “afinados” com o intuito de mitigar os efeitos da paralisação, mas não mais do que isso.

Já do lado das revendedoras de combustíveis, a associação do setor (Anarec), apelou à distribuição de forças policiais pelas bombas de gasolina mas também na proteção aos motoristas que não tomarem parte na greve ou estiverem a cumprir os serviços mínimos. Para a Anarec, as forças policiais devem também garantir a segurança no acesso aos postos de abastecimento e às plataformas logísticas dos motoristas.

Além disso, é preciso assegurar “uma divulgação ampla da REPA juntos das entidades prioritárias, como forma de facilitar os abastecimentos efetuados por estas entidades”, salientou o presidente da Anarec, Francisco Albuquerque, em comunicado.

Já o regulador do setor preferiu ter uma intervenção mediática focada sobretudo na antecipação. “Mesmo reconhecendo as dificuldades que esta recomendação possa significar para algumas empresas”, a Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE) veio a público recomendar a “todos os postos de abastecimento situados em território nacional, o reforço dos stocks de combustível, acautelando desta forma as existências”.

E o Governo? Greve de combustíveis, sim… o resto logo se vê

Desta vez não foi preciso esperar que o caos se instalasse para o Governo reagir, tendo já sido “anunciadas” uma série de medidas e decisões para mitigar o impacto da paralisação de agosto. Esta é mesmo uma das maiores diferenças entre a greve de Agosto e a de Abril: se em Abril o Executivo não conseguiu prever o impacto, e falhou por inação, agora já ninguém será apanhado de surpresa.

Mas há outra grande diferença: é que em Agosto serão mais motoristas em greve e não apenas de matérias perigosas. Conseguirá o Governo antecipar a maioria dos impactos de uma greve generalizada a todas as mercadorias?

Se olharmos para as promessas feitas nos últimos dias, a dúvida persiste. A rede de emergência de postos de combustível já está criada, já estão a ser criadas “condições para que o abastecimento de gás ao Algarve esteja garantido”, tal como o lançamento de um “sistema logístico alternativo de distribuição de combustíveis no caso de não haver o cumprimento de serviços mínimos“. Contudo, todas estas medidas parecem focadas numa greve de camionistas de matérias perigosas, o que não será o caso. E este pormenor é o ‘ângulo cego’ desta greve.

No desenho do plano de prevenção para a próxima semana, e depois da experiência de abril, o Governo estará a “beber” dos impactos que essa paralisação provocou, tal como estarão a fazer os cidadãos, cada um à sua medida. Porém, e com a adesão dos motoristas de mercadorias “normais” à greve, assim como de outros sindicatos, a que se junta a possibilidade de bloqueios em Espanha, então aí a economia pode enfrentar uma situação de impactos novamente imprevisíveis, já que pode afetar toda a distribuição de mercadorias no país.

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