Aos comandos da DefinedCrowd, que recolhe e enriquece bases de dados para inteligência artificial, Daniela Braga explica que o grande desafio da tecnológica é encontrar pessoas com o skill set certo.
Estudou linguística para ser crítica literária mas o primeiro emprego, na faculdade de engenharia, mudou-lhe os planos. Aos comandos da DefinedCrowd, empresa que recolhe, estrutura e enriquece bases de dados para inteligência artificial, Daniela Braga conta como desenvolveu as suas skills de liderança e explica que o grande desafio da tecnológica é encontrar pessoas com o skill set certo.
Estudou letras mas criou uma startup de inteligência artificial. Como desenhou a sua carreira e quais os pontos de viragem?
Fui sempre muito planeada na minha carreira. Toda a minha carreira foi feita por objetivos, na verdade de três, quatro anos, mesmo na escola. A maior parte das pessoas não se identifica com este modelo mas desde os meus 15 anos que tinha muito claro o meu percurso académico. Sei que é completamente de loucos mas eu era assim. E ainda sou um bocado assim.
Qual era o plano e como foi mudando, fase a fase?
Eu sabia que ia para a faculdade, que ia tirar letras. Ainda que agora eu esteja em engenharia, tirei letras e linguística, e o meu objetivo era tirar mestrado e doutoramento. Assim o fiz, dentro do timeline. E isso foi sempre uma coisa que, até eu fazer 30 anos, consegui cumprir. A licenciatura tirada nos quatro anos, acabada aos 22, e o doutoramento em três anos, e antes dos 30. Essas coisas foram todas planeadas. O que não foi tão planeado foi a mudança de área. A verdade é que vou de letras para engenharia, e isso aconteceu logo no início da minha carreira. Sempre achei que ia estar na Academia e, de repente, sou puxada para a indústria: estes eventos de vida não foram planeados. E também nunca foi planeado eu começar a mover a minha carreira internacionalmente de Portugal para Espanha e, de volta para Portugal, de Portugal para a China e da China para os Estados Unidos. E muitas estâncias alargadas em muitos países, por causa da Microsoft. Isso, de facto, não sendo planeado, mas eu agarrava a oportunidade sempre que havia. Uma coisa que eu acho que fiz bem foi sempre ter tido este sexto sentido para agarrar uma coisa quando aparecia. Isto estava completamente fora dos meus wildest dreams. Quando entrei com 18 anos para a faculdade, nunca imaginaria a minha vida hoje.
O que queria ser nessa altura?
O sonho era ser crítica literária e professora universitária. E realmente comecei esse caminho. Escrevi e fui publicada em revistas de literatura aos 19 anos, e conheci o José Saramago e o Eugénio de Andrade. Foi muito enriquecedor para uma miúda dessa idade estar no meio do créme de la créme da literatura. Mas foi apanhar a oportunidade quando ela surgiu e não ter medo. Mesmo quando toda a gente me dizia: “O quê? Tu vens de linguística e vens fazer um doutoramento em engenharia? Nunca na vida vais conseguir”. Ou “vens da Academia e vais para a indústria? Precisas de um MBA”. E não é verdade. É preciso a pessoa não ter medo da mudança. Porque o problema da maior parte das pessoas é essa mudança é tão enriquecedora que muitas vezes é mais importante ter a coisa toda planeada. Dito isto: tudo planeado ninguém tem mas sou um bocadinho obcecada pelo planeamento… com objetivos.
De crítica literária a CEO de uma startup de inteligência artificial. Como é que a tecnologia surge na sua vida?
Foi por acaso mas nunca mais saí dela. Terminei a licenciatura com o sonho de ser crítica literária, que agora parece ridículo. Estava no ramo científico e tinha a componente linguística ou seja, literatura e linguística. Na verdade eu precisava de um emprego e, por ser de literatura, teria de procurar uma vaga de assistente que, ao acabar o curso em julho de 2000, não estava disponível imediatamente. Pior: o meu mundo era tão reduzido naquela altura que eu achava que a minha vaga de assistente teria de acontecer na universidade em que eu me formei, que hoje também me parece de loucos. Poderia ser em qualquer parte deste mundo gigante mas, na altura, era o que eu pensava era tão fechado, tão pequeno… agora, o mundo é o meu playground.
De repente estamos rodeados de tecnologia, a forma como interagimos com ela é feita de forma e em linguagem natural. A beleza é que a nossa vida melhorou.
Não havendo nada óbvio, surgiu uma bolsa caída do céu, da faculdade de engenharia, à procura de uma pessoa formada em linguística para um projeto de investigação. O prazo de candidaturas já tinha passado mas eu faço uma chamada para a faculdade e falo com o professor Carlos Paim que me informa que a vaga não tinha sido preenchida. Contavam-se pelos dedos as pessoas que tinham terminado, no ramo científico (eram 40 pessoas por ano na universidade do Porto, no meu curso, em linguística, e éramos apenas duas no ramo científico com a componente linguística). Na verdade, parecia que era obra do acaso feita para mim — cumpria o perfil e a posição era absolutamente assustadora, ninguém de letras para engenharia, às escuras, sem saber o que ia fazer lá — e agarrei a oportunidade.
Como evoluiu esse projeto?
Foi muito interessante, tratava-se de fazer o primeiro sistema de síntese de fala para invisuais em português europeu, para poder narrar conteúdo digital. De facto precisava-se da interceção entre linguística e engenharia mas era a primeira vez que estava a acontecer em Portugal e, mesmo na Europa. Os professores que me contrataram disseram-me que toda a gente, por toda a Europa, estava a contratar linguistas nesta área de tecnologias de voz, que era ainda muito ficção científica naquela altura. “Nós não temos ideia nenhuma do que vamos fazer consigo, portanto descubra o seu caminho”, disseram os professores que me contrataram. No início tinha apenas a tarefa de uma transcrição fonética de uma narrativa de rádio e, daí para a frente, descobrir o meu caminho. E foi assim, a minha vida tem sido descobrir o meu caminho, na realidade.
Em que é que o planeamento influencia o trabalho do dia-a-dia na DefinedCrowd?
É muito importante para o que estou a fazer nesta empresas, estamos neste momento a planear o próximo trimestre. O planeamento é importante porque eu acredito que, cada vez que pões um objetivo e o visualizas, as coisas acontecem. O problema é não pores nenhum. Quando começas a visualizar, arranca o processo de encontrar o caminho para chegar lá, seja isto o caminho para terminar o curso ou planear o próximo trimestre ou o próximo ano de uma empresa que está a crescer 10 vezes em receita. Que toda a gente acharia de loucos.
Como é que a tecnologia está a mudar a forma como vivemos?
O facto de estarmos agora sempre com este objeto chamado telemóvel já mostra a nossa dependência da tecnologia. E da mobilidade, tudo passa a ser móvel e tudo está conectado. Estende-se à casa, ao trabalho, à educação, aos hospitais. E de repente em todas as áreas da vida estamos rodeados de tecnologia, a forma como interagimos com ela é feita de forma e em linguagem natural, da forma como comunicamos entre humanos. A beleza é que a nossa vida melhorou. Imagina a eficiência que temos: grava-se esta entrevista, há serviços em português europeu que podem fazer a transcrição automática, de repente fazem sumarização. São tantos os serviços que estão a facilitar a nossa produtividade que uma pessoa nem imagina como é que era a nossa vida antes. Ainda me lembro de passar o meu curso com resmas de fotocópias, de sublinhar e ler, tinha de ser tudo à mão, e a parte de pesquisa tinha de ser nas bibliotecas. Isto não foi assim há tanto tempo.
"Espero que as pessoas percebam que a inteligência artificial não vem tirar-lhes emprego mas, pelo contrário, está a facilitar-lhes e a dar-lhes mais oportunidade de emprego.
”
Mas estamos mais produtivos ou mais dispersos?
Muito mais produtivos. Temos é acesso a muito mais conhecimento digerido, e isso também é uma questão porque há uma componente de separar o trigo do joio, há muita informação e nem toda é boa. Por isso é que, mais do que nunca, os media têm de se especializar, e conhecer a sua audiência. Assim como nós conhecemos a nossa crowd. Temos de segmentar a nossa crowd, e a persona, e servir-lhe aquilo que ela procura de uma forma personalizada. Já não é verdade que one size fits all. Em nenhum mercado.
De que maneira a DefinedCrowd está a mudar a maneira como as pessoas veem a tecnologia?
Espero que as pessoas percebam que a inteligência artificial não vem tirar-lhes emprego mas, pelo contrário, está a facilitar-lhes e a dar-lhes mais oportunidade de emprego. Começa por aí: é um grande mito achar que a inteligência artificial vai tomar conta dos nossos empregos ou os robôs vão tomar conta do mundo. Para já, além de estarmos muito longe de uma coisa dessas em termos de desenvolvimento tecnológico, estamos numa fase em que a inteligência artificial vai tomar conta das tarefas rotineiras, e permitir libertar as pessoas para o que fazem melhor: ser criativos em todas as áreas de conhecimento.
A DefinedCrowd recolhe as imagens, a voz e o texto, mas é realmente fazer o feed dentro de sistemas – que são globais – que realmente facilita mais a vida. Para nós há uma coluna de adoção mas a inteligência artificial está aqui para ficar. E vai ser vertical a vertical, a partir daqui, e geografia a geografia. E vai conquistar o mundo, é como uma revolução. Assim como tivemos a da roda, a da imprensa, a industrial, esta é a revolução da inteligência artificial, não volta para trás também.
Como é que foi crescer tão rapidamente? O que mudou em si?
O que é que eu mudei com o processo? Mudei muito. Tem sido um crescimento pessoal muito interessante, uma montanha russa de emoções, o que significa que muitas vezes estou up up up, e muitas outras também estou down. Isto não é um processo fácil. Estou super apoiada pela minha gente, mas tive muitos momentos de solidão, e de achar que não é que sentisse que estivesse completamente sozinha — nunca estive — mas há aqueles momentos em que achas que “this is what it takes”. E portanto, a visão é tão clara, que vale a pena parte do sofrimento. Mas a recompensa é em múltiplos e múltiplos.
Não sou a pessoa mais fácil para dar um feedback a alguém que está, por exemplo, a fazer uma performance de review e não está a ir muito bem.
Mas nesses momentos pensa na recompensa?
Penso que amanhã é um dia melhor, sempre. Porque é, a verdade é que é. Tenho sempre essa atitude, de ver esse copo meio cheio, e amanhã é um dia melhor. Uma coisa que eu também já aprendi é que Roma e Pavia não se resolvem num dia. E às vezes é preciso perder uma batalha para ganhar a guerra. Todos esses ensinamentos vão acontecendo ao longo do tempo. E depois há tanta coisa maravilhosa que vem de crescer uma empresa com impacto em tanta gente. Não só os empregados da empresa mas a nível da crowd, os clientes. É que, de repente, tens uma responsabilidade de te aguentares. Portanto amanhã tem mesmo de ser um dia melhor.
Quais são os principais desafios da DefinedCrowd neste momento?
Contratar gente para o skill set que precisamos. Estávamos aqui e alguém disse: “Caramba, todos os perfis desta empresa são difíceis de encontrar”. Mas é que são mesmo, não há um que seja fácil. São áreas híbridas ou em que ainda não há uma talent pool suficiente para o mundo de inteligência artificial em que estamos. Por exemplo, áreas híbridas como machine learning e engenharia. Não há essa fusão da mesma pessoa: as pessoas normalmente ou são machine learning ou engenheiros, não são as duas coisas.
Como fazem isso?
Formar não é fácil. O que fazemos é tentar encontrar pessoas com um perfil que seja adaptável. A mais importante característica nesta empresa não é só trazer o skill set certo, é ser aberto à mudança, é essa adaptabilidade. Porque uma pessoa que tem essa capacidade consegue fazer a ponte e o stretch para entender o outro lado que, aliás, foi sempre a história da minha vida: ser adaptável em espaço, geografia, domínio do conhecimento, culturas, à mudança, à imprevisibilidade do dia seguinte. Essa é uma característica fundamental.
Mas isso não faz com que a empresa contrate pessoas muito parecidas?
Não, porque elas vêm de backgrounds muito diferentes, nunca vai ser a mesma combinação. Mas é preciso esse espírito nesta empresa, porque mudamos prioridades. Fazemos um plano e, daqui a 15 dias, é possível que a prioridade mude, o que dá cabo de tudo do que é mais estruturado — sobretudo os engenheiros — porque, de facto, se vem um cliente com um pedido de repente, nós temos que o atender. Mas rompe com o ciclo de desenvolvimento de produto.
A Daniela cofundou a empresa mas teve de assumir o papel de CEO num dado momento. Como foi esse processo de construção de uma liderança?
Eu não fiz nada, isto aconteceu-me. Lembro-me de ter o feedback dos professores na escola primária de que eu mandava em toda a gente. Acho que os líderes se fazem de personalidade, autenticidade. E que as pessoas, ou nascem com isso, ou não nascem. E uma das coisas que eu acho que faço é que as pessoas aproximam-se de mim por magnetismo e não porque eu as obrigo, porque lhes estou a pagar um salário.
"As pessoas que estão a trabalhar comigo não estão a tentar adivinhar a minha agenda, qual é a minha intenção: essa transparência e essa honestidade são tão importantes.
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Nada disto na minha vida é assim: as pessoas estão comigo ou atendem o telefone e estão, no dia seguinte, vindas de empresas importantes, porque trabalharam comigo, sabem como é que é e estão aqui for de ride. Não serei a melhor pessoa a descrever como eu sou enquanto líder. Mas em Seattle tenho uma pessoa que diz que acha que eu tenho um magnetismo infeccioso. É quase uma doença, a gente passa e as pessoas ficam agarradas, contaminadas, ficam ali. Mas ficam ali por vontade. E é um magnetismo positivo, que contagia, dizem eles. Acho que é a minha energia, o meu drive, o meu otimismo, também posso ser muito exigente, muito dura. Este ritmo não é para toda a gente e eu sou muito direta também. Não sou a pessoa mais fácil para dar um feedback a alguém que está, por exemplo, a fazer uma performance de review e não está a ir muito bem. Sou a primeira pessoa a dizer preto no branco o porquê. E não sou a pessoa mais sensível para passar essa informação. Mas acho que, pelo menos, comigo é “o que tu vês é o que tens”. Assim as pessoas que estão a trabalhar comigo não estão a tentar adivinhar a minha agenda, qual é a minha intenção: essa transparência e essa honestidade são tão importantes. Não há nada que me perguntem que eu não diga: eu respondo, não estou com política, nunca fui assim.
Isso funciona como fator de atração para quem vem trabalhar para a DefinedCrowd?
Penso que sim, e é por isso que eu estou muito honrada com estas pessoas todas. Muitas delas foram diretamente contratadas por mim. A contratação é tão difícil que eu, conhecendo muita gente, acho que na minha liderança são as minhas skills de networking. Trabalhei essas qualidades desde que acabei a faculdade. Começou a ser muito óbvio que se não nos conhecerem nunca vamos conseguir ser ajudados, e essa visibilidade e influência é assim. O networking é ótimo porque as pessoas não devem nada a ninguém e só te ajudam, sobretudo em tenra idade, porque há alguma coisa em ti que elas gostaram. Essa é a principal lição: o poder do networking pays off later, always. E faz parte das skills de liderança.
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Daniela Braga, da DefinedCrowd: “A inteligência artificial vai facilitar e a dar mais oportunidade de emprego”
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