No dia em que os funcionários públicos param em protesto contra o "ofensivo" aumento salarial de 0,3%, o secretário-geral da UGT desafia o Governo a ponderar um aumento extraordinário.
Humilhante. É este o adjetivo escolhido pelo secretário-geral da UGT para descrever os aumentos salariais de 0,3% propostos pelo Governo para os funcionários públicos. Em entrevista ao ECO, Carlos Silva contraria o discurso do Executivo e deixa claro que este reforço remuneratório não é o anunciado sinal de regresso à normalidade. “Ninguém se sente compensado”, garante o sindicalista.
Perante esta proposta de aumento — que justifica, de resto, a greve levada a cabo pelos trabalhadores do Estado esta sexta-feira — Carlos Silva desafia o Governo a pensar num “aumento suplementar” a pôr em prática ainda este ano, à semelhança do que acontecerá, por exemplo, com as pensões mais baixas.
E poucos dias depois de o ministro da Economia e do ministro do Trabalho terem rumado, pela primeira vez em 2020, à Concertação Social, o dirigente da UGT deixa um aviso: “Aquilo que [o Executivo] conseguir alcançar na Concertação Social, exigimos e reivindicamos que seja aplicado ao setor público”.
Os funcionários públicos fazem greve esta sexta-feira em protesto contra os aumentos remuneratórios de 0,3%. Desde 2009 que a maioria dos funcionários públicos não tem aumentos salariais. Não acha, portanto, que estes 0,3% podem, pelo menos, ser entendidos como um sinal positivo no sentido do regresso à normalidade, como diz o Governo?
Não me parece em absoluto que isso tenha a ver com o regresso à normalidade. Quem é patrão, como o Estado, deve perceber que, nas empresas, um trabalhador tem a necessidade de ver o seu trabalho valorizado. Quando um trabalhador está há muitos anos sem um aumento salarial por razões diversas, porque uma empresa teve dificuldades de sustentabilidade, porque a economia andou ao contrário e o que é necessário é manter o emprego, o funcionário público tem uma função nobre que é garantir os serviços públicos para todos os cidadãos. Se durante dez anos, não tem um aumento salarial significa que a valorização do seu esforço, do seu trabalho não está a ser reconhecido pelo patrão, neste caso o Estado.
Ora, aquilo que sempre defendemos é que valia mais o Governo ter discutido com os sindicatos. A pecha deste Governo, a parte negativa, é não ter conseguido sentar-se à mesa com os sindicatos da Função Pública e ter negociado que tipo de aumento salarial estava em causa, o que é que podia ser discutido e negociado, quais eram os valores disponíveis para distribuir por todos os trabalhadores. Há aqui um princípio quase anti sindical do atual Governo, ostracizando o movimento sindical.
A pecha deste Governo é não ter conseguido sentar-se à mesa com os sindicatos da Função Pública e ter negociado que tipo de aumento salarial estava em causal quais eram os valores disponíveis para distribuir por todos os trabalhadores. Há aqui um princípio quase anti sindical do atual Governo.
Naturalmente, as reações não se fizeram esperar: uma unanimidade de respostas negativas por parte de todos os sindicatos da Função Pública e da parte dos próprios trabalhadores. Como o grosso dos trabalhadores da Administração Pública ganha salários à volta de 700 euros, o que significa os 0,3%? Significa mais dois euros, por mês, brutos. Não é significativo e, portanto, o Governo acaba por sair muito mal na fotografia, porque aplica de uma forma transversal a toda a Administração Pública — independentemente dos salários e dos escalões — uma uniformidade que não se aceita, nem se compreende e de costas voltadas para o movimento sindical.
Teria sido preferível concentrar a verba que o Governo diz ter disponível, os tais 70 milhões de euros, apenas nos salários mais baixos, como aconteceu em 2019?
Os sindicatos da Administração Pública têm filiados em todos os escalões. Aquilo que temos ouvido dentro dos sindicatos da UGT é defenderem que não deve ficar nenhum trabalhador sem um aumento salarial. Também porque aqueles que têm remunerações mais altas têm uma função com outra responsabilidade. Portanto, na opinião dos nossos sindicatos é que ninguém devia ficar sem um sinal de comprometimento do Governo em valorizar todos os trabalhadores da Administração Pública…
E a subida de 0,3% não é esse sinal? Defendem um sinal mais significativo para todos, é isso?
Um sinal significativo, porque 0,3% para um salário de 5.000 euros pode significar 15 euros; para um salário de 700 euros ou menos significa dois euros. A pergunta que se faz é: E quem ganhar 5.000 euros, aqueles 15 euros são significativos? O Governo, de alguma forma, deixou todos de fora, porque ninguém se sente compensado com 0,3%, é ofensivo, humilhante e acima de tudo é uma desconsideração para o mundo do trabalho em Portugal, sobretudo quando o Governo atual fez da sua campanha eleitoral a valorização dos salários como uma prioridade para esta legislatura.
O Ministério da Administração Pública escolheu marcar uma nova reunião com os sindicatos a 10 de fevereiro, já depois de o Orçamento do Estado passar pelo Parlamento e da greve da Função Pública. Porque é que o Governo não usou esta reunião para evitar a paralisação?
Talvez por erro estratégico e político. Mas há erros que se pagam caro. De qualquer forma, fui convocado para uma reunião no próximo dia 5 com a senhora ministra do Trabalho e com a senhora ministra da Administração Pública, às 9h30. Ora, se duas ministras com o peso que têm, quer no setor privado, quer no setor público, nos convocam, não sei que novidades é que nos vão dar, mas é um sinal positivo. Como disse a FESAP e o seu secretário-geral, José Abraão, se não houver condições de alocar desde já ao Orçamento do Estado para 2020 um qualquer sinal mais substancial para os trabalhadores da Administração Pública, os nossos sindicatos queriam o compromisso que fosse ainda alocado, pelo menos, durante este ano, um aumento suplementar para os trabalhadores da Administração Pública. 0,3% é pouco.
Um aumento extraordinário tal como vai acontecer nas pensões mais baixas?
Um aumento extraordinário. É uma possibilidade que os nossos sindicatos abriram. Queremos ver se o Governo a explora para vir ao encontro das expectativas dos trabalhadores. Sendo 0,3% algo tão ínfimo do ponto de vista dos rendimentos de cada trabalhador, era preferível que o Governo tivesse chamado os sindicatos e tivesse dito que não tinha condições de aumentar salários este ano e que olhássemos para 2021 com outro compromisso mais alavancado em outros resultados económicos do país. Mas o Governo não fez isso e quando não fez errou e como errou tem de ser penalizado por isso: temos uma greve à porta no dia 31.
Entende a reunião de dia 5 como um sinal positivo, mas o encontro vai acontecer já depois da greve anunciada. Não o preocupa o facto de o Governo não ter marcado uma reunião para evitar essa paralisação?
Julgo que o Governo, nos últimos tempos, tem tentado encontrar soluções de confronto com o movimento sindical. E quando estamos perante uma decisão que é provocar o confronto é para dizer aos portugueses que o movimento sindical está fraco, fragilizado, representa, como diz a OCDE, cerca de 15% dos trabalhadores portugueses. Acho que é um erro que vai sair caro, tem saído caro em toda a Europa, sobretudo para os partidos socialistas. Olhe-se para o Partido Socialista grego, francês italiano. [Em Portugal], o PS está no poder. A pergunta que deixo é: o caminho do ostracismo e de costas voltadas com o movimento sindical é positivo ou negativo? Só o tempo o dirá, mas a história repete-se e é sempre de mau tom para quem governa.
Se o Governo vier a aumentar os salários mais baixos da Função Pública mais de 24 euros passará a ter de aplicar uma taxa de retenção de IRS a essa remuneração. Entende o novo mínimo de retenção na fonte como um indicador de que tal será o máximo até onde o Governo poderá aumentar os salários, na nova ronda negocial?
Espero que o Governo tenha a intenção que os salários mínimos continuem isentos de IRS. Acho que é uma boa política. Por isso é que a UGT suscitou a necessidade de ser reverem as taxas de IRS. Iremos voltar a colocar esta questão no dia 5 e também no dia 10.
O clima está prejudicado pela intransigência do Governo em vários setores fundamentais da Administração Pública em não se disponibilizar para negociar. Parece que é moda alterar o paradigma da negociação.
Já disse várias vezes que há um conflito entre os sindicatos e o Governo. Com uma greve à porta, estão reunidas as condições para sindicatos e Governo discutirem o quadro estratégico plurianual para a Função Pública? Ou o clima está prejudicado?
O clima está prejudicado não por parte dos sindicato. Mas pela intransigência do Governo em vários setores fundamentais da Administração Pública em não se disponibilizar para negociar. Parece que é moda alterar o paradigma da negociação. Ao longo da nossa história democrática, sempre foi uma coisa dual ou tripartida. O que acontece nos últimos anos é que o Governo chega às reuniões presumíveis de negociação e diz que isto é aquilo que têm para nos dizer, ponto final. O que é que resta para os sindicatos? É calar e ir embora? Ou é tentar obter uma negociação? Uma negociação é ouvir dos dois lados, conjugar posições. O que queremos é que o Governo respeite o movimento sindical.
Chegou a dizer que a subida de 0,3% na Função Pública é uma bofetada com luva de boxe, que é agravada pelo referencial de 2,7% sugerido pelo Governo em sede de Concertação Social. O Executivo está a ser incoerente?
Não se pode exigir ao privado aquilo que não se fizer no setor público. O Governo é o maior empregador do país, com cerca de 720 mil trabalhadores. Se vai à Concertação Social e tenta que a valorização dos salários também seja puxada para cima pelo setor privado, que exemplo é que os 0,3% dão ao setor privado em Portugal? Esta é que é a grande questão.
Na terça-feira, a Concertação Social percebeu que o Governo [fez uma] chamada “entrada de leão e saída de sendeiro”. Primeiro, apresentou um quadro aos parceiros sociais onde diz seria importante e até expectável que se conseguisse um acordo de rendimentos e de competitividade e que os dois fatores macro económicos — a inflação e os ganhos de produtividade — apontariam para um aumento referencial da contratação coletiva de 2,7% em 2020. Afinal, na terça-feira já foi por setor, porque há uma rejeição total dos parceiros sociais em relação às propostas do Governo. Queremos dinamizar a contratação coletiva, mas a pergunta que já colocámos é: como é que o Governo quer dar o exemplo ao privado se não faz o seu trabalho de casa? Como é que pode exigir ou recomendar 2,7%, se não dá o exemplo?
O Governo levou em novembro os tais 2,7% à Concertação Social. Agora já diz que nunca indicou esse número como referencial. Está em causa um recuo do Governo perante as críticas dos parceiros sociais?
Não acha que é estranho dizer que foi mal entendido por seis parceiros sociais e pelo presidente do Conselho Económico e Social (CES)? Todos entendemos ao contrário, é esquisito…
E o Governo só vem “corrigir” dois meses depois…
Só vem corrigir dois meses depois. É o equivalente àquela anedota que se conta que alguém se engana na entrada para a autoestrada e vai no sentido contrário e diz “olha vêm todos em sentido contrário, só nós é que estamos bem”. O Governo, mais uma vez, cometeu uma imprudência ao lançar o debate para a necessidade de se valorizar a contratação coletiva e os salários… aliás, começou bem ao dizer que o acordo seria sobre rendimentos e inverteu a posição quando veio dizer que também vamos discutir competitividade. Afinal, nem as empresas conseguiram colocar todos os seus objetivos no Orçamento do Estado. Vêm dizer os quatro empregadores com assento na Concertação Social que a proposta do Governo de Orçamento do Estado é “poucochinho”, utilizando uma expressão do nosso primeiro-ministro, quando disse que o resultado de António José Seguro tinha sido “poucochinho”, mas ganhou em duas eleições. Nós também acompanhamos que é “poucochinho”. Para o movimento sindicato não é “poucochinho” é nada.
Esta mudança de posição do Governo que refere agora que quer trabalhar em referenciais setoriais é um sinal positivo?
Parece-me que é outro caminho que vem ao encontro de algumas preocupações lançadas pelas entidades empregadoras e que pode, claramente, reforçar a possibilidade de se reforçarem salários na generalidade dos setores. Não vemos inconveniente em que seja o Governo a colocar claramente quais são os setores, as áreas, as empresas onde efetivamente esse referencial pode fazer o seu caminho. Mas nunca esquecendo que, para nós, qualquer referencial deve ser balizado pelas normas da contratação coletiva.
Como é que se poderá pôr em prática este referencial, mesmo a nível setorial? O acordo terá uma lista de “fasquias mínimas” por setor? Será uma fórmula?
Essa foi a pergunta que foi colocada ao Governo pelos parceiros sociais em sede de Concertação Social, porque o Governo é que tirou o coelho da cartola. [Fê-lo] porque, porventura, um aumento salarial de 2,7% pode ser perfeitamente exequível num setor, mas noutro poderá não ser. Deverá ser a negociação coletiva entre patrões e sindicatos a fazer esse caminho. Quanto à questão concreta do acordo…
O ministro não respondeu à pergunta que diz que foi feita?
Não respondeu. A presidente da UGT no final da reunião disse que sabemos que o Governo alterou a sua estratégia, perante a rejeição liminar das entidades empresariais, mas ficou agora de pensar e colocar na próxima reunião aos parceiros sociais como é que quer alcançar este objetivo. Acima de tudo o que efetivamente queremos é, de alguma forma, obter um acordo de Concertação Social onde a questão da valorização dos salários possa ser o ponto forte e com o acordo de todos. Não ostracizar os parceiros sociais empregadores, nem os sindicais. E há uma coisa que o Governo não pode esquecer: aquilo que conseguir alcançar na Concertação Social, exigimos e reivindicamos que seja aplicado ao setor público.
Disse que este Orçamento é pouco ambicioso. As propostas de alteração apresentadas pelos vários partidos, incluindo o próprio PS, melhoram esse cenário?
Consta-se que há cerca de 1.100 propostas de alteração ao Orçamento do Estado. Todas e quaisquer propostas têm sempre um objetivo: melhorar o Orçamento. Entendemos que era um Orçamento desequilibrado. Compreendemos que o Governo teve necessidade de esvaziar algumas acusações vindas dos parceiros sociais, mas os patrões já disseram que foi poucochinho. Nunca lhes chega aquilo que é apresentado por qualquer Governo, nunca é suficiente. Se o Governo quiser dar no Orçamento do Estado, que dê. Se vier pedir aos parceiros sociais sindicais mais contrapartidas para os patrões sem uma grande contrapartida para os trabalhadores, não há Concertação Social. Não estamos nessa. Apenas se houver claramente uma compensação para os trabalhadores é que Orçamento será equilibrado.
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“Teria sido preferível que o Governo tivesse dito que não tinha condições de aumentar os salários da Função Pública”, diz Carlos Silva
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