Governo não adotará “receita” da austeridade: “Não temos de andar a punir ninguém”
O primeiro-ministro garante que a "receita" para resolver a crise não é a da austeridade, como em 2008. "Já na altura não acreditei nela", diz António Costa.
O primeiro-ministro garante que não adotará a receita de austeridade de há dez anos, alegando não olhar para a crise como um momento de punição, e defende não haver motivos para antever cortes salariais na administração pública.
“Nós não olhamos para esta crise como um momento de punição e de castigo. Há dez anos houve uma crise de financiamento do Estado e toda a administração pública pagou com ‘língua de palmo’ os custos dessa crise financeira do Estado”, afirma António Costa em entrevista à agência Lusa. “Desta vez, estamos perante uma crise económica geral, onde não temos de andar a punir ninguém”, acrescenta.
Neste contexto, o primeiro-ministro assegura que não tenciona aplicar no futuro “a mesma receita que há dez anos foi aplicada para enfrentar a crise”. “Podem estar seguros de que não adotarei a mesma receita, não só porque já na altura não acreditei nela, como, sobretudo, porque a doença agora é claramente distinta da anterior. Não há atualmente uma doença das finanças do Estado, que, felizmente, conseguiu sanear as suas finanças públicas. Esta crise é uma crise económica, global, que resulta de uma crise sanitária. Portanto, querer aplicar a mesma receita que já se demonstrou errada há dez anos seria agora duplamente errado”, reforça.
“Temos bem consciência de que as receitas de austeridade já demonstraram há dez anos que são o pior caminho para o sucesso e que o melhor caminho é mesmo apostar na preservação do emprego e na defesa dos rendimentos como condição essencial para que a economia possa recuperar o mais rapidamente possível”, sublinha.
“Sabemos que não vamos sair sem dor [desta crise], essa dor já está a existir, e também não devemos tentar sair desta crise como tentámos sair da anterior, porque sabemos que foi o caminho mais penoso, mais lento e menos eficiente”, destaca.
António Costa acrescenta outro argumento para se demarcar das anteriores políticas de austeridade: “No dia em que for possível reabrir as lojas e os restaurantes que estão fechados, se as pessoas tiverem uma grande quebra de rendimentos, então, bem podem estar abertos, mas continuarão a não vender”. “Quando puderem reabrir, é fundamental que os clientes não deixem de ir lá por razões de saúde económica”, sustenta.
Para o primeiro-ministro, a atual crise “não é um castigo”. “O que temos de fazer é ser solidários e apoiar aquelas empresas e trabalhadores que estão a ser atingidos pela crise. E a forma de os apoiar não é pôr todos em crise, mas, pelo contrário, acelerar este processo de recuperação”, sublinha.
O chefe do executivo destaca, aliás, que “há empresas privadas que, felizmente, estão bem e até há as que estão a contratar pessoas, como é o caso do setor de distribuição, que tem de reforçar a sua capacidade de distribuição ao domicílio”. “E há muitas empresas industriais que estão a contratar pessoal, reforçando as suas linhas de produção, designadamente as do setor farmacêutico ou do setor dos plásticos, que estão agora a produzir viseiras como nunca imaginaram”, aponta.
“Temos de sair com a menor dor possível desta situação de crise que já muitos estão a sentir. No dia em que a pandemia deixar de abrir o telejornal, aquilo que vamos ter é seguramente o número de desempregados e os danos sociais gerados por esta crise”, prevê.
António Costa afirma que o Estado está a tentar responder a este problema procurando manter as empresas “vivas” e não sacrificando postos de trabalho, razão pela qual foi criado um pacote de linhas de crédito que podem chegar a 13 mil milhões de euros no seu conjunto.
O objetivo, diz, “é permitir às empresas responder a problemas de liquidez, às necessidades de reconversão e à sua manutenção” e, ao mesmo tempo, “procurar travar o mais possível a perda de rendimento por parte das famílias”. “Agora, é evidente que não é possível passar por esta crise sem custos das empresas, sem custos nos rendimentos, e sem custos no emprego”, frisa.
"É evidente que não é possível passar por esta crise sem custos das empresas, sem custos nos rendimentos, e sem custos no emprego.”
Há “enormíssima probabilidade” de o Governo ter de apresentar um Orçamento retificativo
No plano financeiro, o primeiro-ministro antecipa que “com enormíssima probabilidade” terá de haver um Orçamento suplementar para 2020, antes de se chegar ao Orçamento de Estado para 2021.
Questionado sobre a possibilidade de voltar a haver cortes salariais para os funcionários públicos, António Costa responde: “Não vale a pena começar a antecipar aquilo que seguramente todos queremos evitar”.
“Não há nenhuma razão para que isso aconteça e já temos um número de problemas suficientes no presente para começarmos a imaginar problemas futuros. Temos de nos concentrar em estancar a pandemia, porque quanto mais depressa isto acabar mais depressa retomaremos a normalidade, que vai ser lenta de retomar”, advoga.
Para este efeito, António Costa aponta como decisivo o papel da União Europeia. “Com esta crise, a Europa vai ter seguramente de compreender que vai ter de reforçar muitíssimo a sua base industrial e Portugal tem de se colocar nessa primeira linha do reforço da base industrial e da capacidade de produção nacional, além do mais porque somos dos países que ainda sabemos fazer muitas das coisas que a Europa se habituou a deslocalizar para o Oriente”, diz.
A título de exemplo, cita a área têxtil e a fileira das indústrias dos moldes e plásticos. “Temos de compreender que, nesta reorganização que necessariamente vamos ter de ter nestas cadeias de valor à escala global, o país vai ter de se reposicionar. Esse é um cenário que temos de possuir a capacidade de explorar”, remata.
“Temos agido em regime de salvação nacional e assim devemos continuar”
O primeiro-ministro considera que o Governo já atua em regime de salvação nacional na luta contra a pandemia de Covid-19 e salientou que é essencial que a unidade se mantenha na fase de recuperação dos danos económicos.
“É fundamental que a unidade que temos demonstrado na fase da crise seja a unidade que temos de demonstrar na fase de recuperação. Tal como agora o controlo da crise da pandemia sanitária tem exigido o esforço e o empenhamento de todos, a recuperação dos danos sociais e económicos dessa crise também vai exigir o esforço e o empenho de todos”, afirma António Costa.
O primeiro-ministro não vê qualquer motivo “para achar que o enorme sentido de responsabilidade que todos tem demonstrado caduca no dia em que for levantado o estado de emergência ou no dia em que se considere que esta primeira vaga da pandemia está ultrapassada”.
“Todos devem estar conscientes que, depois desta primeira vaga, outras vagas podem vir. Este esforço não é uma corrida de 100 metros, é mesmo uma maratona. Portanto, este esforço de contenção, de disciplina, e este sentido de responsabilidade e de unidade nacional vai ter de se prolongar por bom tempo”, defende.
Questionado sobre a ideia de um futuro Governo de salvação nacional, António Costa contrapõe: “Temos agido em regime de salvação nacional e é assim que devemos continuar a agir”. “Tem havido oposição, umas vezes com maioria e outras sem maioria na Assembleia da República. Há propostas que o Governo tem apresentado e que são aprovadas por unanimidade, outras não. Portanto, esse debate e essa pluralidade são muito importantes”, ressalva.
Neste ponto, o primeiro-ministro elogia o comportamento do sistema político português. “Por vezes, acho que somos excessivamente modestos em compararmo-nos no plano internacional, mas conseguimos viver este estado de emergência com a democracia a funcionar em pleno, sem que a liberdade de informação seja minimamente beliscada”, sustenta.
António Costa aponta mesmo que, neste período de estado de emergência, até foram reforçados os direitos dos cidadãos, “seja os que estavam em liberdade, seja os que estavam em reclusão no cumprimento de penas, mas que, por isso, não deixam de ser cidadãos, como bem tem sublinhado o cardeal patriarca”.
O líder do executivo invoca também decisões do Governo no sentido de “reconhecer direitos de acesso ao sistema de saúde àqueles que estão em Portugal ainda sem oportunidade de regularizar o seu título como residentes ou refugiados”.
“E é nestes momentos de crise, quando é fácil sacrificar os valores, que temos conseguido enfrentar todo este processo sem colocar em causa os valores essenciais. Acho que os cidadãos têm dado uma demonstração extraordinária do seu civismo e do seu sentido de responsabilidade. E nós temos de sentir que temos o estrito dever de estar à altura do exemplo que os cidadãos nos têm dado”, acrescenta.
“Portugal ainda não começou a descer do planalto para o sopé”
O primeiro-ministro considera também que ainda não chegou o momento de abrandar o estado de emergência e garante que, quanto ao regresso à normalidade, não há ninguém mais ansioso do que ele. “Pode discutir-se se Portugal já chegou ou não ao planalto [na trajetória do número de casos de infeção pelo Covid-19], mas o que é certo é que não começou a descer do planalto para o sopé. Se houver agora algum abrandamento, corremos o risco de perdermos tudo aquilo que já conquistámos até agora”, diz António Costa em entrevista à agência Lusa.
Para o primeiro-ministro, ainda é cedo para se poder decidir a reabertura da atividade económica, na medida em que se está numa fase em que continuam a registar-se casos novos e é possível começar a ter um aumento do número de mortos. “Se havia dúvidas no momento em que foi decretado o estado de emergência, agora não pode haver dúvidas de que este não é seguramente o momento de deixarmos de o ter, seria um mau sinal”, afirma.
Apesar disso, o primeiro-ministro concede que “é credível poder-se trabalhar como cenário na ideia de que, no final de maio, ou princípio de junho, o país poderá estar numa situação muito distinta ao nível da pandemia”. “Mas não quero estar a adivinhar, porque até agora não temos qualquer evidência científica de que assim seja”, ressalva.
“No dia em que começarmos a aligeirar as medidas de contenção, inevitavelmente vamos ter de novo um crescimento do nível de contágio”, diz António Costa. “Teremos de manter [essas] medidas, enquanto a saúde pública assim o exigir”, sublinha, acrescentando: “Ainda não chegámos ao ponto de poder dizer que é possível ter já um calendário para começarmos a retirar as medidas de contenção”.
Precisamente com esse objetivo, o primeiro-ministro anuncia que vai ouvir um conjunto de instituições sobre a atual situação económica e financeira e a sua previsão, bem como um conjunto de economistas sobre como deve ser o relançamento da economia. Entre essas instituições, que ouvirá a partir de terça-feira, conta-se o Banco de Portugal, o ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão) e a Universidade Católica. Só depois disso o Governo começará a trabalhar com um cenário de recuperação mais rápida ou mais lenta.
“Não quero passar de otimista irritante para pessimista irritante, mas ainda estamos numa fase anterior a essa”, adverte António Costa. “Não haverá nenhum empresário mais ansioso do que o primeiro-ministro para o país ultrapassar esta situação. Agora, há uma responsabilidade que os portugueses assumiram coletivamente com um notável civismo que é não facilitar”, declara.
Segundo o líder do executivo, o debate também depende das medidas que a União Europeia vier a tomar sobre o fundo de recuperação económica. “Aí ficaremos a saber se temos uma bazuca ou uma fisga para combater a crise económica”, destacou.
O primeiro-ministro diz que não tem ainda estimativa sobre a queda do PIB (Produto Interno Bruto), mas que será “seguramente radical”. “A desaceleração verificada no final do ano estava já a ser contrariada em janeiro e fevereiro deste ano. A taxa de desemprego, os números do crescimento e das exportações, em fevereiro, foram absolutamente extraordinários. A queda que se seguiu terá sido seguramente muitíssimo maior e a questão é saber quanto tempo durará”, acrescenta.
"É credível poder-se trabalhar como cenário na ideia de que, no final de maio, ou princípio de junho, o país poderá estar numa situação muito distinta ao nível da pandemia.”
Costa promete acesso universal à internet e a equipamentos no próximo ano letivo
O primeiro-ministro afirma, na mesma entrevista, que no próximo ano letivo haverá acesso universal dos alunos dos ensinos básico e secundário à internet e a equipamentos informáticos, considerando que este investimento avultado é essencial face aos riscos de pandemia.
“Assumimos um objetivo muito claro: Vamos iniciar o próximo ano letivo assegurando o acesso universal à rede e aos equipamentos a todos os alunos dos ensinos básico e secundário”, declara António Costa em entrevista à agência Lusa.
Questionado se cada aluno vai ter um computador, retomando-se uma medida tomada pelos governos de José Sócrates no âmbito do programa “Magalhães”, o líder do executivo responde que “é muito mais do que isso”.
“É muito mais do que ter um computador ou um tablet. É ter isso e possuir acesso garantido à rede em condições de igualdade em todo o território nacional e em todos os contextos familiares, assim como as ferramentas pedagógicas adequadas para se poder trabalhar plenamente em qualquer circunstância com essas ferramentas digitais”, adianta.
Confrontado com o facto de se tratar de um investimento avultado e a concretizar já no início do próximo ano letivo, António Costa defende que esse investimento “é essencial e é uma medida de prevenção do risco de pandemia”.
Interrogado se se trata de um programa “Magalhães 2”, agora mais ambicioso, o primeiro-ministro reage com uma nota de humor: “Para sermos generosos com os nossos vizinhos espanhóis até podemos dizer que é um programa [Juan Sebastián] Elcano, porque completa a viagem iniciada”.
Segundo António Costa, a atual crise provocada pelo surto do novo coronavírus “demonstrou uma extraordinária capacidade de adaptação das escolas a uma nova situação”. “De facto, a necessidade aguçou o engenho e em duas semanas avançou-se mais na literacia digital do que seguramente se teria avançado em muitos anos de uma ação programada. Temos de aproveitar este impulso para cumprir aquilo que era uma das grandes metas do programa do Governo: Acelerar a transição para a sociedade digital”, sustenta.
Mais importante, no entanto, de acordo com o primeiro-ministro, é “garantir a necessidade de que, aconteça o que aconteça do ponto de vista sanitário durante o próximo ano letivo, não se assistirá a situações de disrupção, porque houve outra face da moeda que esta crise demonstrou”.
“As desigualdades são muito mais persistentes do que aquilo que muitas vezes se pensa e, quando elas se diluem na mesma sala de aula, elas acentuam-se quando cada um vai para as suas casas. Ou por insuficiência da infraestrutura de comunicação, ou por falta de equipamentos, ou por diferentes de habitação, ou, ainda, por diferentes contextos familiares, essas desigualdades tornam-se mais visíveis. Por isso, o recurso à televisão, obviamente, é um contributo para mitigar essa desigualdade, mas aquilo que temos de superar é mesmo essa desigualdade”, justifica.
Questionado se a perspetiva de regresso às aulas presenciais em maio mereceu a concordância das associações de pais e dos sindicatos dos professores, António Costa alega que o Governo procedeu a audições, quer com os parceiros educativos, quer com os partidos com representação parlamentar ainda antes de encerrar as escolas.
“E procedemos à audição de todos antes de tomarmos esta decisão [de eventual reabertura das aulas presenciais]. Para este programa seja possível de cumprir, é fundamental que as pessoas ganhem confiança. É necessário assegurar que vamos ter o menor número de pessoas nas escolas, que vamos as pessoas o mínimo tempo possível nas escolas e com a máxima segurança possível ao nível pessoal e da higienização dos espaços escolares. É necessário reunir o conjunto destas condições para que professores, trabalhadores não docentes, famílias e alunos tenham confiança de que podem ir à escola”, salienta.
Para o primeiro-ministro, “tão ou mais grave que os danos causados pelo vírus são os danos causados pelo pânico que o vírus gera”. “Não estamos só a combater uma pandemia viral, mas, também, uma pandemia de pânico. Para isso, é necessário reforçar as condições de confiança e de segurança de todos”, acrescenta.
(Notícia atualizada às 12h08 com mais informação)
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