Queixas por racismo são muitas mas e as condenações? São poucas

Desde 2017 foram condenadas pelo crime de discriminação racial apenas 13 pessoas nos tribunais portugueses.

Nos últimos dias, por todo o mundo, manifestantes insurgiram-se contra a morte de George Floyd, um cidadão afro-americano que morreu asfixiado devido a violência policial, nos Estados Unidos. Vários foram os protestos que se registaram em diversos países do globo – incluindo Portugal – exigindo igualdade e condenando a atitude das forças policiais norte-americanas. Mas em Portugal qual será a realidade? Como é punido o racismo? Será necessária uma revisão legislativa? A Advocatus foi falar com especialistas que admitiram que existem várias queixas, mas que as condenações são muito poucas.

Apenas em 1995 é que o racismo começou a ser punido em Portugal, como crime de discriminação racial. Mas com o passar dos anos, o âmbito da infração estendeu-se a outras formas, abrangendo a discriminação em função da raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica.

“A constituição de organizações que incitem ou encorajem a discriminação, os atos de propaganda da mesma e a participação nessas atividades, bem como o seu financiamento, são puníveis com pena de prisão de um a oito anos. Por seu turno, a atuação pública isolada, através da provocação de atos de violência, da difamação ou da injúria de pessoas ou de grupos de pessoas, a ameaça e o incitamento à violência e ao ódio, são puníveis com pena de prisão de seis meses a cinco anos”, explicam Ana Rita Duarte de Campos e Pedro Barosa, sócios contratados da Abreu Advogados.

Mas a discriminação pode ser punida também quando seja efetuada através dos meios virtuais. “Diríamos mesmo que o crime de incitamento ao ódio tem aí, nos dias de hoje, a sua via privilegiada, tendo em conta a forma como o mundo passou a comunicar, através, por exemplo das redes sociais”, referem os sócios da Abreu Advogados.

O Código Penal português, no artigo número 240.º, prevê o “crime de discriminação racial e incitamento ao ódio e à violência, que tem como propósito proteger a igualdade entre os cidadãos e evitar a colocação em perigo da integridade física e da honra das pessoas”, refere Nuno Igreja Matos, advogado associado da Morais Leitão.

O advogado explica ainda que o homicídio ou a ofensa à integridade física, quando praticados com motivações de ódio racial, são também “objeto de uma punição mais pesada, que, no caso do homicídio, pode conduzir à aplicação da pena mais pesada vigente no ordenamento jurídico português, isto é, vinte e cinco anos de prisão”.

Sobre a necessidade de uma revisão legislativa neste âmbito, Nuno Igreja Matos considera que não existe lacuna de punibilidade que justifique a introdução de novos crimes ou o agravamento de crimes já existentes. “O direito penal, de forma direta e indireta, garante já a abrangência e a punição de atos ofensivos de discriminação racial e de atos praticados com essa motivação”, acrescenta.

Por outro lado, Raquel Caniço, advogada da Caniço Advogados, entende que se deveria rever e agravar o valor das coimas por não serem dissuasoras para o cometimento dos ilícitos. “A discussão principal, não será tanto na melhoria da redação legislativa das normas, mas nas razões que levam à ausência de decisões judiciais condenatórias com base neste tipo de crime, a par das pouquíssimas coimas aplicadas no âmbito dos processos de contraordenação”, considera.

“Queixas por crimes de racismo existem várias. Mas as condenações são muito poucas”

Ana Rita Duarte de Campos e Pedro Barosa, sócios contratados da Abreu Advogados, explicam que “queixas por crimes de racismo existem várias. Mas as condenações são muito poucas”. Para os advogados existe uma “tímida aplicação, pelos Tribunais, no que toca ao crime previsto no artigo 240.º, do Código Penal, por ser de difícil prova a real causa e motivação desses comportamentos ilícitos”.

“De um ponto de vista criminal, são pouco expressivos os números conhecidos publicamente sobre condenações pelo crime de discriminação racial, 13 pessoas desde 2017, algumas por crime de discriminação religiosa. No entanto, dados mais recentes revelam um aumento no número de denúncias e de investigações pela prática deste crime nos últimos anos”, explica Nuno Igreja Matos, associado da Morais Leitão.

De um ponto de vista criminal, são pouco expressivos os números conhecidos publicamente sobre condenações pelo crime de discriminação racial, 13 pessoas desde 2017, algumas por crime de discriminação religiosa.

Nuno Igreja Matos

Associado da Morais Leitão

O advogado refere ainda que tem existido um aumento visível da aplicação das infrações previstas na Lei n.º 39/2009 e na Lei n.º 93/2017, sobretudo na punição de condutas racistas, xenófobas e intolerantes em contexto desportivo.

Há participações criminais, mas muitas vezes acabam em arquivamento e há casos que podem conter factos que tenham conexão com o racismo, mas invariavelmente o enquadramento jurídico efetuado pelo Ministério Público acaba por ser ofensa à integridade física, injúria, resistência e coação sobre funcionário, entre outros”, conta Raquel Caniço.

A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), segundo os sócios da Abreu Advogados, tem “competências muito relevantes e que devem ser preservadas e promovidas”. Esta comissão pode receber denúncias, reencaminhar para outras autoridades competentes, abrir processos de contraordenação e decidir e aplicar coimas no âmbito dos mesmos.

“Ora, se algumas das práticas que dão azo a esses processos são criminosas à luz do Código Penal, deve competir apenas ao Ministério Público instaurar esses processos e dar-lhes a devida sequência, cabendo depois aos Tribunais a aplicação das respetivas penas”, acrescentam Ana Rita Duarte de Campos e Pedro Barosa.

Em março, o deputado do partido Chega, André Ventura, entregou no Parlamento um projeto de lei que pretendia extinguir esta comissão de forma a acautelar que “a liberdade de expressão não fique melindrada”. Nuno Igreja Matos considera que a extinção da CICDR poderia levar a um “enfraquecimento institucional dos mecanismos de análise legislativa e de sensibilização pública para problemas relacionados com desigualdade e discriminação racial”.

André Ventura, deputado do partido ChegaHugo Amaral/ECO

Embora o advogado da Morais Leitão afirme que é livre o debate sobre a necessidade de uma comissão desta natureza, o “princípio e o direito à igualdade estão previstos na Constituição e vinculam todos os cidadãos e todos os atos legislativos, incluindo no que respeita à proibição da desigualdade baseada em razões raciais ou étnicas“. “A vigência e o valor fundamental desse princípio não estão na livre disponibilidade de qualquer deputado”, acrescenta.

O princípio e o direito à igualdade estão previstos na Constituição e vinculam todos os cidadãos e todos os atos legislativos, incluindo no que respeita à proibição da desigualdade baseada em razões raciais ou étnicas.

Nuno Igreja Matos

Advogado associado da Morais Leitão

Raquel Caniço considera que a CICDR deveria ser autonomizada, “no sentido de ser totalmente independente e não depender do Alto Comissariado para as Migrações, nem deveria ter uma estrutura tão pesada na sua comissão permanente”. Sobre a proposta apresentada pelo partido Chega, a advogada afirma que a extinção seria “contrária a todos os tratados internacionais a que Portugal tem aderido”.

A questão da liberdade de expressão, a que o senhor deputado se refere é que este direito fundamental emerge da procura da verdade, da autodeterminação democrática de cada um de nós, que por sua vez, promove o controlo da atividade governativa e do exercício do poder, sobretudo, no discurso público e da opinião pública. Mas este direito não é, nem pode ser absoluto”, nota a advogada.

Para Raquel Caniço seria interessante analisar-se a lei do financiamento dos partidos políticos que “incitem ao ódio, racismo, violência, diria até de incitamento à exclusão social e discriminação em geral, contempla a perda do recebimento de subvenções, por exemplo”.

“Discurso do ódio e discriminação racial e étnica são problemas à escala global”

O aumento dos níveis de escolaridades em Portugal não implica necessariamente uma diminuição dos discursos de ódio ou a reações perante a diferença racial ou étnica. “O discurso do ódio e a discriminação racial e étnica são problemas à escala global, que afetam mesmo os Estados com melhores índices de escolaridade, e que, por conseguinte impõem uma resposta de prevenção e punição concertada”, refere Nuno Igreja Matos.

Raquel Caniço considera que nos últimos anos as organizações governamentais e não-governamentais têm levado a cabo um trabalho “grandioso”, sensibilizando através de diversas ações e campanhas o combate ao racismo e xenofobia e outras formas de discriminação. “No entanto, o fenómeno do discurso populista de incitamento ou de banalização do racismo e da discriminação em geral emerge não em contextos de níveis maiores ou menores de escolaridade, mas em momentos de crise económica“, acrescenta.

A advogada admite que a discriminação é transversal a toda a sociedade, seja ela intelectualmente mais esclarecida ou não e que, em Portugal, “os níveis de desemprego elevado, salários baixos, a dificuldade no acesso à educação, saúde, justiça e à habitação” são fatores decisivos para o aumento da criminalidade e do racismo, xenofobia e da discriminação.

“Um relatório da Agência da União Europeia para os direitos fundamentais sobre a discriminação racial e exclusão social que afetam especificamente as pessoas de ascendência africana identifica a Finlândia, a Áustria e o Luxemburgo como os países como mais índices de discriminação e racismo e estes países têm bons níveis de escolaridade. Curiosamente Portugal vem no fim da lista”, conclui a Raquel Caniço.

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