• Reportagem por:
  • Marta Santos Silva

O mundo (e Portugal) está assim tão mal? Cinco quadros respondem

A pobreza cai a pique, a mortalidade infantil também, cada vez mais pessoas sabem ler e enquanto planeta estamos cada vez mais livres. Então porque é que parece que vamos de mal a pior?

Acha que o mundo em geral está a ficar pior, melhor, ou nem uma coisa nem outra? Uma sondagem conduzida em vários países pela empresa de sondagens YouGov mostrou que apenas 3% das pessoas em França e 4% das pessoas no Reino Unido acreditam que o mundo está a melhorar. Mesmo no país mais otimista — a China — só 41% pensam que as coisas em geral estão a ficar melhores.

Foi perante esta perceção que o investigador da Universidade de Oxford Max Roser decidiu fundar um projeto que mostrasse, com estatísticas e uma visão longa e global, que estamos a melhorar. Chama-se Our World In Data e serve para reunir estatísticas que ponham o desenvolvimento mundial em contexto: “Não existe forma de saber como as condições de vida no mundo estão a mudar sem bons trabalhos estatísticos”, escreve Roser na apresentação do projeto. A ideia é fugir ao dia-a-dia das notícias sobre acontecimentos isolados e tentar retratar melhor o progresso — lento e nada cinematográfico — da população mundial.

Mas o projeto terá razão de ser? Estamos de facto melhores em todas as frentes? O ECO traz-lhe cinco indicadores que ajudam a perceber como vai o mundo, e enquadra ainda a situação de Portugal: onde ganhamos, onde perdemos, onde temos que melhorar? Tudo, claro, a pensar a longo prazo.

Saúde: Ainda há espaços onde melhorar

"A Lição de Anatomia do Dr. Tulp", pintado por Rembrandt em 1632.
“A Lição de Anatomia do Dr. Tulp”, pintado por Rembrandt em 1632.Rembrandt

“Uma das razões para não vermos o progresso é que não sabemos quão mau era o passado”. É assim que Max Roser começa um texto acerca da melhoria das condições de saúde por todo o mundo ao longo dos últimos séculos.

O progresso é claro e os principais motivos conhecidos: não só as inovações na área da investigação de saúde, como a descoberta das vacinas ou da penicilina, tiveram um impacto grande na redução da mortalidade das doenças, também uma sensibilização para a higiene e uma melhor qualidade de vida ajudaram a melhorar a saúde.

E se isso aconteceu mais cedo nuns países e mais tarde noutros, uma visão global de um indicador como a mortalidade infantil ajuda muito a perceber a evolução da qualidade dos cuidados de saúde mundiais. Enquanto em 1960 ainda morriam mais de 180‰ crianças antes de fazerem cinco anos, em 2015 esse valor já caiu abaixo dos 43‰. Trata-se de uma conquista, mesmo que as taxas variem de país para país.

Portugal é um dos países onde este indicador é exemplar. “Temos um dos níveis mais baixos do mundo” de mortalidade infantil, explica ao ECO o investigador Miguel Gouveia. “Quase que já nem há assim muito espaço para melhorar”. Em 1960, a cada mil crianças que nasciam em Portugal, 77,5 morriam antes de fazerem um ano. Em 2015, esse número tinha descido para 2,9.

Crianças por mil nados-vivos que morrem antes dos 5 anos (Mundo)

Fonte: Banco Mundial (Valores em permilagem)
Fonte: Banco Mundial (Valores em permilagem)

Mas ainda há desafios, sublinha o economista. “Temos uma esperança de vida cada vez maior, mas o que as estatísticas nos dizem é que é vivida com grande incapacidade”, afirma. “Os nossos desafios são reduzir a incapacidade e os problemas de saúde dos adultos e dos idosos”.

Pedro Pita Barros, economista e vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa, vê espaço para melhorar “na capacidade organizativa de um Serviço Nacional de Saúde para lidar com uma população envelhecida com condições crónicas”, sublinhando que os doentes crónicos são muito diferentes entre si, “no que consideram relevante para a sua qualidade de vida e para a sua capacidade de viver com a doença”.

"Estimativas antigas referem que um aumento de um [ano] na esperança de vida à nascença se reflete num aumento do PIB em 4%.”

Pedro Pita Barros

Economista

Com maior saúde, a economia também sai a ganhar. Afinal, se o desenvolvimento económico aumenta a saúde das pessoas — com mais rendimentos, públicos ou privados, as pessoas têm melhores cuidados de saúde e também a oportunidade de fazer escolhas de vida que levem a maior saúde — também as pessoas mais saudáveis impulsionam a economia. “As pessoas com mais saúde são mais produtivas”, resume Miguel Gouveia.

“Uma população ativa com melhor saúde é mais criativa (favorece a inovação) e mais produtiva, com menor absentismo laboral e com maior capacidade de aprendizagem”, completa Pedro Pita Barros. “Estimativas antigas referem que um aumento de um [ano] na esperança de vida à nascença se reflete num aumento do PIB em 4%”, acrescenta, salvaguardando que a relação não se verifica necessariamente entre despesa pública na saúde e crescimento económico.

Pobreza: “São precisas medidas estruturais”

'Portrait of Sir Francis Ford's Children Giving a Coin to a Beggar Boy', pintado por William Beechey em 1793.
‘Portrait of Sir Francis Ford’s Children Giving a Coin to a Beggar Boy’, pintado por William Beechey em 1793.

Cada dia entre 1990 e 2015, 130 mil pessoas deixaram de estar em situação de pobreza extrema, altura em que começou o período de redução mais drástica deste indicador. Atualmente, cerca de 700 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza extrema, segundo a definição do Banco Mundial (terem menos de 1,90 dólares por dia para sobreviver).

Ainda há muito a fazer para erradicar a pobreza no mundo, mas importa ter em conta, alerta o Our World In Data, que no princípio do século XIX a situação era dramaticamente invertida: a vasta maioria da população mundial vivia em circunstâncias de grande privação. O gráfico abaixo demonstra com alguma clareza como, à medida que a população mundial aumentou, também aumentaram a criação de riqueza e a sua melhor distribuição.

População mundial em pobreza extrema

Fonte: Our World in Data (Valores em milhões de pessoas)
Fonte: Our World in Data (Valores em milhões de pessoas)

Também em Portugal “temos um ciclo evolutivo de redução da pobreza que vem desde o fim do século passado até 2009”, explica ao ECO Carlos Farinha Rodrigues, investigador do ISEG e da Fundação Francisco Manuel dos Santos. “Entre 2010 e 2012, tivemos um agravamento dos principais indicadores da pobreza, com uma inversão da tendência”.

O investigador esclarece que esse período foi marcado em parte pelos impactos da crise, entre os quais o aumento do desemprego, e também por certas políticas públicas que agravaram a pobreza. Os indicadores de 2015 “parecem de alguma forma sugerir” que a tendência de redução já está a começar a ser retomada, embora seja cedo para o dizer com certeza.

Farinha Rodrigues sublinha ainda que nos últimos 20 ou 30 anos Portugal tem implementado políticas tendo em vista a redução da pobreza, dando o exemplo do Rendimento Social de Inserção e do Complemento Solidário para os Idosos. “Estas medidas, de forma diferente, tiveram um importante papel na redução da pobreza”, esclarece. O especialista enfatiza também a importância da melhoria das condições de vida da população, como o aumento dos níveis médios de escolaridade e a melhoria da qualidade das relações laborais, como fatores na redução da pobreza desde o final do século XX.

Para o futuro, porém, é importante fazer uma distinção: “Há que diferenciar muito bem o que são medidas imediatas do que são medidas sustentadas no longo prazo”, afirma Carlos Farinha Rodrigues. “No curto prazo temos um conjunto de medidas de política social que podem atenuar os principais fenómenos de pobreza, mas que nunca os resolverão de forma sustentada“.

Qual seria a abordagem possível para resolver estruturalmente a pobreza em Portugal? A da educação. “A educação é o fator mais importante em termos do impacto sobre os níveis de pobreza”, afirma o investigador. “Na via em que permite alterações significativas no modelo de funcionamento da nossa sociedade”, que tem a sua base numa economia de baixos salários, esclarece.

Liberdade: “É preciso educar para a liberdade”

"Liberdade de expressão", pintado por Norman Rockwell em 1943.
“Liberdade de expressão”, pintado por Norman Rockwell em 1943.

Um dos valores principais para avaliar a qualidade de vida numa sociedade pode bem ser o regime político em que se vive. Se recuarmos dois séculos, mais de um terço da população vivia em colónias, e quase todos os outros viviam em países com regimes autocráticos. Após períodos conturbados na história mundial, com revoluções, conflitos independentistas, duas guerras mundiais e um longo período de descolonização, atualmente mais de metade da população mundial vive em democracia.

Para ilustrar esta evolução, o Our World In Data apoia-se na classificação feita pelo índice das ciências sociais Polity IV, que de acordo com vários indicadores — como a competitividade e abertura das eleições de cada país, os sistemas de verificação do poder executivo, ou a participação política — atribui pontuações para distribuir os regimes por várias categorias. Os regimes podem ser democráticos, autoritários, ou anocráticos (o que significa que são regimes intermédios com traços democráticos e autocráticos e marcados pela instabilidade). O gráfico abaixo mostra bem como a distribuição da população mundial pelos diferentes regimes políticos tem mudado.

População mundial a viver em cada regime político

Dados: Our World in Data (Valores em mil milhões de pessoas)
Dados: Our World in Data (Valores em mil milhões de pessoas)

“O mundo está melhor”, resume o politólogo José Adelino Maltez. “Há mais liberdade de consciência na Rússia, há menos fome na China, há menos pobreza na América do Sul. Sem sombra de dúvidas, o mundo está melhor.

Para José Adelino Maltez, investigador no ISCSP da Universidade de Lisboa, importa manter os conceitos bem claros. “A liberdade não se confunde com a democracia, porque pode haver formas de democracia que não são liberais. É fácil de explicar: a liberdade de que falamos é uma democracia que admite a minoria, e concebe que a minoria possa vir a ser maioria”, explica, exemplificando com a eleição de Adolf Hitler como um exemplo de uma eleição democrática que não foi liberal.

Para falar de liberdade em Portugal, o politólogo começa por lembrar: “Convém recordar uma coisa muito simples que às vezes anda esquecida: este regime, desde a Constituição de 1976, foi o único que não teve presos políticos. Estamos a viver uma experiência única na história portuguesa”.

Mas isso não significa que não haja por onde melhorar. “Como é que está a liberdade em Portugal? Está bem e recomenda-se, mas é preciso cultivá-la”. Para tal, importa que haja “educação para a liberdade”, especialmente num tempo em que os populismos voltam para os holofotes nas democracias mundiais. “Se não educarmos, estaremos a permitir que alguns inimigos se aproveitem das liberdades demoliberais, eventualmente para as destruir”, explica. “Tem de haver um combate, que antes de mais tem de ser um combate de ideias”.

Educação: “As medidas têm de ser devidamente avaliadas”

Ilustração de uma universidade, 1350, assinada por Laurentius a Voltolina.
Ilustração de uma universidade, 1350, assinada por Laurentius a Voltolina.

Em 1820, só uma em cada dez pessoas sabia ler. Hoje, 85% das pessoas são letradas. Em apenas dois séculos, a exceção tornou-se na norma. Em valores brutos, a diferença é ainda mais notória: se em 1800 havia 120 milhões de pessoas que sabiam ler e escrever, há hoje 6,2 mil milhões, sublinha o Our World In Data.

A maior parte do progresso a desenvolver atualmente é nos países em vias de desenvolvimento. Em Portugal, por exemplo, os censos de 2011 mostraram que 5,2% da população era analfabeta — na sua maioria idosos.

Literacia mundial, 1800-2014

Fonte: Our World In Data (Valores em mil milhões de pessoas)
Fonte: Our World In Data (Valores em mil milhões de pessoas)

“Houve um progresso muito grande em termos educacionais”, afirma Pedro Lynce, antigo ministro da Ciência e do Ensino Superior, sublinhando, por exemplo, a diferença entre os alunos no Ensino Superior, que após o 25 de Abril eram apenas 30 mil e são atualmente mais de 350 mil.

“Progredimos muito, sem dúvida, mas podíamos ter ido mais longe. Nunca houve coragem de fazer um pacto para a educação”, propõe. Para Pedro Lynce, a educação não tem resultados imediatos e, por isso, “as medidas têm de estabilizar e ser devidamente avaliadas”.

A avaliação das medidas implementadas para expandir a literacia e a educação é essencial para melhor perceber os resultados das políticas e para construir as políticas seguintes conhecendo os impactos, afirma. E embora inicialmente, quando havia poucos recursos, fosse importante arrancar com o pouco que se tinha, “à medida que avançamos, cada vez mais se nota a necessidade de um pacto para a educação”, reforça.

População: “Temos de mudar os estilos de vida”

"Velha fritando ovos", de Diego Velázquez, pintado em 1618.
“Velha fritando ovos”, de Diego Velázquez, pintado em 1618.

Mais uma vez, os números falam por si. Se no início do século XX a população mundial chegou aos dois mil milhões, o número de pessoas no planeta quadruplicou até à atualidade e ainda não parou de crescer. A estimativa do Banco Mundial prevê que em 2100 haja mais de 13 mil milhões de habitantes na Terra.

Se para os otimistas do Our World In Data esta evolução é marcadamente positiva, um “feito tremendo” por “mostrar que os humanos pararam de morrer ao mesmo ritmo que os nossos antepassados morreram durante milénios”, nem todos veem a explosão demográfica desta forma. E enquanto o projeto de Max Roser dá a ideia de que, com a diminuição da fertilidade (número de filhos por mulher em idade fértil) que se começa a verificar por todo o mundo, a população mundial já está a abrandar o seu crescimento, a verdade é que ela vai continuar a aumentar ainda durante todo este século.

Maria João Valente Rosa, a demógrafa à frente da Pordata, é perentória: “A história da explosão demográfica está muito longe de chegar ao fim”. E perante o aumento drástico da população, colocam-se duas questões essenciais: a primeira é a da sustentabilidade, ou seja, se o planeta é capaz de suportar tantas pessoas, e a segunda é de estilos de vida, e dos impactos que estes têm nos recursos mundiais. “Se a população do planeta tivesse o estilo de vida da população dos Estados Unidos, seriam já preciso 4,4 planetas Terra”, exemplifica. “Temos de mudar, e será que nos estamos a preparar para esta mudança?”

População mundial de 1950 a 2100

Fonte: Banco Mundial. Dados em milhares de milhões de pessoas.
Fonte: Banco Mundial. Dados em milhares de milhões de pessoas.

Além de aumentar, a população mundial também vai envelhecer. Mesmo atualmente, “embora existam regiões mais envelhecidas que outras, o fenómeno já tem uma escala mundial”, sublinha a diretora da Pordata. Como enfrentar um mundo que se está afigurar muito diferente do dos nossos antepassados?

“Temos de olhar para isto numa ótica de mudança”, sugere Maria João Valente Rosa. “Em relação à questão do envelhecimento”, pensando por exemplo no funcionamento dos sistemas de Segurança Social, “o que tem de mudar não é a demografia, são os modelos de organização social que funcionavam no passado e já não funcionam”.

A autora do ensaio Envelhecimento da Sociedade Portuguesa, publicado pela Fundação Francisco Manuel nos Santos, deixa alguns caminhos possíveis para repensar como a sociedade encara a velhice e por onde podemos começar a dar a volta às estruturas que deixaram de funcionar.

  1. Mesmo as estimativas do INE que são mais otimistas em relação à fertilidade preveem que diminuam as crianças e adultos e aumente o número de idosos. No entanto, “desperdiçamos o grupo que está a aumentar mais, e achamos que não tem mais a dar à sociedade”, diz a demógrafa, propondo que se repense o olhar da sociedade para com os idosos.
  2. É preciso também repensar os sistemas de organização social, que “vêm da época industrial, e a sociedade é totalmente diferente”. Ainda se julga a capacidade de cada um em função da idade que tem, mas Maria João Valente Rosa aponta que hoje em dia a principal medição da capacidade de trabalho não é a condição física mas sim a intelectual, que não diminui com a idade.
  3. “Antes havia idades para tudo” — para estudar, para trabalhar, para descansar. “Não faz sentido”, critica a diretora da Pordata. Tanto a formação como o trabalho e o lazer poderiam fazer parte de todas as fases da vida. Poderia haver uma aposta na reforma em tempo parcial juntamente com uma vida ativa também em tempo parcial, o que “liberta tempo para outras atividades: formação, lazer, e também parentalidade”.
  • Marta Santos Silva
  • Redatora

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