A Euronext e a Associação de Empresas Emitentes querem que as empresas possam financiar-se através do mercado de capitais e assim contribuir para uma recuperação verde da economia portuguesa.
As green bonds e o financiamento sustentável, com vista a uma economia que se quer “verde”, estão na ordem do dia. Bruxelas vai estrear-se na emissão de dívida “verde” e já anunciou que irá aos mercados de capitais para financiar o Fundo de Recuperação europeu. 30% da dívida será emitida através de green bonds (225 mil milhões de euros), tornando a UE num dos maiores emissores de dívida “verde” do mundo.
E se a ideia é validada pela própria União Europeia, o mesmo se aplica às empresas portuguesas: a Euronext Lisbon e a AEM – Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado querem criar, juntas, as condições e ferramentas necessárias para que as empresas possam financiar-se através do mercado de capitais (em vez do tradicional endividamento junto do setor bancário) e assim contribuir para a recuperação verde da economia e para a transição para a sustentabilidade.
O tema estará em debate no ciclo de conferências digitais “Empowering Sustainable Growth”. Subscritoras da “Carta de Compromisso para o Financiamento Sustentável em Portugal”, a Euronext e a AEM, que este ano comemora o seu 10º aniversário, vão realizar três sessões de debate. Dedicada ao tema “A reconstrução da economia: novos dilemas da sustentabilidade”, a primeira conferência tem lugar já esta terça-feira, 22 de setembro, e conta com a presença do ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, como keynote speaker. No painel de debate estará também Filipe Santos, dean da Católica SBE e Miguel Maya, CEO do BCP.
Anfitriões do evento, Isabel Ucha, CEO da Euronext Lisbon, e Abel Sequeira Ferreira, diretor executivo da AEM, explicaram em entrevista ao ECO/Capital Verde (via plataforma online Teams) a importância de temas como a sustentabilidade, fatores ESG (ambientais, sociais e de governance), finanças sustentáveis e mercado de capitais na reabilitação da economia portuguesa.
Fala-se cada vez mais em economia verde e finanças sustentáveis. As empresas portuguesas já conhecem e recorrem a ferramentas como as obrigações verdes?
Isabel Ucha (IU) – Este ciclo de conferências surgiu porque as finanças sustentáveis estão na ordem do dia. Por um lado queremos informar as empresas e os empresários de que há instrumentos de mercado que permitem financiar os projetos relacionados com a sustentabilidade, as alterações climáticas, a preservação dos recursos, a proteção do ambiente, os projetos sociais. Temos um conjunto de instrumentos que hoje estão disponíveis para as empresas, para poderem financiar de forma mais atrativa estes investimentos. E, por outro lado, queremos sensibilizar cada vez mais os investidores para serem criteriosos e informados sobre as finanças sustentáveis, para que as suas poupanças possam ser um contributo e para se protegerem dos riscos inerentes. Há ainda uma outra vertente das finanças sustentáveis, que é a regulatória, já que a UE e vários países estão a fazer um grande esforço para introduzir medidas para canalizar e mobilizar mais investimentos.
Se os investidores estão a fazer este caminho, os emitentes têm de estar preparados para que todos os seus produtos (obrigações, fundos de investimento ETFs, ações) tenham a dada altura um BI de sustentabilidade. Já não basta demonstrar que um instrumento tem rentabilidade financeira, mas temos de acrescentar indicadores de sustentabilidade.
O que levou a Euronext e a AEM a juntarem-se para debater estes temas?
Abel Sequeira Ferreira (ASF) – A AEM comemora agora 10 anos e estamos a organizar um ciclo de conferências sobre o desenvolvimento do mercado de capitais em Portugal. Faz todo o sentido conversar com a Euronext sobre sustentabilidade e finanças sustentáveis. Temos uma visão comum quanto à importância fundamental dos mercados de capitais para o financiamento desta transição para uma economia mais sustentável, mais resiliente, mais circular. É um processo de transformação profundo. As empresas já se encontram na liderança deste processo. Já sabem que este é um processo imparável, que dependerá da inovação que o setor privado consiga trazer para que a transformação se faça de forma mais acessível e generalizada, sem deixar ninguém para trás. As empresas têm consciência que o papel de liderança se concretiza através da introdução nas suas estratégias de elementos sustentáveis. As sociedades cotadas estão muito mais à frente no processo e por isso são líderes, mas podem também ser um farol para as outras empresas. A AEM quer funcionar como um hub de conhecimento, de formação, de promoção, de discussão destes temas. E também para exercer pressão para que a regulação não seja de tal modo esmagadora que tenha efeitos contraproducentes por causa do acréscimo de custos administrativos e financeiros, que possam cair sobre as empresas e bloquear a transição, com cargas burocráticas excessivas. No passado foi isso que aconteceu e continua a acontecer, por cauda do excesso regulatório que nos chega da União Europeia. O governo, através do MAAC, ao convidar a Euronext e a AEM para o grupo de reflexão sobre financiamento sustentável em Portugal, mostrou compreensão face à importância do mercado de capitais para o financiamento da transição, e face à importância das sociedades não financeiras no desenvolvimento das atividades necessárias para essa transição. A CMVM também tem tido atitude de grande abertura e flexibilidade, numa postura de procurar ajudar e não de atirar regulação para cima de um tema que ainda está em desenvolvimento.
O Governo está sensibilizado para a importância da dívida verde?
IU – Foram identificadas pelo Governo algumas áreas onde o tema do financiamento sustentável é fundamental, quer em termos das Grandes Opções do Plano, do trabalho que está a ser feito para o OE 2021 e do Plano Estratégico 20/30. Há uma referência muito clara ao apoio de natureza fiscal, com instrumentos de financiamento de mercado que tenham como objetivo financiar investimento sustentável. Refiro-me às obrigações verdes, que o Governo nesses documentos já manifestou a intenção de traduzir em benefícios ou num regime mais favorável. A Euronext tem vindo a trabalhar no sentido de oferecer vários segmentos de listing de admissão de obrigações com esta temática da sustentabilidade. Começámos pelas green bonds em outubro de 2019, mas já alargámos este segmento às ESG bonds, com quatro categorias: obrigações verdes, sustentáveis (projetos de ambiente e sociais), social bonds e uma nova categoria que se chama SDG linked bonds, associadas aos Objetivos Sociais de Desenvolvimento. Os fundos angariados pelas green bonds por norma destinam-se a projetos concretos (como é o exemplo da central a biomassa da Bioelétrica do Mondego), que por sua vez têm impactos ambientais positivos e são monitorizados ao longo da vida da obrigação. Nas obrigações SDG, estamos a financiar a empresa no seu todo, na sua atividade, e por isso têm de provar que têm uma estratégia de sustentabilidade alinhada com os ODS e o Acordo de Paris. Nos exemplos que já temos destas obrigações cotadas, há emitentes que e comprometem em sofrer uma penalização do juro se não conseguirem cumprir. Já temos algumas obrigações cotadas na Irlanda com este formato e pode vir a ser instrumento com bastante procura. Estamos a desenvolver soluções ao nível da dívida, que vêm ao encontro da necessidade de haver instrumentos destes para que sejam dados benefícios pelo Estado. É um desafio que a Euronext tem vindo a desenvolver nos vários mercados, e em Portugal também.
Como é que a AEM vê este diversificar de tipos de obrigações verdes disponíveis para as empresas?
ASF – A criação destes instrumentos ilustra bem a importância vital dos mercados de capitais para o financiamento da transição para uma economia sustentável. Já existia antes da pandemia, mas tornou-se agora muito mais premente, urgente e importante. Só isso já seria uma tarefa hercúlea, mas temos ainda de juntar a recuperação de uma economia afetada por uma pandemia catastrófica. A importância do mercado de capitais, a necessidade de incentivar o funcionamento do mercado e de uma agenda para o mercado de capitais, tornou-se ainda mais urgente porque o Estado, as empresas e as famílias não dispõem do volume de fundos e de capital necessário para fazer esta transição e esta recuperação. O mercado é fundamental para a capitalização das empresas e para o funcionamento da economia.
Que papel têm os investidores nesta recuperação verde da economia?
IU – Os investidores estão a tornar-se muito mais exigentes relativamente à forma como aplicam os seus capitais. Grandes gestores de fundos já têm ou vão ter em breve todo o seu portfólio escrutinado com critérios ESG, por isso não há outro caminho que não seja o da sustentabilidade e da transparência. E as empresas vão ter de se adaptar. Esse esforço tem de ser feito, mas com o equilíbrio necessário. Nem todas as empresas têm a mesma pegada ecológica, ambiental, social, nem todas as atividades económicas têm as mesmas características, por isso tem de haver razoabilidade na forma como se aplicam critérios e regulação. Se os investidores estão a fazer este caminho, os emitentes têm de estar preparados para que todos os seus produtos (obrigações, fundos de investimento ETFs, ações) tenham a dada altura um BI de sustentabilidade. Já não basta demonstrar que um instrumento tem rentabilidade financeira, mas temos de acrescentar indicadores de sustentabilidade. Estamos a percorrer todos os nossos produtos e a dar-lhes progressivamente novas características. Nas obrigações, fomos ver que tipo de critérios os investidores acham relevantes e abrimos segmentos. A estratégia é passar todos os nossos produtos em revista e atribuir-lhes esse BI de sustentabilidade.
Esta exigência dos investidores prejudica as empresas?
ASF – Os investidores estão a integrar fatores ESG nas suas decisões de investimento e isso está a acontecer a uma velocidade acima do que era esperado há dois anos. Temos os bancos e todos os investidores não só a incluir o ESG, como também a tornar público e a comunicar às empresas que daqui para a frente os investimentos estão dependentes do modo como concretizam critérios ESG. Isso não é prejudicial para as empresas, que vão tomando conhecimento e integrando também estes fatores nas decisões estratégicas. Na AEM criamos esse conhecimento sobre o que andam os investidores a fazer para que as empresas possam adaptar-se em tempo real estando na posse de todo o conhecimento. O perigo de um processo a duas velocidades não vem da introdução de fatores ESG pelos investidores, mas do lado do Estado e das autoridades de regulação e supervisão. O papel do Estado e da regulação deve ser facilitar e não dificultar o processo, minimizar custos para empresas e famílias e assegurar, através de um ambiente regulatório flexível, condições de competitividade para as empresas. Portugal não pode ter uma legislação ou regulação mais exigentes que os outros, e ficar prejudicado. É muito positivo que a CMVM esteja a refletir o esforço legislativo europeu mas sem criar acréscimos de legislação e regulação.
Quando digo que as empresas são líderes deste processo de transição, as cotadas estão num nível de sofisticação muito superior. A generalidade do tecido empresarial português não está ainda neste plano. É necessário que existam ações massivas de formação e sensibilização, para ajudar no universo das PME, para que possam chegar ao mesmo conhecimento.
Apenas as empresas podem e devem recorrer ao investimento sustentável?
IU – A política pública é muito importante e é muito bom que o MAAC esteja alinhado com a área financeira e o mercado de capitais. Parece-me mais importante que este movimento esteja a ser impulsionado pelos investidores do que pelo lado regulatório. É relevante que existam ações de informação e de formação para as pessoas e empresas sobre estes temas. Se alguns estão já familiarizados, muitos não sabem mas até gostariam que o seu dinheiro fizesse a diferença, mas não sabem como fazê-lo. Acho que há um esforço grande a fazer do lado de todos os que lidam com os cidadãos, como o Estado e o sistema bancário, de terem uma ação mais informativa para dar a conhecer as emissões de obrigações sustentáveis. Esta informação não está ainda clara para o aforrador em geral. Tem de ser mais simples e mais clara sobre riscos e retornos.
O que pode ser melhorado?
ASF – É preciso sublinhar que as empresas estão muito limitadas quando fazem o seu reporting e quando produzem os seus prospetos porque a regulação é muito restritiva. Saem documentos com 200 ou 400 páginas e o que é importante fica perdido por excesso burocrático de excesso de informação. Quando digo que as empresas são líderes deste processo de transição, as cotadas estão num nível de sofisticação muito superior. A generalidade do tecido empresarial português não está ainda neste plano. É necessário que existam ações massivas de formação e sensibilização, para ajudar no universo das PME, para que possam chegar ao mesmo conhecimento.
A emissão de green bonds ainda é cara ou já está mais acessível a todas as empresas?
IU – Temos estado a acompanhar o tema do custo de financiamento de muito perto e a nossa conclusão é que nos últimos três anos a procura por green bonds aumentou 50% ao ano. As empresas dizem que inicialmente a taxa de juro não era diferente de uma emissão normal e tinham só custo de ter de fazer um reporting mais exigente. É um custo pequeno se pensarmos em investimentos com maior dimensão. Mas ao longo do tempo, e mais em 2019, tem vindo a chegar feedback de que as green bonds começam a ter taxas de juro mais favoráveis e já há emitentes a beneficiar dessa diferença. Não são todos, mas já acontece. Temos uma empresa muito ativa neste segmento, que é a EDP, e que não estaria a emitir green bonds se o custo não fosse compensador. No mercado português temos dois exemplos extremos: a Biolétrica do Mondego, que fez uma emissão mais pequena, e a EDP que faz emissões muito maiores. Mas nos vários países da Euronext, a diversidade dos emitentes e dos montantes é muito grande, não há só empresas grandes e elétricas a emitir, há empresas de todos os setores, desde a área social à mobilidade elétrica, comunicação digital, uma diversidade enorme. Há oportunidades para todas as empresas e até para os municípios. Temos mantido o diálogo com a Câmara de Lisboa, porque achamos que tem necessidade de financiamento e projetos nesta área. Seria muito interessantes termos uma emissão verde do município e Lisboa, por exemplo. A oportunidade está lá e os investidores também.
O que falta para as empresas poderem financiar-se no mercado de capitais?
ASF – O problema é que Portugal está a falhar em dois aspetos fundamentais. Na capitalização das empresas e a desperdiçar o ciclo virtuoso em termos de financiamento das empresas. Porque continua a tardar uma agenda para o mercado de capitais, que estamos à espera há 10 anos e que sozinhos não conseguimos desenvolver, sem o emprenho e um compromisso por parte do Estado, porque há elementos regulatórios e fiscais que não dependem de nós. Se tivermos essa agenda, vamos ter uma ferramenta indispensável para a reconstrução da economia pós-Covid e para a transição para uma economia sustentável. E vamos criar condições para atrair mais empresas a financiar-se através do mercado. Sem isso não se desenvolve a capitalização das empresas. Faltam ferramentas essenciais para a fase de transição e reconstrução. Assim, continua-se a empurrar as empresas para o caminho do endividamento para se financiarem, o que não se traduz em capitais próprios. A falta de acesso ao mercado de capitais é generalizada na Europa e mais grave em Portugal. A economia portuguesa não vai conseguir dar resposta às necessidades de financiamento sem um mercado de capitais atrativo para que as empresas se financiem através dele. É um instrumento fundamental para o desenvolvimento da economia.
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