Do têxtil ao automóvel, muitas empresas do privado afastam a ideia de "tolerância de ponto" antes dos feriados de dezembro. Querem proteger o negócio e temem consequências da redução da atividade.
O apelo foi lançado pelo Governo, às empresas do setor privado, no sábado passado: uma “tolerância de ponto” aos seus trabalhadores, à semelhança do que acontece nas empresas da Administração Pública, nos dias que antecedem os feriados nacionais de 1 e 8 de dezembro.
Muitas das empresas do setor privado ainda não tomaram uma decisão, mas algumas das que já decidiram recusam o apelo do Governo e não vão conceder a tolerância de ponto nas vésperas dos feriados de dezembro. Os argumentos? Entre as principais razões apontadas estão as consequências negativas que poderiam surgir da paragem de produção, tendo em conta a fragilidade já existente de alguns setores que sofreram e sofrem o impacto da pandemia.
O objetivo deste pedido do Governo às empresas é prolongar para quatro dias — entre 27 de novembro e 2 de dezembro, e 4 e 8 de dezembro –, o tempo em que a circulação é mais reduzida, para combater a propagação do novo coronavírus. Mas as quebras na faturação das empresas, provocadas pela pandemia, e as características do setor exportador, não permitem parar a produção.
“Ainda não temos a decisão tomada, mas não podemos parar, temos de dar comida ao país. As prateleiras não podem ficar vazias”, começa por explicar ao ECO Manuel Tarré, CEO da Gelpeixe. “Entendo o apelo do senhor primeiro-ministro. É de bom senso. Mas a maior parte das empresas privadas não pode dar-se ao luxo de estar parada dois dias, tendo em conta aquilo que tem vindo a sofrer“, acrescenta o responsável da empresa líder no setor dos alimentos ultracongelados que, desde o início da pandemia, sofreu quebras de 25% na faturação e vai encerrar este ano com um valor inferior ao do ano passado.
Na Continental Mabor, a resposta repete-se: “Não podemos parar”, assegura Pedro Carreira, presidente do conselho de administração da empresa da fabricante de pneus, que considera o apelo do Governo “um pedido para as empresas mais modestas”. “No nosso caso, sendo uma empresa de vocação exportadora — 99% do que produzimos — já assumimos compromissos para entrega de pneus aos nossos clientes, e por isso não podemos parar”, sublinha Pedro Carreira.
"Sendo uma empresa de vocação exportadora, já assumimos compromissos para entrega de pneus aos nossos clientes, e por isso não podemos parar.”
O mesmo argumento serve de justificação à empresa de cerâmica Costa Verde, cuja “laboração contínua” impede de autorizar a tolerância de ponto.
Na PSA de Mangualde a situação é a mesma. “Para cumprir com os pedidos do mercado, a Fábrica da PSA Mangualde tem previsto trabalhar os dias 30 de novembro e 7 de dezembro”, explica ao ECO fonte oficial e na filial a recomendação do primeiro-ministro também não vai ser acatada devido ao “impacto da inatividade de dois dias adicionais num setor profundamente afetado pela crise sanitária, e que no acumulado do ano até novembro já regista uma quebra superior a 36% face ao período homólogo do ano passado”. Além disso, a empresa justifica a manutenção da atividade porque mantêm os trabalhadores em teletrabalho ininterruptamente desde abril.
A elevada percentagem de colaboradores a trabalhar à distância é também a razão invocada pela Galp para não acatar o apelo de António Costa. “A evolução do contexto pandémico levou a Galp a adotar novamente no dia 4 de novembro o regime de teletrabalho como regra para todas as funções que possam ser executadas à distância”, sublinhou ao ECO fonte oficial acrescentando que, por isso, “a Galp não vai proceder à dispensa dos seus colaboradores nos dias 30 de novembro e 7 de dezembro, mantendo o regime de teletrabalho”.
Na EDP, os cerca de 70% colaboradores que estão em teletrabalho não vão ter “ponte”, mas a elétrica “decidiu fechar as lojas para evitar as deslocações desses colaboradores” e como não podem realizar as suas tarefas em teletrabalho, “estão dispensados do seu serviço nestes dois dias”, avançou ao ECO fonte ofical da EDP.
Ao contrário destas empresas, a Autoeuropa já tinha optado por paragens de dias de trabalho, devido à quebra na produção, noticiou a semana passada o Dinheiro Vivo. Os operários da Autoeuropa vão trabalhar de 2 a 4 de dezembro, depois param durante quatro dias, incluindo o feriado de 8 de dezembro.
No caso do dstgroup, líder nacional de engenharia e construção, a empresa que conta com cerca de 2.000 trabalhadores vai “atender ao pedido” mas, por enquanto, está a organizar a melhor maneira de o fazer. “Estamos a organizar o trabalho e, de momento, não temos mais informações”, afirma fonte oficial da empresa.
No plano anual da ASM Group, grupo que se dedica à energia e metalomecânica, já está prevista uma ponte a 7 de dezembro, e essa será a única que a empresa terá. “Não vamos fazer mais nenhuma porque o senhor primeiro-ministro pede. O senhor primeiro-ministro que mande na casa dele. Não alinho nisso”, desafia o CEO do grupo, Adelino Silva Matos.
Situação semelhante acontece na Kyaia, dona da marca Fly London, que decidiu considerar dias de férias para as duas “pontes” sugeridas pelo Executivo. “Quando fizemos o planeamento do ano, decidimos dar estes dois dias de férias porque fazia sentido na organização da fábrica”, assinala Fortunato Frederico, líder da empresa.
Ao tomar este tipo de medidas, o Governo coloca os privados numa situação delicada porque, apesar de todas as empresas sofrerem por falta de encomendas, dezembro tem uma responsabilidade altíssima a nível social e de impostos.
Objetivo: não perder clientes
No setor têxtil, o cenário é muito semelhante, principalmente devido aos compromissos de entregas com clientes. Para os empresários do setor, o objetivo é não perder clientes num mês que, por si só, já tem menos dias úteis.
Com quebra na faturação prevista entre os 15 e os 20%, a têxtil Polopique (acionista do ECO) teme que as previsões não sejam animadoras, no mínimo, até meados do próximo ano. “Não vai ser possível, de maneira alguma, satisfazer o apelo do primeiro-ministro“, assegura Luís Guimarães, CEO da empresa.
César Araújo, CEO da Calvelex e presidente da Anivec, lembra que as encomendas canceladas em dezembro correm o risco de ser adiadas para janeiro. Por isso, o pedido de António Costa continua em análise. “Vou ter de ver o planeamento e perceber o que pode ser entregue em janeiro. Mas vou ter de contactar os clientes para o perceber. Se forem flexíveis poderei acatar o apelo do primeiro-ministro, mas se não o conseguir, teremos de trabalhar”, detalha ao ECO.
“O Governo, ao tomar este tipo de medidas, coloca os privados numa situação delicada porque, apesar de todas as empresas sofrerem por falta de encomendas, dezembro tem uma responsabilidade altíssima, a nível social e de impostos“, ressalva Luís Guimarães.
Entre as medidas anunciadas pelo Governo para os próximos 15 dias, figuram ainda o encerramento de creches e escolas nas vésperas de feriado, por isso, combater o absentismo é outro dos fatores de preocupação no setor.
“Entre férias, baixas, assistência à família e quarentenas, qualquer dia as empresas fecham. E depois, quem paga impostos? Esta decisão do Governo ainda vem criar mais problemas de absentismo com o encerramento das creches e das escolas”, acrescenta Catarina Leal, CEO da LEALMAT, empresa de materiais de construção e decoração que emprega cerca de 25 trabalhadores.
“Se o Governo dá tolerância de ponto, indiretamente afeta o setor privado porque temos o problema das creches e escolas. Na empresa, a percentagem do quadro de pessoal feminino é de quase 40% e as mães não têm quem tome conta das crianças. O que cria um problema de absentismo. Já tivemos anulações de encomendas por não conseguir cumprir prazos por causa do absentismo”, acrescenta Luís Guimarães da Polopique.
Crescimento e teletrabalho (também) suspende pontes
A contrariar a tendência de quebra no setor privado, estão as empresas em crescimento e aquelas que conseguem ter a maioria — ou a totalidade — dos colaboradores em teletrabalho. Também nestes casos, as empresas vão dizer “não” à tolerância de ponto pedida pelo Governo.
É o caso da empresa de tintas Barbot, que cresceu mais de 10% no terceiro trimestre (face a 2019), tanto em Portugal, como no resto da Europa e África, devido à continuidade da atividade no setor da construção. Para os feriados, as únicas alterações previstas pela empresa são o encerramento das lojas de venda ao público nas zonas consideradas de “risco extremamente elevado” e “muito elevado”, a partir das 13h00, de 30 de novembro e 7 de dezembro.
Como em trabalho remoto não são necessárias deslocações, nestas empresas a tolerância de ponto também não será opção. É o caso da tecnológica Blip que, nas vésperas dos feriados vai pedir aos sete colaboradores que se encontram atualmente no escritório que se juntem aos 360 que já se encontram em teletrabalho.
A Landing.jobs, empresa especializada em recrutamento IT, também não vai seguir a sugestão do Governo, pois mais de 70% dos colaboradores “são jovens sem descendentes, o que significa que a atribuição do dia poderia conduzir na direção contrária ao pretendido que é manter as pessoas confinadas em casa, sem interagirem fisicamente com outros indivíduos”, detalha ao ECO Diogo Alves de Oliveira, managing director da empresa. Na Landing.jobs, os mais de 30 colaboradores estão em trabalho remoto.
O Mais Sindicato, sindicato dos bancários do sul e ilhas, enviou esta segunda-feira uma carta à Associação Portuguesa de Bancos a apelar aos bancos que concedam a tolerância de ponto e que se encerrem os balcões. Numa nota enviada à Pessoas/ECO, o sindicato denuncia situações de incumprimento do teletrabalho e apela à proteção dos trabalhadores com funções comerciais, que devido à natureza do seu posto de trabalho não podem trabalhar à distância.
(Notícia atualizada com mais informação)
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Privados recusam dar tolerância de ponto como pede o Governo
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