A cultura da organização é mais do que o escritório, espaços de lazer ou frases motivacionais nos elevadores. Constrói-se ao longo dos anos, desde o primeiro dia que o colaborador entra na empresa.
“A empresa entrou para dentro de casa das pessoas e é preciso respeitar, cuidar e confiar. Se as pessoas nos dão essa confiança, temos de retribuir”, começa por dizer Anabela Chastre, CEO da Chastre Consulting. Nutrir é, para a especialista em formação e coaching para líderes, crucial para manter a cultura empresarial à distância. “É esse cuidado que vai ficar como algo positivo na cabeça dos colaboradores. Às vezes, até mais do que uma recompensa física, uma palavra amiga ou uma conversa sincera para perceber como podemos ajudar aquele colaborador que tem um familiar doente fazem toda a diferença”, afirma.
É através desta presença, proximidade e atenção às necessidades dos colaboradores que as empresas conseguem manter e transmitir os seus valores, mesmo num cenário de trabalho remoto. A cultura empresarial deve existir muito mais do que num espaço físico, refletindo-se, sim, na forma de ser e agir da empresa. “A forma de agir da empresa não tem necessariamente de mudar, pode, sim, adaptar-se às novas circunstâncias”, refere Anabela Chastre.
É o que estas empresas têm vindo a fazer. A Leroy Merlin criou linhas de atendimento telefónico para aconselhamento psicológico e enfermagem. A Repsol organizou um webinar sobre o sono, onde deu a oportunidade aos colaboradores de esclarecerem dúvidas e tabus sobre o tema. A IKEA desenvolveu o programa CÖNTIGO para apoiar financeiramente quem está a passar por situações excecionais que não estejam cobertas pelo sistema público, seja saúde, educação ou habitação. A par deste programa, a empresa sueca criou também a iniciativa “Bons Vizinhos”, que promove o apoio mútuo entre colegas, ajudando nas compras ou noutras tarefas que se tornam difíceis de cumprir quando alguém está, por exemplo, em isolamento. Já o grupo Ageas Portugal levou atividades desportivas, sessões terapêuticas de mindfulness e workshops sobre hábitos saudáveis para dentro de casa dos trabalhadores.
"O espaço físico e a partilha informal são muito importantes, mas não são os elementos mais importantes na construção de uma cultura forte.”
No fundo, são as empresas a funcionar como facilitadoras do bem-estar e da qualidade de vida dos seus colaboradores. É a liderança a tornar-se mais próxima (ainda que à distância), cuidadora e atenta às necessidades das pessoas. Para a IKEA, a cultura e os valores estão, acima de tudo, nos comportamentos. “O espaço físico e a partilha informal são muito importantes, mas não são os elementos mais importantes na construção de uma cultura forte”, afirma Cláudio Valente, country people & culture manager da IKEA Portugal, acrescentando que, ainda assim, são inevitáveis readaptações e uma implementação de novas formas de apoio e motivação. Isto “para que a cultura e valores continuem a ser fortalecidos”, refere.
Na Leroy Merlin, as principais dificuldades sentidas na manutenção da cultura organizacional foram, sobretudo, devido à separação parcial das equipas entre teletrabalho e trabalho presencial nas lojas. A situação “levantou desafios diferentes ao nível da comunicação e necessidades específicas de cada colaborador”, conta Ana Herrero, líder de desafio humano na Leroy Merlin em Portugal, à Pessoas. Contudo, apesar da distância física, “é justo dizermos que os valores e o sentimento de pertença foram postos à prova como nunca e que superámos o teste”.
Fora das quatro paredes do escritório, dentro da empresa
O sentimento de pertença constrói-se, também, através da escuta ativa do colaborador, dando-lhe espaço e abertura para dar ideias, contribuir e aportar valor e ser, também ele, um líder na organização. Para a empresa com sede em França, é algo que deve acontecer independentemente da ausência física. “Trabalhamos com base no princípio de que todos os colaboradores são líderes, não no sentido de que todos são chefes mas no sentido que de cada um poder dar o melhor de si próprio, participando na vida da empresa com as suas ideias e praticando a melhoria contínua”, diz Ana Herrero.
Um exemplo disso é a renovação de fardas que ocorreu já durante a pandemia e que resultou da escuta dos colaboradores. “Queríamos perceber como criar uma roupa de trabalho mais adaptada às suas necessidades (tipo de peças, quantidades, rotinas de manutenção e limpeza). Este é um exemplo de como a cultura se desenvolve e evolui com a colaboração de quem faz parte da empresa”, explica.
Para Manuela Pinto, diretora de pessoas e organização da Repsol, a tecnologia é apenas uma ferramenta ou um veículo para transmitir a cultura e continuar a inovar. “Quando bem aproveitada, tem um alcance incrível. Permite-nos encurtar distâncias e esbater barreiras, algo essencial num momento como o que atravessamos”, diz.
Para a líder de pessoas, a forma como temos comunicado nos últimos tempos tem trazido até algumas vantagens no âmbito dos recursos humanos, começando pelo “talento a qualquer hora e lugar, gestão diária mais simples, maior autonomia das equipas e desenvolvimento de espaços virtuais para quem trabalha por projetos ou por objetivos”. Contudo, para encontrar realmente vantagens, Manuela Pinto considera que é preciso “saber onde estamos e para onde queremos ir”.
A questão da transmissão da cultura organizacional passa, em primeira instância, pela implementação dessa mesma cultura. Entre os clientes de Anabela Chastre, comunicar a cultura à distância não tem sido um problema. “Se a cultura já era forte em si, não vai ficar machucada com esta ausência física. Há ausência no espaço, mas não há ausência da chefia nem da empresa”, refere. Aliás, para a CEO da Chastre Consulting, também têm sido criadas várias oportunidades que, sem este cenário de teletrabalho obrigatório, teria sido improvável acontecerem. “Vejo imensas empresas a criarem webinars, em que, muitas vezes, são os próprios CEOs a abrirem para todos os colaboradores as conferências. Qual era a probabilidade de este CEO vir a Portugal falar para os colaboradores? Era mínima, provavelmente. Ou seja, se a cultura for forte, ela aguenta. E até pode vir a ficar mais fortalecida. Se, pelo contrário, a cultura já era fraca, o mais certo é que continue a ser”, remata.
Também Catarina Tendeiro, diretora de recursos humanos do grupo Ageas Portugal, prefere ver o copo meio cheio. A líder acredita que a distância física está, inclusive, a trazer maior proximidade a nível emocional. “Temos muita vontade de nos reencontrarmos fisicamente. O ser humano tem intrínseca a necessidade de pertencer a uma comunidade, de criar dinâmicas”, afirma.
Na WEBrand Agency, a distância física nunca foi um problema. Aliás, apesar de o trabalho 100% remoto já ser uma realidade muito antes da pandemia, é mais o que os aproxima do que separa. O Slack é o ponto de encontro de toda a equipa e serve para manter os colaboradores em contacto ao longo do dia e de toda a semana de trabalho. No entanto, a máxima é respeitar a forma como cada um prefere trabalhar. “Não é imperativo passar o dia de trabalho agarrado ao Slack, mas fazemos questão de ir partilhando entre nós o estado de cada projeto, tarefas em que estamos envolvidos, desabafos, sugestões, comentários ou apenas memes, gifs e piadas que permitem manter todos motivados”, conta Henrique Paranhos, fundador da WEBrand Agency.
Confiar, respeitar e cuidar
Uma empresa é feita de pessoas e a cultura da empresa constrói-se, para o fundador da agência de marketing digital, com base nos relacionamentos entre as pessoas, que devem ser baseados na confiança. “A confiança não é algo que depende única e exclusivamente da proximidade e da localização geográfica”, diz. “Há centenas de empresas que já trabalhavam à distância em todo o mundo antes da pandemia e não há registo de não terem uma cultura empresarial. Pelo contrário, por serem remotas são uma referência nesse sentido”, acrescenta.
Mais experiente nestas andanças do trabalho remoto, Henrique Paranhos considera que o único segredo aplicável a todas as empresas que querem adaptar-se melhor a esta realidade é aprender a confiar, a ser transparente e a comunicar muito, dando feedback e gerindo as expectativas das chefias, dos colegas e dos colaboradores. “E isto não significa estar o tempo todo a reunir por tudo e por nada”, salienta.
Para evitar a “febre” das videochamadas, a Leroy Merlin lançou um guia de “smart working” para os colaboradores em teletrabalho. “Trata-se de um conjunto de regras que apreendemos como necessárias da experiência dos últimos meses, como não marcar reuniões à segunda de manhã e à sexta à tarde ou bloquear uma hora e meia de almoço para garantirmos que, mesmo que uma reunião se atrase, temos tempo para uma pausa”, diz a líder de desafio humano na Leroy Merlin em Portugal.
"Neste momento, o maior desafio é encontrar o ponto de equilíbrio e reaprender como liderar as pessoas e os projetos de uma forma salutar.”
“Assistimos a um excesso de estímulos profissionais, desde emails, reuniões, novos projetos, múltiplos contactos em simultâneo e fora de horas… E a isso acrescem as dificuldades logísticas de gestão da nova vida pessoal”, afirma Catarina Tendeiro. Por isso é tão importante, para a diretora de recursos humanos do grupo Ageas Portugal, estar “ao lado” dos colaboradores e facilitar-lhes a vida, pois “trabalhar em casa e, ao mesmo tempo, tomar conta das crianças ou prestar auxílio a familiares infetados por Covid-19, é complicado. “Neste momento, o maior desafio é encontrar o ponto de equilíbrio e reaprender como liderar as pessoas e os projetos de uma forma salutar”, diz à Pessoas.
Henrique Paranhos faz questão de salientar que trabalho remoto e trabalho a partir de casa por força da pandemia não são o mesmo. “Com várias pessoas do mesmo agregado familiar a terem de partilhar a mesma internet, o mesmo espaço físico e ainda o acompanhamento das crianças, é impossível ter uma boa experiência de trabalho remoto”, considera.
“Se, por um lado, fiquei animado por muita gente ter tido em 2020 o primeiro contacto com o teletrabalho e que este possa, agora, ser visto como uma possibilidade, por outro lado, estou certo de que o desconhecimento e a forma forçada e apressada como foi implementado, bem como o seu carácter excecional, tenham resultado numa ainda maior desconforto com o teletrabalho. Teletrabalho não é estar em casa confinado por imposição devido a haver uma pandemia a assolar o mundo. Não é estar a trabalhar de casa muitas vezes sem condições logísticas, com falta de equipamento apropriado, sem conhecimento das ferramentas, com os filhos para cuidar, com todo o agregado familiar a tentar reunir virtualmente ou a ter aulas em simultâneo e com uma enorme incerteza sobre o futuro e receio constante de contágio pelo vírus”, continua o fundador da WEBrand Agency.
A saúde mental torna-se, assim, uma prioridade que assume uma importância ainda maior. “As empresas têm de trabalhar a saúde mental, cursos de mindfulness, meditação… Os recursos humanos têm de olhar e saber como ajudar os colaboradores para terem a saúde mental bem nutrida”, refere a Anabela Chastre, acrescentando que nutrir as competências das pessoas é, também, extremamente importante nesta fase. “É isto que a empresa tem de fazer para manter a cultura organizacional viva”, remata.
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“Mais do que o escritório”. Como manter a cultura empresarial à distância?
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