Entrevista CMS Energia: “Há tanto apetite que os projetos não chegam para todos”

O papel da energia na recuperação económica, legislação e regulação ambiental, bem como a transição energética, foram abordados na conversa com a equipa de energia da CMS.

Num momento em que as questões energéticas e ambientais estão na ordem do dia, estivemos à conversa com a equipa de Energia & Alterações Climáticas da CMS Rui Pena & Arnaut, que acaba de ser considerada “equipa do ano” nesta área pela Iberian Lawyer. Mónica Carneiro Pacheco, Bernardo Cunha Ferreira e Manuel Cassiano Neves explicam os desafios da área no mercado da advocacia.

Temas como o papel da energia na recuperação económica, legislação e regulação ambiental, bem como, a transição energética, foram abordados em conversa com a sócia da CMS, Mónica Carneiro Pacheco, e os associados coordenadores, Bernardo Cunha Ferreira e Manuel Cassiano Neves.

O escritório tem uma longa tradição na área da energia. Pode explicar-nos porquê?

Mónica Carneiro Pacheco – A CMS tem, de facto, uma longa tradição nesta área. Podemos afirmar que somos a Sociedade com mais expertise acumulado de todo o mercado português. A razão para se ter criado essa tradição, prende-se com o facto de que um dos nossos fundadores, o Dr. Rui Pena, fez a sua carreira nesta área, tendo sido considerado um dos mais prestigiados (se não O mais prestigiado) advogado neste setor. Por isso, por tradição e passagem de testemunho, a sociedade sempre teve, e continua a ter, uma forte presença nesta área.

Manuel Cassiano Neves, Mónica Pacheco, Bernardo Cunha Ferreira, advogados da CMS Rui Pena e ArnautHugo Amaral/ECO

A equipa atual de energia da CMS tem mais quantos advogados face há uns dez anos?

Mónica Carneiro Pacheco – Temos registado ao longo dos anos um crescimento continuo. Esta realidade faz com que, com o objetivo de continuar a dar aos nossos clientes os serviços de excelência que nos caracterizam, estejamos sempre a contratar os melhores advogados do mercado. Podemos afirmar que em dez anos dobramos o número de advogados na nossa área de prática. Por outro lado, contamos ainda com toda uma Organização internacional, com 79 escritórios em 44 países e mais de 5.000 advogados em todo o mundo. Esta realidade permite-nos dar uma dinâmica internacional única no mercado português, num mundo cada vez mais interdependente e globalizado.

Quais os desafios deste mercado?

Mónica Carneiro Pacheco – O setor tornou-se muito apetecível pois tem sido um dos mais ativos, mesmo em tempos de crise. Como tal, um dos maiores desafios para nós enquanto advogados passa pela ampliação da concorrência. Para o mercado em si acaba por ser o mesmo grande desafio: há tanto apetite que os projetos não chegam para todos.

Qual a importância do setor da energia no panorama de investimento e recuperação nacional? Que desafios podemos ter agora e que novas oportunidades poderão surgir?

Mónica Carneiro Pacheco – É enorme, na medida em que a energia é um dos motores da economia. Ora, a recuperação passa em grande parte pela criação de emprego, e para que esta aconteça são necessários projetos novos e investimento. A criação de novos negócios e empregos verdes, a alocação de fundos públicos a projetos sustentáveis e a incorporação dos riscos ambientais e da transição energética no sistema financeiro e empresarial vão ser decisivos para a almejada “recuperação nacional”.

Por outro lado, fazer a Recuperação da UE alicerçada no Green Deal (Pacto Verde), é uma ideia defendida por um grupo alargado de países, entre os quais se encontra Portugal, para que os enormes desafios do presente sejam ultrapassados “sem repetir os erros do passado”. É tempo, por isso, de voltar ao caminho certo, aproveitando para retomar projetos que foram esquecidos. Os fundos da EU constituirão uma oportunidade única, mas é indispensável que sejam corretamente encaminhados, geridos e controlados, também aqui não repetindo erros do passado.

Refiro-me, em especial, ao reforço das interligações com Espanha – bem como de tudo quanto possamos fazer para pressionar as interligações com França, já que, por muito que se faça no âmbito do mercado ibérico, este tem evidentes limites, além de que não existirá um verdadeiro mercado interno ao nível europeu sem essa ligação-, da mobilidade elétrica, da eficiência energética. Não deixar estes temas apenas no papel e para a diplomacia económica é, nessa medida, crucial.

Já Portugal tem afirmado internacionalmente a sua ambição em matéria de renováveis. O objetivo do Plano Nacional de Energia e Clima é que, em 2030, Portugal produza 80% da sua eletricidade a partir de fontes limpas. Para 2050, a meta é ainda mais ambiciosa: 100% de energia limpa na eletricidade e 90% nos transportes. Sucede que, neste momento, a eletricidade representa cerca de 25% do consumo total de energia em Portugal. Há, portanto muito a fazer.

Mas a Energia não é só produção de eletricidade: são também mercados a funcionar e, para isso, é necessário procura; é eficiência energética; é investigação e desenvolvimento em novas formas de armazenamento; são projetos como o do hidrogénio solar que, embora possa suscitar dúvidas, é um importante passo para uma economia verde. São, por isso, inúmeras as oportunidades.

Manuel Cassiano Neves, Mónica Pacheco, Bernardo Cunha Ferreira, advogados da CMS Rui Pena e ArnautHugo Amaral/ECO

Qual a importância da componente ambiental nos projetos de energia em curso?

Bernardo Cunha Ferreira – A componente ambiental é elemento estruturante nos projetos de energia em curso, não apenas porque a legislação aplicável é cada vez mais exigente e detalhada, mas também porque a sensibilidade dos vários atores/players dos projetos (promotores, entidades licenciadoras, municípios, arrendatários) tem-se vindo a acentuar. Em traços gerais, um projeto de energia terá consoante a tipologia, extensão e localização diversos temas ambientais a acautelar, sendo os mais comuns, os temas da avaliação de impacte ambiental (necessidade de um estudo de avaliação de impacte ambiental), a localização em áreas sensíveis (zona REN ou RAN, o que poderá carecer de autorização), a existência de espécies protegidas (e.g. corte de árvores que pode exigir autorização do ICNF) e eventual necessidade de outros títulos (e.g. titulo de recurso hídricos).

Nas transações em que temos estado envolvidos, esta componente, que se afigurava inicialmente como meramente complementar à restante análise (contratual, licenciamento, financeira) tem vindo a assumir um papel cada vez mais relevante, sendo usual a realização, a par de due diligence legal e financeira, uma due diligence também estritamente ambiental.

No entanto, podemos afirmar que, do ponto de vista legislativo, a componente ambiental continua ainda a estar dispersa por diversos diplomas e por diversas entidades, com claras perdas em termos de eficiência e de repartição de responsabilidades. A título de exemplo, e dando um exemplo que está na ordem do dia, para os novos projetos de produção hidrogénio (que passará a ser cada vez mais uma realidade) será absolutamente crucial a definição de um quadro legislativo estável que permita integra as várias componentes regulatórias/licenciamento com as componentes ambientais, seja pela adoção de um procedimento do tipo one stop shop, seja pela integração de regimes jurídicos.

Como avalia o novo regime de gestão de resíduos que entrou em vigor recentemente?

Bernardo Cunha Ferreira – A gestão de resíduos assume no contexto nacional e internacional cada vez maior relevância, atenta a necessidade de assegurar a sua gestão mas também pelo imenso potencial energético que os resíduos já representam.

Nesse contexto, em dezembro de 2020 foi aprovada um novo regime de gestão de resíduos que revogou o anterior regime geral de gestão de resíduos e que alterou também o regime da gestão de fluxos específicos de resíduos. Tal regime entrou em vigor a 01.07.2021.

O regime incide sobre vários aspetos, uns com relevância para os consumidores outros com especial incidência para produtores e com implementação gradual.

Entre os aspetos mais relevantes destacamos a obrigatoriedade de colocação no mercado de produtos e materiais contendo um mínimo de material reciclado; a revisão da taxa de gestão de resíduos; a proibição de disponibilização gratuita de sacos para transporte de bens; a necessidade de inclusão de informação nos produtos a respeito da sua reutilização e componentes de resíduos; a obrigatoriedade de doação de bens ao invés do seu encaminhamento como resíduo; a proibição de impressão e distribuição (exceto se solicitado pelo cliente) de recibos, cartões de fidelização, vouchers e tickets.

Atenta a relevância destas áreas é essencial os vários players envolvidos encontrar-se up to date nas alterações legislativas e nos respetivos timings de implementação. Nessa linha, temos assessorado alguns clientes procurando numa base constante e diária atualizar a diversa regulamentação.

Mónica Pacheco, sócia da CMS Rui Pena e ArnautHugo Amaral/ECO

E que comentários relativos à mais recente decisão do Tribunal de Haia (que condenou a Shell a cumprir metas de redução de emissões previstas no Acordo de Paris)?

Bernardo Cunha Ferreira – Em traços gerais, a decisão do Tribunal de Haia condenou a Shell a reduzir em 45% as emissões de CO2 até 2030 face aos valores de 2019. Tal decisão surge depois de queixa formulada por várias associações ambientalistas (Greenpeace e Friends of the Earth) e que, em face do plano apresentado pela empresa para a redução de emissões – que segundo alegam continha diversas zonas “cinzentas” e de difícil aplicação – suscitaram ao Tribunal que fixasse objetivos mais concretos e mesuráveis para a referida empresa.

Conforme decorre da análise da decisão, o Tribunal de Haia sustenta a sua decisão na dimensão da empresa (que equipara a muitos países) e a necessidade de esta conformar a sua atividade com as metas definidas particularmente com as definidas no Acordo de Paris. Tal decisão que arrisca ser replicada em outras jurisdições, é polémica não apenas porque utiliza metas programáticas do Acordo de Paris que são apenas aplicáveis a países (e não a empresas) e depois porque, conforme parece decorrer da decisão, não se “olha a meios para atingir os fins” uma vez que não afere minimamente o impacto e a capacidade da empresa internalizar essa redução.

Uma decisão nesta linha cremos que será difícil em Portugal atenta as fragilidades acima indicadas mas poderá depender dos ventos e correntes de outros países europeus, particularmente os que têm uma matriz legislativa similar (e.g. Alemanha ou Espanha).

No que toca à transição energética e a descarbonização da economia – concorda com as metas e objetivos fixados pelo Governo?

Manuel Cassiano Neves – Ainda que à partida se pense poderem ser algo ambiciosas, a verdade é que as metas fixadas pelo Governo Português estão em linha com os acordos celebrados pelo Estado Português e com a política energética que tem vindo a ser definida pela União Europeia, da qual Portugal faz parte. A transição energética e a descarbonização das economias parece-nos ser um objetivo sem retorno, como referiu o próprio Secretário-geral da ONU, e é já hoje uma preocupação do tecido empresarial português, não sendo a área da energia uma exceção. Um claro exemplo do comprometimento das empresas com estes objetivos é o plano de investimento anunciado pela maior empresa energética portuguesa de cerca de 24 mil milhões de euros, quase todo pensado para a transição energética até 2030. O principal desafio que o Governo terá pela frente será o de não permitir que os apoios à implementação de alguns instrumentos que permitirão alcançar estas metas (que faz todo o sentido existirem, diga-se) criem novas dívidas tarifárias ou aumentem as existentes, devendo tais apoios ser criteriosamente definidos, permitindo a viabilidade económica dos projetos e, paralelamente, um preço que possa ser suportado pelos consumidores finais, algo que o Governo, é justo reconhecê-lo, tem conseguido fazer até aos dias de hoje.

No que toca às metas europeias – em concreto, a Lei Europeia do clima, que irá impor metas de redução de gases com efeitos de estufa até 55%, que impactos se poderão registar no sistema energético nacional?

Manuel Cassiano Neves – O mix energético português já é cada vez menos dependente de combustíveis fosseis tradicionalmente mais poluentes. Aquilo a que iremos assistir de forma mais ou menos gradual será o descomissionamento de importantes centrais mais poluentes assim como a transição de algumas centrais a gás natural para o hidrogénio verde, razão pela qual o Governo anunciou a aposta na produção de Hidrogénio em Portugal como um importante instrumento para alcançar as metas fixadas, assim como reduzir a dependência energética do país. (não esquecer que as centrais a gás natural ainda representam uma importante fatia da potência instalada em Portugal, mais concretamente 23,5 % – dados da REN de julho de 2021).

Que novas oportunidades prevê neste mercado?

Manuel Cassiano Neves – O objetivo da transição energética trará seguramente muitas oportunidades para o setor energético nacional. Desde o autoconsumo, passando pelas comunidades de energia, pelos PPA de hidrogénio, pelos PPAs de energia produzida através de fontes renováveis para grandes clientes finais, pela mobilidade elétrica, pelo solar flutuante, pelo eólico offshore.

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