Ex-autarca condenado a pena suspensa por Alzheimer. Caso poderá servir de jurisprudência?

João Lourenço, ex-presidente de Santa Comba Dão, foi condenado a pena suspensa de sete anos por sofrer de doença de Alzheimer. Acordão pode vir a servir de jurisprudência para Salgado e outros casos.

No início deste mês, João Lourenço, ex-presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, foi condenado pelo Tribunal de Viseu a uma pena suspensa de sete anos de prisão. O motivo da pena ser suspensa e não efetiva, apresentado pelo juiz Júlio Gantes, foi o facto de o arguido sofrer da doença de Alzheimer. Ainda que ligeira. Diagnóstico que foi confirmado por uma perícia pedida pelo tribunal.

O magistrado lamentou a saúde mental de João Lourenço, referindo assim que a “lei não permite aplicar uma pena efetiva”, logo “não há perigosidade” e a pena fica suspensa. Neste caso em concreto, até o Ministério Público tinha pedido a pena suspensa por causa da mesma doença.

Recentemente, a defesa de Ricardo Salgado — no processo da Operação Marquês — pediu a suspensão do julgamento (e não a pena suspensa) pela mesma causa, a doença de Alzheimer. Um diagnóstico confirmado por um médico neurologista contactado pela defesa, depois do magistrado titular do processo ter recusado a realização de uma perícia. O juiz Francisco Henriques não aceitou o pedido de suspensão do julgamento, justificando que esta doença não é razão suficiente para que “as capacidades de defesa do arguido estejam limitadas de tal forma que o impeçam de se defender de forma plena. Não parece decorrer do teor do atestado médico que o arguido esteja mental ou fisicamente ausente”.

Num requerimento enviado em outubro ao tribunal, os advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce apresentaram as conclusões do relatório médico e pediram ao tribunal que seja considerado no processo o estado “irreversível” da doença do ex-líder do BES. E pediram a suspensão ou arquivamento determinados pelo tribunal, mas sem sucesso. No limite, os advogados do ex-presidente do GES defendem então que “a execução de qualquer pena de prisão que viesse, eventualmente, a ser determinada (…) teria de ser imediatamente suspensa” perante o diagnóstico de doença de Alzheimer.

O ECO/Advocatus falou com um juiz — que preferiu não ser identificado — que assumiu que este acórdão veio, “no fundo, decidir o óbvio. Basta conhecer o que é a doença de Alzheimer para se perceber que cumprir uma pena efetiva de prisão com esse diagnóstico não é humanamente viável”. Mas acrescenta: “mas também sabemos como a opinião pública consegue pressionar os meus colegas magistrados”. Ainda assim, o juiz considera que o ideal seria que houvesse uma perícia médica pedida pelo tribunal, porque “vindo da defesa, há sempre uma desconfiança associada”.

Segundo o advogado Paulo Saragoça da Matta, “inexistindo obrigatoriedade de precedente na nossa ordem jurídica, pode apenas servir de “caso paralelo”, que leve o Tribunal a proceder de modo semelhante. Isto é, não há obrigatoriedade, mas há possibilidade desse mesmo critério ser usado, desde que o Tribunal não fuja à realização da perícia, como é típico dos tribunais criminais portugueses, sempre totalmente alheios aos reflexos psicológicos e psiquiátricos nas condutas dos agentes e também no estado dos mesmos após os factos e no momento de apreciação destes em julgamento”.

E acrescenta: “há em Portugal seguramente centenas de encarcerados criminalmente condenados que nunca o deveriam ter sido, antes devendo estar sujeitos a medidas de segurança ou mesmo ser declarados totalmente irresponsáveis, não fora o atavismo jurisprudencial luso aos contributos da psicologia e da psiquiatria”.

“A verificação de anomalia psíquica posterior sem perigosidade tem efeitos, nos termos da lei, apenas quanto à execução da pena de prisão a que o arguido eventualmente tenha sido condenado. Ou seja, a verificação de tal anomalia, como, por exemplo, a doença de Alzheimer, pode determinar que a pena de prisão efetiva seja suspensa na sua execução, desde que, do mesmo relatório pericial que diagnostica a doença resulte a ausência de perigosidade da pessoa avaliada“, referiu Sérgio Figueiredo, da Comissão Penal da JALP.

O advogado acrescentou que “ainda que seja uma situação distinta, sem idêntica consagração legal, não pode deixar de se questionar o efeito da mesma, durante o curso do processo e em momento prévio à decisão, no cabal exercício do direito de defesa do arguido. Tanto mais que os direitos de defesa que assistem aos arguidos, passam, em muitos casos, por um exercício da sua própria vontade, pensando-se, desde logo, na possibilidade de prestar declarações ou remeter-se ao silêncio. Decisão que, ainda que coadjuvada pelo defensor, será sempre uma manifestação pessoal e, como tal, só fará sentido, quando o próprio está na posse de todas as suas faculdades psíquicas”.

Dantas Rodrigues, advogado, considera que “a questão em apreço não é se esta decisão do Tribunal de Viseu pode ou não servir de “jurisprudência para o caso do Ricardo Salgado, uma vez que, apesar do mediatismo desta decisão, é importante lembrar que cada caso é um caso e terá o juiz autonomia e independência na sua decisão”. Mas, diz o advogado que “o que nos vem trazer esta decisão do Tribunal de Viseu é, desde logo, um alerta – existem mecanismos legais para situações de anomalia psíquica e competirá ao juiz do processo, no caso concreto, decidir se devem ou não ser aplicados”.

Ou seja: tratando-se de anomalia psíquica, posterior à prática do crime, diagnóstico que terá que ser confirmado por perícia judicial, é aplicável ao condenado o regime dos artigos 105º e 106º, do Código Penal. “O que o tribunal, deve sempre fazer é apurar a veracidade da doença e o caminho é a perícia judicial. Não deve o juiz baseado em auto conhecimento decidir , se um arguido tem ou não sinais de Alzheimer”.

Tendo o arguido, condenado a pena de prisão, a doença de Alzheimer , nos termos do artigo 105º do Código Penal, “o tribunal ordena o internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, isto é, em vez do condenado cumprir a pena aplicada na prisão, a pena será cumprida em estabelecimento de psiquiatria e saúde mental. Contudo, nos termos do artigo 106º do citado diploma legal, não sendo o condenado criminalmente perigoso, a execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado (anomalia psíquica) que fundamentou a suspensão, no entanto, entende-se que poderá o Tribunal suspender o internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente ao da duração da pena quando a anomalia é irreversível”, concluiu.

Quais foram os argumentos do juiz para aplicar pena suspensa ao ex-autarca e que pode servir de jurisprudência para o futuro?

  • Para o juiz, o arguido João Lourenço padece de “Perturbação Neurocognitiva Major, provável Doença de Alzheimer de início precoce inscrita na rúbrica F00.0 da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde, tendo vindo a manifestar de forma evidente aquele quadro clínico, segundo entrevista complementar, desde 2017, mas o diagnóstico clínico, apenas foi possível a partir do acompanhamento em consulta de neurologia em dezembro de 2019″, segundo o acordão a que o ECO teve acesso.
  • Estas perturbações neorocognitivas major, “caracterizam-se por evidência de declínio cognitivo significativo em relação a um nível prévio de desempenho num ou mais domínios cognitivos, no caso do arguido ao nível da atenção complexa, funções executivas, memória, linguagem, capacidade percitivomotora ou cognição social, com agravamento progressivo e que interferem na realização independentemente das atividades da vida diária (parcial nas atividades básicas e total nas atividades instrumentais e avançadas da vida diária), sendo que a capacidade do arguido de avaliação de uma eventual condenação neste processo, encontra-se comprometida face aos défices cognitivos que apresenta (pois seria condenado por algo que não tem o alcance pleno de entender, podendo reagir de forma concreta, pelo que seria entendido como injustiça, com sentimento de revolta compreensíveis no pensamento concreto do arguido, ou indiferente face ao compromisso de cognição social)”.
  • Não resultando do relatório do IML que a doença de que padece o arguido o torna perigoso, o juiz aplicou o disposto no artigo 106º, do Código Penal (anomalia psíquica posterior sem perigosidade): “Se a anomalia psíquica sobrevinda ao agente depois da prática do crime não o tornar criminalmente perigoso, em termos que, se o agente fosse inimputável, determinariam o seu internamento efetivo, a execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado que fundamentou a suspensão”.
  • Segundo este artigo, a duração da suspensão da pena é “descontada no tempo da pena que estiver por cumprir” e o tempo de duração da pena em que o agente foi condenado “não pode em caso algum ser ultrapassado”.
  • Assim, e de acordo com esta norma, o juiz decidiu que a pena de 7 anos de prisão em que o arguido vai ser condenado, vai ser suspensa até cessar o estado que fundamentou a suspensão, não podendo exceder 7 anos, sujeita a regras de conduta, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados, ficando ainda colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social.

João Lourenço foi condenado pelos crimes de prevaricação de titular de cargo público e fraude na obtenção de subsídios. Em causa, está a abertura de concursos públicos para obras que já estavam feitas e que, posteriormente, seriam objeto de candidaturas a fundos comunitários. O dinheiro recebido de Bruxelas serviu para o município pagar outros trabalhos no concelho.

Além do ex-autarca João Lourenço, o Tribunal condenou ainda a penas de prisão entre três e cinco anos, mas também suspensas na sua execução, os restantes oito arguidos do chamado processo das estradas.

Entre os condenados está António Lemos, dono da construtora Embeiral. A empresa foi condenada a pegar 157.500 euros ao Estado.

Os nove arguidos ficam ainda obrigados a pagar as custas judiciais e proibidos de aceder a subsídios e subvenções do Estado durante cinco anos.

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