O híbrido que veio para ficar e o e-mail fora de horas

  • Diogo Orvalho
  • 13 Janeiro 2022

Ao limitar a possibilidade de contacto com o trabalhador apenas em “situações de força maior”, a malha ficou de tal forma apertada e rígida que, na prática, pode revelar-se inexequível.

É sabido que no mercado automóvel a procura de veículos híbridos tem vindo progressivamente a aumentar no decurso dos últimos anos. Alguns dos mais conceituados fabricantes já anunciaram que, num futuro próximo, tencionam apenas construir modelos híbridos (ou elétricos).

A verdade é que não é, porém, apenas no mercado automóvel que os modelos híbridos estão a ganhar cada vez mais adeptos. Também no mercado de trabalho o conceito de híbrido parece que veio para ficar. Fundamentalmente, depois do regime do teletrabalho obrigatório a que todos assistimos durante quase todo o ano de 2020 e grande parte de 2021, como medida de contenção da propagação da pandemia da Covid-19.

Se, segundo dados oficiais, em 2019 apenas 0,3% dos trabalhadores em Portugal desempenhavam a sua atividade em regime de teletrabalho, em 2020 essa percentagem passou para 25%, correspondendo mais de um terço (36%) aos trabalhadores da região da Grande Lisboa. E importa ter presente que se tivéssemos apenas em conta o universo de trabalhadores cuja natureza das funções permite, efetivamente, o desempenho da atividade através de meios tecnológicos à distância, esta representatividade seria, necessariamente, ainda mais elevada.

A forma de trabalhar mudou, inequivocamente, de forma drástica nos últimos dois anos.

Se, por um lado, a massificação do teletrabalho trouxe vantagens para os trabalhadores e empresas, por outro, implicou novos riscos.

Se é inegável que elimina perdas de tempo com as deslocações casa-trabalho-casa e permite uma maior conciliação entre a vida pessoal e profissional, por outro lado, o teletrabalho provoca um maior isolamento do trabalhador e levanta dificuldades de integração e no trabalho em equipa.

Numa perspetiva empresarial, o teletrabalho permite reduzir custos com instalações, eletricidade e economato, mas também implica uma maior exposição a ataques informáticos e dificulta o controlo da atividade diária dos trabalhadores.

Ora, o regime do trabalho híbrido, que muitas empresas nacionais têm vindo progressivamente a implementar desde o segundo semestre do ano passado e que, tudo indica, continuarão a apostar em 2022, permite obter os principais benefícios do teletrabalho e, simultaneamente, mitigar algumas das suas desvantagens e riscos associados.

Trata-se, pois, de uma solução de “meio termo” que pode, de facto, revelar-se um instrumento útil e que em 2022 tem tudo para ganhar dimensão e relevo.

Intrinsecamente relacionado com este regime (mas não só, evidentemente), encontra-se um outro que vinha já sendo discutido no Parlamento desde há cerca de cinco anos sem que um consenso entre os vários partidos políticos visse a luz do dia. Assim, foi agora, e à boleia do novo regime do teletrabalho, finalmente regulamentado o chamado “direito a desligar”, ou melhor, o dever do empregador se abster de contactar o trabalhador durante o período de descanso.

Se alguns autores vinham defendendo que se impunha reforçar o respeito pelos tempos de descanso por via legislativa, por contraponto aos que entendiam que o atual regime já dava solução ao problema, a verdade é que a forma utilizada pelo nosso legislador poderá não ter sido, efetivamente, a mais eficaz para lograr tal desiderato.

Já muito foi dito acerca desta nova norma do Código do Trabalho. Desde as alternativas de que o legislador dispunha (desde logo nada fazer), às lacunas a que o novo regime não dá resposta. Por falta de espaço, não pretendemos aqui elencar as críticas, nem enunciar as alternativas ao novo regime.

Pretendemos apenas alertar para as dificuldades práticas que a aplicação da nova norma do Código do Trabalho vai, inevitavelmente, suscitar. Ao limitar a possibilidade de contacto com o trabalhador apenas em “situações de força maior” (e sendo este um conceito já densamente trabalhado e bastante restrito, correspondendo a situações imprevistas e inevitáveis como incêndios ou explosões), a malha ficou de tal forma apertada e rígida que, na prática, pode revelar-se inexequível.

A este respeito, perguntava-me há semanas atrás um cliente se, em face do novo regime, estava agora proibido de enviar e-mails aos trabalhadores para lá do horário de trabalho. Se eu me lembrar de um assunto ao final do dia para que seja respondido até ao final do dia seguinte, tenho de esperar que sejam 9 horas da manhã para enviar o e-mail?, perguntava-me ele.

É certo que existem medidas que permitem mitigar o risco de se considerar a violação, objetiva, da norma agora aditada ao Código do Trabalho. Mas parece-me mais evidente que, em função daquilo que é a realidade de cada organização e setor em específico, a nova norma vai exigir bastante ponderação e impor um especial cuidado na sua aplicação, sob pena de, ao invés do pretendido, trazer mais problemas que soluções, mais litigância que paz social e mais rigidez que flexibilidade.

  • Diogo Orvalho
  • Consultor da Abreu Advogados

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