O economista argumenta que a filosofia dos apoios do Estado tem de mudar para se focar principalmente nas empresas. Para Catroga, é preciso aproveitar os fundos europeus para recapitalizar.
Já foi ministro das Finanças e passou por várias empresas como gestor. Aos 78 anos, Eduardo Catroga decidiu escrever um livro — “Desenvolver Portugal: Reflexões em tempos de pandemia” — com reflexões sobre a economia portuguesa em tempos de pandemia. Em entrevista ao ECO publicada esta quarta-feira, o economista queixa-se da ajuda “insuficiente” dada às empresas neste momento crise e apela ao Governo que reforce os apoios temporários, mesmo que isso signifique um défice maior. “As empresas são a célula base da atividade económica e não o Estado“, defende.
Após a fase de emergência, Catroga diz estar ciente do nível de moratórias e do potencial impacto no sistema financeiro, recomendando ao Governo que reserve uma parte significativa dos fundos europeus para a recapitalização das empresas. O economista sugere que o Executivo entregue a execução do plano a uma estrutura de missão com consultores internacionais e do setor privado, argumentando que a administração pública não tem capacidade para o fazer. “Desta vez tem de diferente”, afirma, pedindo que se aproveite esta “oportunidade de ouro”.
A maioria das empresas tem capacidade para sobreviver a este segundo confinamento que poderá durar até ao final de março?
Vivemos num período de muita incerteza ligada à evolução da crise pandémica. Essa incerteza põe em causa a confiança no consumo e no investimento e quanto mais se prolonga a crise pandémica maiores as implicações negativas que terá na economia. O ano de 2021 esperava-se que fosse de recuperação após o grande mergulho da economia europeia e portuguesa em 2020. Mas vai ser uma recuperação mais moderada. O prolongamento desta crise vai acentuar as fragilidades estruturais da economia portuguesa e das empresas portuguesas. Vai haver um aumento do endividamento, uma deterioração dos balanços, das contas de resultados [das empresas] e isto vai pôr a nu a necessidade do reforço dos apoios às empresas.
"É preciso aproveitar os fundos estruturais europeus e privilegiar o apoio às empresas, nomeadamente o vetor de recapitalização das empresas concebendo produtos financeiros adequados.”
Não têm sido suficientes?
Basta comparar os apoios às empresas portuguesas com aquilo que outros países, com uma saúde económica-financeira pré-Covid mais forte, estão a fazer. A nível europeu, face a outros blocos económicos, verifica-se um tratamento insuficiente do apoio às empresas em muitas economias, incluindo em Portugal. O apoio às empresas deve ser prioritário porque apoia-se as famílias, o emprego, o investimento. Esta devia ser a prioridade, mas nem sempre está na cabeça dos nossos decisores políticos quer na política de apoios de curto prazo quer nos apoios estruturais ligados aos fundos europeus. As empresas têm de ter a maior fatia de apoios. O agravamento da situação vai fazer aumentar o número de empresas zombie e em dificuldades, o risco de falências e, portanto, temos de reforçar as medidas possíveis para que esse cenário seja o mais controlado possível.
E as empresas aguentam este segundo confinamento sem falir?
Os apoios têm que evitar isso nesta fase de plena crise pandémica. Depois, quando se caminhar para a estabilização, realmente vai haver uma seleção nas empresas: entre empresas que não têm condições de sobrevivência e de progresso futuro e empresas que, embora tenham passado por um período de dificuldade, vão conseguir fazer o seu revamping e vão fazer o seu turn around. Neste momento não estamos em condições de fazer essa seleção.
Temos aqui um indicador fundamental que é a dimensão das moratórias bancárias. A melhor defesa e proteção do sistema bancário é apoiar as empresas porque assim diminui-se o risco dos NPLs, do não cumprimento [das responsabilidades de crédito] por parte das empresas. É preciso aproveitar os fundos estruturais europeus e privilegiar o apoio às empresas, nomeadamente o vetor de recapitalização das empresas concebendo produtos financeiros adequados.
Portugal tem folga orçamental para reforçar os apoios?
Uma coisa são défices cíclicos, outra coisa são défices estruturais. O défice cíclico ligado com o ciclo económico e com o período excecional de economia não me preocupa porque sei que quando houver a retoma da economia a componente cíclica e conjuntural desse défice é eliminada. Apoios transitórios? Sim e sem receios. Na política orçamental o que é crítico nestes períodos é não criar despesa orçamental rígida, fixa e estrutural, como já criámos no Orçamento do Estado. Basta verificar que as despesas com pessoal da função pública aumentam 7% face à base de 2019.
A pandemia levou a dívida pública novamente para lá dos 130% do PIB. Será possível pagá-la?
Quando se analisa a dívida pública, há que analisar o nível pré-Covid e pós-Covid porque esta dívida cíclica provocada pela crise pandémica em todos os países está a ser monetizada através do Banco Central Europeu que garante a compra de obrigações soberanas emitindo moeda. O BCE vai continuar a ter uma política monetária acomodatícia por muito tempo. Não vai reduzir o seu balanço e, portanto, há uma componente permanente de dívida pública que vai ficar no balanço do BCE, o que equivale, na prática, a dívida perpétua. Os juros que os Estados-membros pagam ao BCE são compensados com os dividendos que o BCE paga aos Estados. Não há um problema de dívida em relação ao acréscimo da dívida Covid. Mas as regras europeias têm de ser repensadas para um período pós pandémico. Temos de ter um período de grande flexibilidade até depois da consumação da recuperação da economia. Esta dívida acrescida da Covid-19 deveria ser retirada da análise da sustentabilidade da dívida pública.
E como se resolve esse problema?
A eliminação gradual do peso da dívida pública no PIB resolve-se com uma política económica consistente com um crescimento económico. A nossa ambição para a década pós-pandemia deveria ser ter uma taxa média anual de crescimento do PIB de 3% a 4%, em termos reais. É possível com os fundos estruturais europeus e com politicas macroeconómicas, microeconómicas e empresariais de qualidade — como detalho no meu livro “Desenvolver Portugal: Reflexões em tempos de pandemia” –, vencendo o vírus ideológico anti-empresas e de inação estrutural que nos tolhe. Os portugueses merecem.
Voltando aos apoios às empresas, devia haver redução de impostos? Ou mais subsídios a fundo perdido?
Tem de ser uma mistura de medidas. O Estado, que vai receber a fundo perdido ao abrigo do Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027 (QFP) e do plano de recuperação europeu, terá cerca de 50 mil milhões de euros. De acordo com a minha filosofia e a política estrutural que eu defendo para o país, a “fatia de leão” deste montante devia ser para as empresas. Um dos vetores seria a recapitalização das empresas através de produtos financeiros adequados, de quase equity [capital], com uma taxa de juro meramente simbólica e a 20 ou 30 anos. O Governo deveria reservar 10 mil ou 15 mil milhões de euros para este objetivo que traria um reforço da estrutura financeira das empresas, traria uma maior confiança em termos de futuro e contribuiria para o não enfraquecimento do setor bancário, que é um risco que temos.
[O Banco de Fomento] faz sentido se não for controlado diretamente pelo poder político. Se houvesse outros acionistas além do Estado, teríamos garantias de corporate governance, de racionalidade económica e financeira na aplicação dos dinheiros.
O Banco de Fomento (BdF) é essencial para essa estratégia?
Confesso que, após 10 anos da conceção dessa ideia, ainda não percebi qual é o estado atual quanto ao seu funcionamento. A Irlanda criou em 2014 o seu Strategic Banking Corporation of Ireland (SBCI), mas foi para uma filosofia muito mais rápida e expedita e com uma estrutura acionista onde está não só o Estado irlandês como o próprio Banco Europeu de Investimento e o banco de desenvolvimento alemão. É uma estrutura acionista que permite contribuições metodológicas de dois acionistas muito especializados e minimiza o risco de critérios políticos na decisão.
Mas faz sentido ter um banco promocional?
Faz sentido se não for controlado diretamente pelo poder político. Se houvesse outros acionistas além do Estado, teríamos garantias de corporate governance, de racionalidade económica e financeira na aplicação dos dinheiros. Penso que a prazo o BdF terá de evoluir nesse sentido, mas o que importa agora é meter a máquina a funcionar e pôr na prática os instrumentos de capitalização e os apoios ao investimento produtivo. Eu não defendo que [o BdF] aplique diretamente dinheiro em empresas ou projetos, mas que aplique em fundos de investimento pré-selecionados em função do seu track record e fica tudo numa perspetiva de fund of funds, tipo o FEI do BEI. [O BdF] pode ter um papel fundamental sobretudo numa fase de emergência como a atual e em que vamos dispor de subvenções de grande magnitude que têm de ser bem aplicadas.
As regras europeias são compatíveis com isso?
As regras europeias irão necessariamente ser revistas, quer as regras orçamentais quer as regras de ajuda de Estado para atender à nova realidade. Trata-se apenas de encontrar fórmulas, que os irlandeses e os alemães encontraram, que sejam compatíveis com a interpretação que neste momento existe em relação às regras das ajudas europeias que serão necessariamente evolutivas. Nós, às vezes, enredamo-nos no estudo dessas regras e contra regras, mas o que é importante é fazer e depois discute-se e defende-se as posições.
No seu livro esteve a refletir sobre a economia portuguesa após a pandemia. O que é fundamental que se faça?
O meu livro é um conjunto de reflexões estruturais feitas na primeira quarentena e partem de um diagnóstico estrutural de que a produtividade é a fonte da prosperidade e do crescimento económico. A ideia central é que são necessárias políticas estruturais, quer no campo das políticas públicas quer na esfera dos incentivos às políticas empresariais, para melhorar a produtividade da economia portuguesa. O objetivo de todos os decisores políticos e empresariais deve ser a melhoria da produtividade. É preciso terem isso em mente quando tomam decisões, seja no campo da política orçamental, da política fiscal, da política de repartição dos apoios dos fundos europeus. Essa é a chave: criar mais riqueza, ter mais investimento produtivo, ter mais IDE no setor produtivo.
Há alguma grande medida que destaque?
A grande medida é orientar todas as políticas para a melhoria da produtividade e aplicar bem os 50 mil milhões de euros de subsídios a fundo perdido. No livro defino qual deve ser o modelo de decisão quanto à hierarquização dos projetos para aplicar os fundos europeus. Não percebo porque é que os decisores, as associações empresariais, os partidos políticos, não se concentram na organização desse modelo e nos critérios de seleção desses subsídios. Eu proponho uma estrutura de missão autónoma da administração pública tradicional, com especialistas oriundos da esfera pública mas também da esfera empresarial e com consultores internacionais para a análise dos projetos e sua hierarquização dos projetos. Essa estrutura de missão deveria reportar diretamente ao membro do Governo com força política e que é responsável pela Economia. Poderia ter o apoio do BEI e/ou de outras instituições financeiras internacionais por forma a garantirmos qualidade na afetação dos recursos e que não vamos perder essa oportunidade de ouro.
Teme que o Estado se feche em si próprio na execução do plano?
Claro. [O plano] tem de ser decidido por quem tem uma visão da melhoria da produtividade e da competitividade e por quem tem uma visão de que as empresas são a célula base da atividade económica e não o próprio Estado. É preciso injetar ideias novas numa administração pública que está demasiado burocratizada e habituada a fazer mais do mesmo. Se se olhar para a qualidade de alocação de recursos dos vários quadros comunitários de apoio, a qualidade foi fraca. Temos que melhorar a qualidade e para melhorar a qualidade temos de melhorar a metodologia de decisão e de hierarquização dos projetos. E temos de sair desta análise da esfera política pura, com aparelhos partidários, sejam eles quais sejam. É a melhor forma de termos uma estrutura semi-autónoma com o apoio externo, de organizações internacionais especializadas… E depois, para haver transparência, o resumo da análise dos projetos deve ser feita em portal específico, explicando os critérios. Desta vez tem de ser diferente e para ser diferente temos de mudar as metodologias e o processo de decisão.
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Apoios às empresas são “insuficientes” e têm de ser reforçados mesmo que o défice suba, diz Catroga
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