Mais 12 mil enfermeiros passarão para um horário de 35 horas este domingo, mas as contratações necessárias não foram feitas. Ana Rita Cavaco afirma que a Saúde está capturada pelas Finanças.
Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, não acredita que o Governo esteja preparado para avançar com a passagem dos últimos 12 mil enfermeiros para um horário semanal de trabalho de 35 horas, que deveria acontecer este dia 1 de julho. Se a carência de enfermeiros em Portugal já era grande, defende, o facto de não terem sido feitas as 1.700 contratações necessárias para compensar esta mudança irá agravar mais ainda essas dificuldades. A bastonária, em entrevista ao ECO, deixou ainda um apelo ao primeiro-ministro António Costa para que impeça que o Ministério da Saúde permaneça “capturado” pelo das Finanças.
Como vê a passagem para as 35 horas de trabalho semanais?
É tardia, porque é a correção de uma injustiça que abrangia os enfermeiros. São 12 mil, não todos — nós temos entre 41 e 42 mil enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde, mas estes 12 mil, que são os contratos individuais de trabalho, estão ainda a 40 horas semanais. Em que é que isto é justo?
Agora com a redução para as 35 horas que abrange estes 12 mil enfermeiros, o Governo teria de contratar mais 1.700 enfermeiros, foi isso que o Governo acordou com os sindicatos do setor. O que não percebo é: se o acordo foi assinado no ano passado, se está publicado em Boletim do Trabalho e do Emprego, por que é que só agora é que, à boa maneira portuguesa, estão preocupados em fazer as contratações? Deviam ter começado a fazer as contratações, por exemplo, no início do ano.
Ao ouvir o ministro da Saúde, estamos a falar de um Ministério que neste momento está completamente capturado pelas Finanças. Se é necessária autorização das Finanças para contratar estes 1.700 enfermeiros, têm de a dar. Porque a carência de enfermeiros antes das 35 horas já era muito grande. O número de enfermeiros por mil habitantes em Portugal, no SNS, oscila entre 4,1 e 4,5 enfermeiros por mil habitantes, e a média da OCDE é de 9,2. Estamos, de facto, muito mal.
Se aquilo que a Ordem propôs foi contratar 3.000 enfermeiros por ano no espaço de dez anos para atingirmos os 30 mil que faltam em Portugal, e se estes 3.000 por ano custam 65 milhões, estes 1.700 que eu precisava de contratar para passar às 35 horas, contas redondas, custariam cerca de 30 milhões. Não compreendemos como é que 30 milhões custam tanto ao Governo desembolsar.
Eu diria que é mais sério dizer: “Nós iniciámos o período de contratação agora, ou vamos iniciar agora, e não estamos em condições de passar para as 35 horas”.
O que é que vai acontecer agora, se as contratações não forem efetivadas a tempo?
Eu diria que o Governo não está em condições de cumprir aquilo que acordou com os sindicatos e, muito francamente, acho que é melhor reunirem com os sindicatos e dizerem que não estão em condições de cumprir, para já, do que querer cumprir com uma coisa que não têm. Isto é a mesma coisa do que lembrar-me de fazer para o almoço uma omelete e não tenho ovos. Se não tenho, não posso comer omelete. Eu diria que é mais sério dizer: “Nós iniciámos o período de contratação agora, ou vamos iniciar agora, e não estamos em condições de passar para as 35 horas”.
Portanto, estaríamos a falar de mais horas extraordinárias para estes enfermeiros, que já nas 40 horas trabalhavam muitas vezes em horas extraordinárias?
Os hospitais já lhes devem milhares de horas, que não são horas extraordinárias, são horas programadas que têm de ser lançadas nos horários porque não há enfermeiros. Ou seja, eu estou a fazer sistematicamente um horário mensal para uma equipa que devia ser de 15 e eu tenho 10, por exemplo, e vou pedir a esses 10 que façam com que a equipa passe a ser de 15. Então, aqueles enfermeiros que deviam estar a fazer 35 horas, muitas vezes fazem 70 por semana. Um enfermeiro que está sistematicamente a cumprir horas a mais é um enfermeiro que entra em exaustão, que é capaz de cometer mais erros e, portanto, não está em condições de garantir nem a segurança das pessoas nem a segurança dele próprio.
O ministro da Saúde chegou à Assembleia e disse que até ao final deste mês vai contratar dois mil profissionais e isto para nós não chega. Os dois mil profissionais, lá dentro, englobam enfermeiros, técnicos, farmacêuticos e outros profissionais de saúde. Ora, só para enfermeiros, nós precisamos de 1.700 e o Ministério reconhece estes números. Se são dois mil, com certeza que não hão de ser 1.700 enfermeiros e os outros 300 estes técnicos.
O senhor ministro foi à Assembleia dizer isto, e atenção que eu percebo bem a posição dele. Não está na mão dele, neste momento ele não pode decidir quantos enfermeiros ou outros profissionais é que vai contratar, porque ele está capturado pelo ministro das Finanças e, aí, para nós a culpa é do primeiro-ministro. É ele quem tem de dar condições a um ministro para poder exercer as suas funções.
Concorda com a interpretação que tem sido feita de que este verão poderá ser especialmente perigoso por esta carência adicional de enfermeiros no período de maior calor e ainda de férias?
Às vezes, há coisas que concorrem para ser a tempestade perfeita. E não é só a questão das 35 horas: isto é um problema que se vem arrastando há alguns anos.
Há aqui outra questão que concorre muito para termos um verão complicado: pela primeira vez na vida, aos 42 anos, eu ainda não ouvi falar dos planos de contingência para o calor para os hospitais. Já começou no ano passado no inverno em que também não houve planos de contingência, e portanto foi a desgraça, a tristeza e a indignidade a que nós assistimos, sobretudo no Algarve, com aquelas imagens de pessoas internadas na urgência ao monte. Eu temo que possamos assistir à mesma situação agora no verão.
"Não se pode esperar que as pessoas trabalhem com motivação por menos de mil euros por mês — altamente especializadas, com uma tecnicidade enorme, do ponto de vista científico muito bons, aliás tão bons que todo o mundo quer enfermeiros portugueses.”
Depois, estamos numa situação cada vez pior com o absentismo dos enfermeiros. Tudo aquilo que tem acontecido aos enfermeiros, a questão da exaustão, a questão de não haver carreira, a questão de estarmos a falar de pessoas que lidam com a vida dos outros, com questões emocionais, psicológicas, físicas, e que levam para casa menos de mil euros por mês. Quem acaba hoje o curso vai ganhar a mesma coisa que eu, que trabalho há 21 anos: 1.256 euros brutos. Tudo isto concorre para que haja um absentismo em média, a nível nacional, de 12%. A Ordem teve a preocupação de encomendar um estudo sobre isso, que divulgámos em 2016, e um em cada cinco enfermeiros está já a trabalhar em exaustão, dois terços num nível de stress muito elevado e 15 mil estão fora de Portugal porque não estão para aturar isto.
Relativamente a esta questão, quais vão ser as zonas mais afetadas durante o verão?
Todas. Porque a carência neste momento é em todo o lado.
Recentemente, o primeiro-ministro disse que, tendo verba, preferia usá-la para fazer contratações do que para dar aumentos. Como é que vê esta dicotomia entre aumentos e contratações?
É evidente que gerir um executivo não é nada fácil. Mas há aqui algumas questões que a nós nos fazem alguma confusão. Por um lado eu prefiro contratar em vez de dar aumentos aos funcionários públicos mas, por outro, eu não me importo de sistematicamente estar a injetar dinheiro em banqueiros e banca que têm práticas pouco transparentes.
Não se pode esperar que as pessoas trabalhem com motivação por menos de mil euros por mês — altamente especializadas, com uma tecnicidade enorme, do ponto de vista científico muito bons, aliás tão bons que todo o mundo quer enfermeiros portugueses.
Se o Sr. primeiro-ministro prefere fazer isso [contratar em vez de aumentar], também tem de ter o cuidado — e não é só ele, são os outros que lá passaram — de não fazer promessas que não pode cumprir. Há um vídeo no YouTube que toda a gente devia ver. Os enfermeiros são 72 mil e eu compreendo: representam muitos votos, são eles e as famílias. António Costa gravou um vídeo especificamente para os enfermeiros a dizer que são o pilar do Serviço Nacional de Saúde. Mas [ser] o pilar do SNS não dá de comer aos filhos dos enfermeiros.
Olhando para o trabalho deste Governo na área da Saúde e especificamente para os enfermeiros, como avalia o trabalho que tem sido feito?
Qual trabalho? É esta a minha resposta, não vi nenhum. Não há carreira, não há contratações, não há condições de trabalho, portanto não foi feito trabalho nenhum.
Com um ano que sobra na legislatura, parece-lhe que o Governo tem abertura para fazer progressos, por exemplo, no desenvolvimento da carreira de enfermeiro?
Eu não sei se tem abertura, sei que se quiser tem condições para resolver a situação. Tem condições para construir uma carreira como deve ser para os enfermeiros. Ainda que tenha de adiar o início do pagamento do avanço nas categorias, poderia dizer aos enfermeiros: “Neste momento não podemos mexer nos vencimentos de base mas vamos publicar uma carreira para que isso possa avançar por exemplo daqui a um ano ou dois”. O Governo tem mais do que tempo para conseguir fazer a negociação da carreira e conta com todo o apoio da Ordem.
Qual é o panorama agora para um enfermeiro recém-formado, que vai começar a carreira?
Carreira não tem. Tem eventualmente contrato individual de trabalho, que é assim que estão a contratar os enfermeiros. Tem à sua frente, por exemplo, unidades de cuidados continuados vergonhosas, com um enfermeiro para 40 pessoas cuidados paliativos, e lares também horrorosos, com vencimentos de 600 e 700 euros com um enfermeiro que são depósitos de idosos.
Eles tem um país à frente que está doente, e para eles não ficarem doentes o que nós lhe dizemos é que eles têm de recusar determinadas coisas que se passam. Não só por eles mas por todos nós, porque em determinadas situações o último reduto de defesa de uma pessoa e o enfermeiro.
Olhando para esse enfermeiro a quem é colocada uma proposta que não garante a sua dignidade nem das pessoas para quem vai trabalhar: recusando, ele pode denunciar essa proposta à ordem?
O setor privado oferece aquilo que as pessoas querem aceitar. O mercado funciona assim, com base na oferta e na procura. No público, não se podem oferecer ordenados inferiores àquilo que está tabelado. O privado, em termos de hospitais, paga um bocadinho melhor e paga, inclusive, a especialidade dos enfermeiros, coisa que o público ainda não faz.
Depois há muitos empregos em que as pessoas querem pagar a um enfermeiro três euros à hora. Cada um de nós tem de saber o que vale a sua cédula profissional e a dignidade da profissão que eu tenho e que vou desempenhar começa, em primeiro lugar, na minha cabeça. Nunca seria capaz de entregar a um enfermeiro uma proposta desta natureza. O que eu acho que aqui tem de acontecer é que os enfermeiros que acabam agora os cursos não podem aceitar, porque a ordem não é polícia e para além disso isto não é crime.
Qual é que gostaria de ver como a prioridade do Governo na área da Saúde para este último Orçamento do Estado da legislatura?
A carreira e a contratação mas, em primeiro lugar, a carreira porque ela é a base de tudo o resto. Quanto à contratação, não digo que tenham de se contratar 30 mil enfermeiros de uma vez, aliás, e tanto que não que a Ordem apresentou uma proposta estruturada, com bom senso, que é três mil por ano. Isto é exequível. São 65 milhões por ano, que é 0,6% do orçamento total para a saúde, portanto não estamos a pedir nada de especial. Se conseguirem fazer a carreira e a questão da contratação, nós já ficamos felizes.
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Bastonária: “Governo não tem condições” para passar já enfermeiros para 35 horas
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