Constelação de satélites e porto espacial vão “mudar o paradigma do espaço em Portugal”

Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, espera uma duplicação do investimento no espaço, para 200 milhões. Primeiro lançamento em Santa Maria esperado no início de 2026.

O setor do espaço em Portugal está perto de dar um salto com a colocação em órbita das primeiras constelações de satélites e a construção do porto espacial na ilha de Santa Maria afirma Ricardo Conde, que desde 2020 preside à Agência Espacial Portuguesa.

A constelação ATOM e a Constelação do Atlântico, esta em parceria com Espanha, têm concretização prevista até ao final de 2027 e permitirão acelerar a oferta de serviços ligados ao espaço. O primeiro lançamento suborbital a partir do porto espacial de Santa Maria deverá acontecer no início do próximo ano, antecipa o representante português no Conselho da Agência Espacial Europeia e no Observatório Europeu do Sul, em entrevista ao podcast À Prova de Futuro.

“Se fizermos esses dois componentes, nós estamos a dar à Europa um sinal e uma capacidade como nunca demos no espaço. Chama-se isso mudar o paradigma em Portugal”, afirma Ricardo Conde, cujo ecossistema do espaço reúne cerca de 80 empresas.

No novo enquadramento geopolítico, a Europa está obrigada a ganhar uma maior autonomia estratégica, incluindo face aos EUA, o que passa por juntar as dimensões do espaço e da segurança e defesa. Em novembro acontece o próximo conselho ministerial da Agência Espacial Europeia, e Ricardo Conde antecipa um forte aumento do orçamento de investimento que Portugal irá levar. “Neste momento temos 115 milhões e eu gostava, com esta componente também de segurança e defesa, que é algo que neste momento estamos também a trabalhar, que conseguisse superar os 200 milhões”, revela.

O presidente da Agência Espacial Portuguesa afirma que está em marcha a “segunda corrida espacial”, que passa pela extensão geopolítica do território para os asteroides, a começar pela Lua, que é atrativa por causa dos minérios. “Não é um dado adquirido que nós voltaremos à Lua através dos Estados Unidos”, diz.

Vivemos num contexto geopolítico marcado por vários conflitos, uma mudança na política externa americana agora muito mais crítica e às vezes até hostil em relação à União Europeia. Isto vem reforçar a necessidade da Europa ganhar uma maior autonomia estratégica em relação aos Estados Unidos e às empresas americanas que dominam este setor. Sente-se um impulso para uma mudança na forma como se olha para o espaço na Europa?

Sente-se de uma forma talvez mais reativa do que a ativa. Se nós olharmos para os últimos cinco anos, tivemos aqui um bocadinho de tudo. Tivemos em 2020 a pandemia que mostrou as nossas fragilidades. Se reparar, o problema que nós estamos a ter com o armamento, com as munições, tínhamos esse problema com o álcool gel e com as máscaras. Podemos colocar isto no mesmo patamar de autonomia. Chegámos agora a esta fase em que queremos afirmar esta autonomia e não temos o álcool gel e as máscaras para o espaço. Nós temos de pensar nos centros de decisão europeus, pela escala. O espaço é uma área económica, aquilo a vulgarmente chamamos de new space economy, mas é uma área de escalas.

E a escala está nos Estados Unidos.

No contexto europeu, são 27 centros de decisão. Para produzir uma decisão é extremamente complicado. Quando nós estamos confrontados com uma situação destas, de ameaça em termos de segurança, a escala individual dos países não é suficiente.

A União Europeia não está a saber reagir?

Saber reagir sabe. O diagnóstico está feito. Mas o processo de decisão continua a ser muito lento. No último ano, por exemplo, foram feitos os relatórios Letta e Draghi. É preciso passar para um nível decisório. E tomar decisões é extremamente complicado, num mercado muito fragmentado como está o nosso.

Nos últimos anos, há um empresário americano que se destacou na área do espaço, que é Elon Musk, através da SpaceX e da Starlink. A Europa está demasiado dependente destas duas empresas?

Principalmente da SpaceX. Na Starlink eu diria que temos alternativas, na SpaceX começamos a ter alternativas, mas estamos a falar de realidades aqui diferentes.

Houve uma tomada de consciência diferente quando aconteceu a retirada de uma dessas componentes, a Starlink, como suporte de intelligence [serviços de informação] à Ucrânia na guerra. Não posso detalhar mais, mas houve uma tomada de decisão, e aí sim muito rápida, para substituir essa capacidade por capacidade europeia.

É possível dizer que a Europa está “x” anos atrás dos Estados Unidos nesta matéria?

Nós aqui na Europa somos também um bocadinho miseráveis por nós próprios. Nós temos competências absolutamente formidáveis em algumas áreas. As grandes empresas, a partir dos anos 2000, no top 12 digamos que dez são americanas, na parte da tecnologia. Google, Apple, etc. Está a verificar-se a mesma coisa no espaço. As tendências estão marcadas. No top 10, eventualmente oito serão americanas. Está aí a SpaceX, a Starlink.

A Europa também tem capacidades. Há cera de duas semanas houve uma tomada de consciência diferente quando aconteceu a retirada de uma dessas componentes, a Starlink, como suporte de intelligence [serviços de informação] à Ucrânia na guerra. Não posso detalhar mais, mas houve uma tomada de decisão, e aí sim muito rápida, para substituir essa capacidade por capacidade europeia. É possível fazê-lo.

Capacidade já instalada ou a instalar?

Está instalada. Há aqui um fator que é extremamente importante, porque quando nós recorremos a essas capacidades externas, por exemplo a uma Starlink, nós recorremos a uma empresa. Na Europa, muitas vezes agregam-se capacidades de vários países. Temos um exemplo muito concreto aqui, que é o SST, que é a questão do tracking do lixo espacial, que é uma competência agregada com vários sensores no espaço europeu. E o mesmo na parte das comunicações, com um projeto global chamado GOVSATCOM.

A par com o investimento em defesa, o investimento dos países da União Europeia no espaço vai ter de aumentar?

Vai ter de aumentar muito. Para termos verdadeiramente uma economia de defesa, temos que ter na cadeia de valor várias dimensões. Uma delas é o acesso ao espaço. Hoje temos acesso ao espaço, mas havia um gap muito grande, até porque descontinuámos na altura um dos lançadores, que era o Ariane 5, enquanto o Ariane 6 não estava na sua fase já operacional. Tínhamos uma cooperação com a Rússia, em que quem servia as operações era um lançador russo que operava na Guiana Francesa. Mas hoje temos o Ariane 6 e o VEGA. Talvez este ano já se consiga uma maturidade nos pequenos lançadores.

Se não houver um acesso ao espaço competitivo na Europa, nós temos um défice à partida naquilo que a jusante é a economia do espaço. Uma delas é o in-orbit servicing, toda uma economia em órbita. Para termos uma economia em órbita, temos de colocar coisas em órbita.

Numa estratégia a longo prazo, nós temos que ter uma redefinição completa daquilo que é o acesso ao espaço, para termos duas coisas, operações espaciais humanas e, se for a perspetiva da Europa, a chamada economia lunar.

Essa capacidade europeia ainda é limitada. A SpaceX faz, talvez, 90% dos lançamentos?

Não sei se não será mais de 90%. O que nos está a obrigar agora a uma dimensão que nós às vezes não nos apercebemos. Antes do Falcon 9 e do Falcon Heavy, da SpaceX, o voo espacial tripulado era garantido com a cooperação com a Rússia, através da Soyuz. Com a SpaceX, os Estados Unidos ganharam a sua autonomia. A Europa não tem autonomia. O nosso corpo de astronautas e a nossa presença na Estação Espacial Internacional é assegurada pelos Estados Unidos. Esta é uma dimensão que também falta. Numa estratégia a longo prazo, nós temos que ter uma redefinição completa daquilo que é o acesso ao espaço, para termos duas coisas, operações espaciais humanas e, se for a perspetiva da Europa, a chamada economia lunar. Caso contrário, nós vamos estar restringidos a lançar satélites ou operar satélites e a este registo de utilizar as cinturas orbitais. E só este registo já é muito, atenção.

Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, em entrevista ao podcast do ECO “À Prova de Futuro”.Hugo Amaral/ECO

Santa Maria pode estrear lançamento suborbital no início de 2026

Para isso é preciso criar uma capacidade de lançamento nova.

Uma capacidade nova, a evolução do Ariane 6, 6.2, 6.4, para ter uma cápsula de voos tripulados. É toda uma dinâmica que a Europa precisa. Temos talvez de triplicar o investimento. Neste momento, incluindo os 27 e também o Reino Unido, a Noruega, a Suíça, que também estão na Agência Espacial Europeia, nós temos na Europa um orçamento que é menos de metade dos EUA. E falo na parte civil. Há outra dimensão na Europa que não temos que é a procura militar. Nos EUA isso faz parte, naturalmente, da economia. Já se está a discutir [na Europa] qual é a dimensão do espaço para uma economia da defesa. As comunicações são uma dimensão, outra é o fast response to space. Se eu quiser lançar um satélite militar tenho um hiato de um ano ou dois, porque não há capacidade de resposta rápida. A Europa tem de ter essa capacidade. O voo que explodiu da Isar Aerospace, lançado em Andøya [na Noruega], não foi um fracasso, foi um autêntico sucesso. Foram 30 segundos num voo perfeito. Se olharmos para a história, esses lançadores são todos assim. A história da SpaceX é feita de falhanços. Precisamos dessa dimensão de resposta rápida e gostava que Portugal também estivesse nessa resposta.

Temos um projeto que é o Atlantic Spaceport Consortium, para a criação de um porto espacial em Santa Maria. Quando é que vai ver a luz do dia?

Posso dizer que o processo de licenciamento está em curso. Posso dizer isso com muita tranquilidade. Nós estamos a falar, para já, de licenciamentos de localizações, de infraestruturas. Haverá uma outra fase que é o licenciamento de um lançador.

Tudo isso ainda vai demorar alguns anos?

Não. Há duas componentes: há uma parte suborbital de teste e uma orbital. A ISAR, por exemplo, quis fazer já o seu teste orbital. Aqui em Portugal penso que se vai iniciar pelos voos suborbitais e penso que no início do próximo ano teremos já o primeiro voo suborbital. Esse é o objetivo.

Duplicar o investimento e mudar o paradigma

Os países europeus estão a aumentar os seus orçamentos de defesa e dizem que os vão aumentar ainda mais. Portugal também pretende seguir essa tendência. Acredita que o investimento em Portugal no espaço também vai aumentar?

Já tem aumentado.

Consegue-nos dar uma ideia dos valores que já foram investidos e que vão ser investidos no futuro?

Sobre o futuro tenho algumas reticências em dizer valores, porque gostaria de saber também. Há alguns números que permitem inferir o que é a economia do espaço em Portugal. Temos mais 50% de empresas do que tínhamos em 2019, quando foi criada a Agência Especial Portuguesa. Houve uma dinâmica no sentido da economia do espaço e hoje temos à volta de 80 empresas e entidades que atuam nesta área.

É um setor diversificado e já começa a haver, e esta é a grande transformação, uma pequena agenda industrial de integração. Para estarmos no espaço, temos de ser uma nação ‘fly’, temos de ter satélites.

Estamos a falar de empresas que fazem fornecimento de componentes para lançadores e satélites, de empresas de serviços de base espacial…

Há um leque muito alargado. Há empresas que fazem o componente, por exemplo válvulas para o lançador VEGA. Há empresas que fazem subsistemas e sistemas de navegação e controle, por exemplo, de lançadores. Há empresas que fazem software crítico de teste e validação. Há empresas que fazem pequenos sistemas de propulsão para satélites. É um setor diversificado e já começa a haver, e esta é a grande transformação, uma pequena agenda industrial de integração. Para estarmos no espaço, temos de ser uma nação fly, temos de ter satélites. Voltámos ao espaço, ainda de uma forma ténue, com o primeiro satélite operacional e comercial [em janeiro], que até já deu o sinal de vida há dois ou três dias. Já estamos a crescer a cadeia de valor ao posicionarmo-nos ao nível dos serviços. Falta um pequeno pormenor, que é a procura interna, que é uma forma de depois alavancar para o mercado internacional.

O setor da defesa pode ajudar a criar essa procura interna.

A defesa tem um papel muito importante. Tem que haver aqui uma simbiose muito forte entre a indústria e a defesa, no sentido de a defesa dizer quais são os seus targets operacionais, quais os sistemas que lhe trazem valor, e abrir os concursos. É o que fazem os EUA. Hoje a defesa não é só balas e canhões, tem uma componente tecnológica em que o espaço é uma ferramenta extremamente importante. A Força Aérea já tem uma noção extremamente detalhada daquilo que pretende com a componente espacial e é transformar isto depois também numa economia de defesa.

Considerando os números de 2024, o espaço [em Portugal] representou sensivelmente 134 milhões de euros. Há cinco anos eram 60 ou 80 milhões.

Qual o valor da economia do espaço em Portugal?

Considerando os números de 2024, o espaço representou sensivelmente 134 milhões de euros.

Quais eram os números há cinco anos?

Eram 60 a 80 milhões de euros e estou aqui a incorporar variadíssimas dimensões incluindo o investimento público direto. O investimento hoje é praticamente público. Temos talvez 6% de investimento privado. Vai ter de ser diferente, na Europa, daqui a dois ou três anos teremos de ter muito mais investimento privado. Talvez metade ou um terço do investimento. Daí a importância da procura pública. As empresas não querem projetos, querem contratos. Se houver um cliente âncora, mais facilmente têm acesso a capital. O ano passado só houve uma empresa em Portugal que levantou capital, dois milhões de euros. É muito pouco. Em 2022 tinham sido 30 milhões e em 2023 dez milhões.

A sua expetativa é que o investimento público aumente no espaço?

Vai ter que aumentar, quanto mais do que seja, pela questão da segurança e defesa.

Gostava que o governo que sair das próximas eleições reforçasse a aposta no espaço. É necessário duplicá-la?

Digo-lhe que sim, nas várias componentes. Nós temos agora um desafio extremamente importante em novembro. De três em três anos, revisitamos os ciclos de investimento na Agência Espacial Europeia. Na realidade, é um retorno industrial. É como se fosse um banco, colocamos lá o dinheiro para depois retornar em forma de contratos para a nossa indústria. Pela primeira vez, está-se a falar de algo inédito, que é nesse retorno possa ser também considerado a parte da segurança. Não a defesa, mas o uso duplo.

Civil e comercial.

A Starlink está como um elemento das operações militares na Ucrânia. Muitas vezes não sabemos muito bem onde é que está a fronteira da utilização, se é civil ou militar. Estamos a visitar as empresas todas para ver como é que se alinham as perspetivas para o próximo Conselho Ministerial da Agência Espacial Europeia, onde vai ser definido o orçamento que nós vamos colocar lá, para retornar em termos de contratos e definir a operacionalização de algumas áreas, em particular da defesa. Vamos propor o investimento ao Governo, espero que ainda em maio.

E esse orçamento pode crescer de quanto para quanto?

Neste momento temos 115 milhões e eu gostava, com esta componente também de segurança e defesa, que é algo que neste momento estamos também a trabalhar, que conseguisse superar os 200 milhões.

Se fizermos esses dois componentes [constelação de satélites e porto de acesso ao espaço], nós estamos a dar à Europa um sinal e uma capacidade como nunca demos no espaço. Chama-se isso mudar o paradigma em Portugal. E eu gostava muito que se mudasse o paradigma em Portugal nos próximos três anos, a partir deste ano.

Isto para ser aplicado em que período?

Em três anos, sensivelmente. Temos de definir as duas escolhas que Portugal tem que ter, olhar para o nosso potencial e alavancar esse potencial. Uma deles é, de facto, posicionar as nossas constelações, o que estamos a fazer agora, em particular num conceito hoje muito importante que é o das constelações híbridas. Portugal deu um passo pioneiro com a Constelação do Atlântico, que temos de posicionar como um pilar na Europa com outros países. Estamos a trabalhar sobre isso com os nossos parceiros a Geosat e o CEIIA. É um pilar muito importante e gostava que se refletisse agora na contribuição ministerial para novembro.

Qual a segunda escolha?

A outra é que Portugal tem de ter capacidade para se tornar um player na resposta rápida de acesso ao espaço, através do porto espacial de Santa Maria. É um hub de acesso ao espaço e retorno de missões. Estamos na primeira fase para o que vai ser um voo de retorno do Space Rider, um veículo da Agência Espacial Europeia que é lançado da Guiana Francesa e que vai aterrar em Santa Maria, numa lógica de reutilização. A Europa tem de ter um ponto de retorno e temos de olhar para Santa Maria como esse nó. Temos as condições. Se não o fizermos, perdemos esta oportunidade.

Se o investimento no espaço puder ser feito por aqui, todas essas oportunidades serão abrangidas. A parte da comercialização de novos serviços e a evolução daquilo que são os satélites de alta e média resolução, que hoje estamos a fazer cá em Portugal, com vários players, o CEIIA, a Geosat, a Lusospace, e a parte do acesso ao espaço. Se fizermos esses dois componentes, nós estamos a dar à Europa um sinal e uma capacidade como nunca demos no espaço. Chama-se isso mudar o paradigma em Portugal. E eu gostava muito que se mudasse o paradigma em Portugal nos próximos três anos, a partir deste ano.

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