Tomaz Leiria Pinto critica contradição nas ligações entre Portugal e Espanha e contesta modernização da Linha da Beira Alta em vez de apostar em nova linha.
Choque de inteligência e de gestão na ferrovia em Portugal. Este é o principal mote para a organização do XV Congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento dos Sistemas Integrados de Transportes (Adfersit), que junta quadros das empresas de transportes a nível nacional. Terça e quarta-feira, a associação organiza o seu XV Congresso Nacional, em Lisboa, e vai discutir o papel da ferrovia no futuro do país: dia 29, de forma mais genérica; dia 30, com foco no Plano Ferroviário Nacional e na proposta para as linhas de alta velocidade em Portugal.
Antes disso, o presidente da Adfersit, Tomaz Leiria Pinto, defende que a CP deve voltar a tratar da manutenção corrente das linhas de comboios – 25 anos depois de ter perdido esta competência para a Refer – e que falta vontade política para resolver o problema da falta de comboios diretos entre Portugal e Espanha.
Em entrevista ao ECO, o líder da associação também apoia a intenção de Portugal recorrer ao método de parceria público-privada para a construção da linha de alta velocidade Porto-Lisboa.
Tem defendido que Portugal deve apostar na Linha da Beira Alta como uma das principais linhas para o tráfego de passageiros e de mercadorias. O que diz sobre as obras de modernização desta linha estarem atrasadas?
O calendário existe mas não está a ser cumprido. O Ferrovia2020 foi uma medida louvável para promover a modernização da rede ferroviária nos principais itinerários. No entanto, é surpreendente que a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes nos diga que as obras estão atrasadas, a nível global, em dois anos e três meses, constatando que apenas 15% dos projetos estão concluídos. O programa deveria ter terminado em 2020. Não só temos o problema da Linha da Beira Alta, no Oeste, como noutras.
Nós temos de, imprescindivelmente, alterar o modelo de atuação nas obras de manutenção e expansão da infraestrutura ferroviária. Em Espanha, para os novos empreendimentos, foi criada uma nova empresa, a Adif. A França e a Alemanha fizeram a mesma coisa. Em Portugal, tivemos a infeliz ideia de juntar tudo numa empresa complicada, a Infraestruturas de Portugal. Inicialmente, a ideia era boa para a ferrovia porque iam buscar as verbas das portagens para financiar a ferrovia. Ora, era óbvio que nada disto iria acontecer, porque depois, com o ciclo eleitoral, descem-se as portagens.
Faz pouco sentido a manutenção corrente da infraestrutura não ter continuado na CP porque, neste momento, todas as obras são tratadas como se fossem grandes empreendimentos. Defendemos a alteração deste modelo, para evitar a acumulação de atrasos.
Em que sentido a CP deve cuidar da manutenção das linhas de comboio?
A manutenção corrente não se coaduna com a estrutura da IP, que tem outras pressões. A IP está mais vocacionada para as antigas tarefas da Estradas de Portugal: o talude que caiu, a ponte que ameaça desabar, a reabilitação da estrada… a manutenção corrente devia ter ficado na CP. Para se executar no terreno o futuro Plano Ferroviário Nacional, este modelo não serve.
Defende a reversão da fusão da IP?
Desfazer é a pior coisa que há. As estruturas passam muito pelas pessoas que lá estão: pode ser tudo muito bem definido mas e se depois não tiver pessoas no terreno? Outro dos problemas que temos é que se perdeu muita cultura ferroviária e isso demora muito tempo a recuperar. Também se perdeu muita capacidade de engenharia. Hoje, para haver projetos, a IP enfrenta falta de capacidade de projeto. Houve anos muito negros para as nossas estruturas de projeto. As empresas, para fazerem este tipo de obra, têm de ter um plano previsível, no qual vale a pena apostar em maquinaria e técnicos. É necessária uma carteira de obras, a dez anos. Atualmente, os meios são escassos. Felizmente, temos o Programa Nacional de Investimentos 2030 e Plano Ferroviário Nacional a caminho. Assim, as pessoas sabem qual é o futuro e há um plano de financiamento. Aos soluços é que isto não vai lá.
Acredita nas justificações da IP para as obras não cumprirem os prazos?
Quem sou eu para dizer que não é verdade aquilo que eles dizem? Mas, como cidadão, posso ficar intranquilo. Há uma certa inércia. Espanha também tem registado atrasos relativamente à fronteira. Estão muito mais interessados em aprofundar a relação ferroviária com França – que também bloqueia muita coisa – do que com o problema de Portugal. O Plano Ferroviário Nacional não começa por abordar a infraestrutura mas sim uma metodologia nova, a partir do PNPOT [Programa Nacional da Politica de Ordenamento do Território] e as redes transeuropeias, onde apontamos alguma fragilidade à IP. Da última Cimeira Ibérica saiu uma mão cheia de nada.
Faz pouco sentido a manutenção corrente da infraestrutura não ter continuado na CP porque neste momento todas as obras são tratadas como se fossem grandes empreendimentos. Defendemos a alteração deste modelo, para evitar a acumulação de atrasos
Falta vontade política para resolver o problema das ligações ibéricas?
Só posso dizer que sim. Numa altura em que falamos tanto sobre ligações, continuamos sem ter um comboio direto para Madrid.
O que tem a dizer sobre o projeto de alta velocidade, que dá prioridade à ligação para a Galiza do que para Madrid?
A Adfersit sempre defendeu, como prioridade, um eixo em alta velocidade Norte-Sul. Ao mesmo tempo, sempre defendemos o Pi deitado: uma linha em bitola europeia (Aveiro-Salamanca) e a linha peninsular (Sines-Caia). Neste momento, a prioridade do Governo é privilegiar o Norte e a ligação à Galiza. Chamamos a atenção para esta contradição: há um documento que diz que todas as capitais europeias deviam estar ligadas por bitola europeia até 2030. Começa a ser complicado fazer a ligação até Madrid até 2030.
Fala em contradição mas já existem comboios de alta velocidade em bitola ibérica. Além disso, quem pagaria o custo de alterar todo o projeto da linha de alta velocidade da bitola ibérica para bitola europeia?
É uma preocupação e há aqui algumas contradições. No congresso, iremos chamar atenção para isso, através de duas sessões, uma sobre o Plano Ferroviário Nacional e outra sobre a ligação Porto-Lisboa em 1 hora e 15 minutos. Uma coisa é saber como se faz; outra é o financiamento das obras.
Falando em financiamento: a nova linha Porto-Lisboa deverá ser construída em modelo de PPP [parceria público-privada]. O que tem a dizer sobre isto?
Com as PPP, nas estradas, aproximámos o país. Hoje vamos para Bragança em quatro horas em segurança. Isso foi muito graças ao esforço destas parcerias. Nem todas as PPP correram bem, há críticas que são feitas – e com razão – agora o instrumento, em si, é válido. O problema é como se passa isto ao terreno, como se acompanham os projetos e se monitorizam para que depois isto não seja, no futuro, resolvido por sociedades de advogados e consultores. Não podemos recusar as PPP porque algumas não correram bem. Temos de aprender com os erros do passado e não correr o risco de não ter controlo de nada.
A IP, tal como está, tem condições para gerir estas parcerias?
Será difícil, mas hoje a pessoa que está à frente da IP [Miguel Cruz] é um ex-secretário de Estado do Tesouro, com uma bagagem financeira.
Estava previsto para 2022 o perdão da dívida histórica da CP. O que tem a dizer sobre o seu adiamento?
Impede a CP de recorrer ao financiamento da banca e vai atrasando tudo. É uma maneira de dizer: “tu podes ir mergulhar. Então e o fato de banho? Isso não te dou”.
Não teme que esta situação impeça a CP de operar as linhas de alta velocidade em Portugal?
Não tenho nada contra isso. As pessoas querem é mobilidade. Não é o Estado, tal como está, que tem de garantir isso. O Estado tem de definir o que quer e definir que o que é dado a terceiros é cumprido. A liberalização do mercado vai permitir que os operadores que estão na Europa e que queiram vir a Sines e a Aveiro vão defender que haja uma linha em bitola europeia. A abertura ao mercado é a melhor forma de nos atualizarmos. Não é acantonados: sempre que isso aconteceu perdemos perspetiva.
Não podemos recusar as PPP porque algumas não correram bem. Temos de aprender com os erros do passado e não correr o risco de não ter controlo de nada
Mas mesmo os operadores logísticos dizem que a mudança de material entre bitolas ocupa uma fração mínima de tempo.
É verdade. Aí, a IP, está a fazer o que deve fazer dentro do que lhe é autorizado: garantir o cruzamento de comboios de 750 metros de comprimento.
O Plano Ferroviário Nacional prevê a construção da linha Aveiro-Vilar Formoso, que já foi chumbada por duas vezes pela Comissão Europeia por avaliação custo-benefício negativa. Acha que passa à terceira?
Não sei se passa mas devíamos continuar a bater-nos por ela.
Vamos ver se na Beira Alta não cometemos o mesmo erro e depois lamentarmo-nos pela oportunidade perdida de construir uma linha de raiz
Sabe que há uma linha proposta para a região de Trás-os-Montes e que também dá ligação a Espanha?
Parece-me ser uma opção melhor para o turismo mas aí os custos são mais complicados de equacionar. Para nós, a grande zona de produção e de exportação além-Pirinéus é no Norte. Continuamos a sofrer de um traumatismo, a recuperação da Linha do Norte, que anda a ser tratada há mais de 30 anos. É uma linha que está a ser atamancada. Vamos ver se na Beira Alta não cometemos o mesmo erro e depois lamentarmo-nos pela oportunidade perdida de construir uma linha de raiz. Basta pensar que a A1 foi feita sem se aproveitarem restos da antiga Estrada Nacional 1.
O que teria acrescentado à proposta do Plano Ferroviário Nacional?
Falta um calendário mais concreto para ligar as capitais ibéricas e a migração para a bitola.
Espanha também não tem calendário para mudar a bitola.
Não somos obcecados no conceito da “ilha ferroviária”, que diz que, ao não migrarmos as linhas da bitola ibérica para a bitola europeia, nos estamos a isolar. Não concordamos com essa visão nem haveria dinheiro para uma coisa dessas neste momento. Mas tem de haver um calendário para uma linha em bitola europeia para a Europa.
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“CP devia fazer manutenção das linhas de comboio”, diz presidente da associação de transportes Adfersit
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