Em entrevista ao ECO/Capital Verde, Nuno Moreira, CEO da Dourogás, destaca o papel do gás natural na transição energética em curso em Portugal. Quanto ao hidrogénio, garante que "não é um rival".
Com 25 anos de existência, a história do Grupo Dourogás remonta a 1994, quando o norte interior de Portugal ficou de fora da concessão da Rede Nacional de Gás Natural. O que era uma desvantagem, acabou por se tornar numa grande oportunidade: a empresa tem hoje uma rede de distribuição presente em 34 municípios acima da margem direita do Douro, abastecendo uma parte substancial da indústria e do tecido empresarial português.
O Grupo Douro Gás conta com 11 postos de abastecimento de gás natural veicular (três deles a inaugurar muito em breve) espalhados pelos país, abastecendo uma parte substancial da frota de autocarros de passageiros da Sociedade de Transportes Coletivos do Porto (STPC) e também camiões de mercadorias que partem com exportações em direção ao resto da Europa.
Em entrevista ao ECO/Capital Verde, Nuno Moreira, CEO da Dourogás, destaca o papel do gás natural na transição energética em curso em Portugal, sobretudo com a saída de cena do carvão na produção de eletricidade, e garante que a empresa está já com um pé firme no futuro: em Mirandela, o grupo detém uma central de produção de gás natural 100% reciclável, feito a partir dos resíduos recolhidos pelo município. Ali, a partir do lixo é produzido o combustível que, depois, abastece a frota de camiões de recolha de resíduos urbanos, numa lógica circular – e que o grupo quer replicar noutros pontos do país.
Quanto ao hidrogénio, o gestor garante que não é um rival, até pelo contrário: “Temos uma certeza: se alguém vier a desenvolver hidrogénio na mobilidade somos nós. As empresas gasistas é que vão desenvolver o hidrogénio, não são as elétricas”.
Com o fim do carvão, que papel pode desempenhar o gás natural na transição energética em curso?
Num novo cenário mundial, em que se pretende que até 2050 todas as atividades humanas deixem de emitir carbono, o gás natural terá uma enorme importância nesse trajeto. Quanto ao fim do carvão, é algo que nós enquanto membros da International Gas Union, que congrega todas as empresas do mundo gasista, estudamos há muitos anos. Qualquer estudo que tenha sido feito sobre projeções futuras dos combustíveis que vão ser usados para produzir eletricidade, mostra que por volta de 2030/2035 o gás natural será a fonte e energia mais usada na produção de eletricidade. Mesmo quando comparado com as renováveis,
Não é apenas uma questão económica, é também um desígnio de descarbonização. O carvão é uma das energias que, economicamente, já teve uma grande mais-valia, mas do ponto de vista das emissões é uma das piores. A substituição de centrais que hoje trabalham a carvão e vão passar a funcionar a gás natural será o maior motor da descarbonização no mundo. Terá de ser assim em países como os EUA ou na Ásia, mas também em países mais próximos como a Alemanha e a Polónia, que ainda dependem muito do carvão. O caminho da descarbonização vai-se fazendo caminhando e será, para já, parcial, com o maior relevo assumido pelo gás natural. Além da eletricidade, o gás natural tem outras utilizações insubstituíveis: para as indústrias altamente intensivas de energia — papeleiras, cimenteiras, cerâmicas, refinarias e petrolíferas, que geram riqueza para o país — é essencial.
De que forma considera que o gás natural tem vantagens face às renováveis?
O projeto industrial de maior relevo dos últimos 25 anos foi a instalação das redes de transporte de gás natural. Nenhum outro projeto agregou tanto valor. Fez-se um grande investimento, de mais de 10 mil milhões de euros, numa rede de gás natural mas não foi só Portugal que fez este investimento. Toda a Europa dispõe da maior e melhor rede de gás natural do mundo. Temos um ativo que a China não tem, que os EUA não têm. A inclusão de renováveis na produção de eletricidade tem sido acompanhada pela construção de unidades de ciclo combinado a gás.
Há uma relação direta entre a penetração das renováveis e o gás natural, porque é a melhor forma de compensar quando não há sol, vento ou água. A existência de mais renováveis em Portugal só é possível com as centrais de ciclo combinado a gás que o país tem. Mas do ponto de vista carbónico também há vantagens. Ao substituirmos carvão por gás estamos a reduzir uma percentagem muito significativa as emissões. Ao dia de hoje já podemos falar de um caminho de transição energética. E neste primeiro trimestre Portugal já percorreu algum desse caminho, em direção a menores emissões de CO2. O gás natural é um combustível fundamental na transição energética.
Quais são os setores onde o gás natural ainda domina?
Olhando para as fileiras industriais e de serviços (escolas, hospitais, etc.) ainda não existe uma solução menos carbónica do que o gás natural. Quando usado para aquecimento custa um terço da eletricidade, por exemplo. Nos transportes pesados — rodoviário e marítimo — o gás natural já hoje tem grande importância nos camiões de mercadorias, A Dourogás é líder nacional nesse setor, do gás natural veicular. Estamos a abrir neste momento três novos postos, e vamos contar com uma rede de 11 postos no total, o que para Portugal já é considerável. No horizonte europeu, a Dourogás não fica atrás de outras empresas. Temos vindo a assistir a crescimentos na ordem dos 30% a 40% do volume de vendas e vai continuar. Como o gás natural é uma energia menos poluente quando comparada com o gasóleo, e mais económica, estamos a contribuir para que as mercadorias sejam exportadas a preços mais baixos, e o mesmo acontece com as importações. Do ponto de vista marítimo também já há avanços, com alguns navios a gás natural.
O fogão é só 10% do consumo de gás natural. 90% vai para a indústria, para gerar valor acrescentado ao país. Se não fosse feito o investimento feito numa rede de gás natural, a indústria que temos hoje não existiria. Veio substituir uma energia que custa o dobro: os derivados de petróleo. Há também a questão da coesão regional. Estamos a implementar novas redes de distribuição de gás natural em concelhos no norte interior: há 26 novos concelhos que temos vindo a cobrir desde 2016, substituindo o gás de garrafa, que custa três vezes mais. O transporte é feito por camião, a partir de Sines, até um depósito central e a partir daí distribuído por rede pela Sonorgás, uma empresa do grupo que se dedica à operação da rede de distribuição na sua área regional.
Se alguém vier a desenvolver hidrogénio na mobilidade somos nós. As empresas gasistas é que vão desenvolver o hidrogénio, não são as elétricas. Estamos especialmente preparados para isso. Temos em linha um projeto de transformação direta de biogás em hidrogénio, na zona de Lisboa, que candidatámos a um projeto e que esperamos colocar em marcha.
Sabendo que um dia o gás natural sairá também de cena, como estão a preparar esse futuro neutro em carbono?
Achamos que podíamos ir mais além e procurar outras incorporações, nas nossa redes de distribuição ou nas redes de gás para veículos, outros gases que ainda pudessem contribuir mais para a descarbonização. Aí entram os gases renováveis. É uma agenda que já temos há mais de 10 anos. Há quatro anos encontrámos a oportunidade na empresa Resíduos do Nordeste, em Mirandela, no seu aterro e central de valorização orgânica, que recebe resíduos de vários concelhos. Quisemos fazer um projeto pioneiro apoiado pelo Fundo de Apoio à Inovação, que consistia em utilizar o biogás já produzido ali e prepará-lo para ser utilizado em veículos. Dois anos depois, e com recurso a tecnologia portuguesa, comprovámos que era possível utilizar este gás em camiões de recolha de lixo. Temos hoje um em projeto que, através dos resíduos sólidos urbanos recolhidos, podemos produzir uma energia que abastece o depósito da viatura que os recolhe e ainda sobra. É um ciclo de Economia Circular. Estamos também a trabalhar para candidatar outros projetos nesta área dos gases renováveis.
Pertencemos ao BIOREF – Laboratório Colaborativo para as Biorrefinarias, que pretende trabalhar na investigação e inovação de processos e modelos que permitam vir a produzir biogases renováveis em metano ou gases do hidrogénio para utilizações energéticas. É uma agenda que nos próximos três anos queremos desenvolver em conjunto com as universidades portuguesas que integram este laboratório colaborativo. É um grande desafio que temos pela frente. Ao longo dos 25 anos da Dourogás tem vindo sempre a inovar, desde o primeiro posto de gás natural líquido em Portugal, um dos primeiros da Europa, e agora o primeiro projeto pioneiro de gás renovável para a mobilidade e para a injeção na rede.
O hidrogénio não é um “rival” para o gás natural?
Não vemos o hidrogénio como um rival, mas sim como uma consequência natural. Não estamos agarrados a um só produto, o gás natural, estamos sim comprometidos com a descarbonização. Apostamos no gás natural porque é a melhor forma de descarbonizar presentemente. Olhamos para o hidrogénio como uma forma futura para descarbonizar a 100%. Acreditamos muito nisso e não temos nenhuma dúvida.
Até temos uma certeza: se alguém vier a desenvolver hidrogénio na mobilidade somos nós. As empresas gasistas é que vão desenvolver o hidrogénio, não são as elétricas. Estamos especialmente preparados para isso. Temos em linha um projeto de transformação direta de biogás em hidrogénio, na zona de Lisboa, que candidatámos a um projeto e que esperamos colocar em marcha. O que vemos é que a utilização de hidrogénio — quer nos veículos, quer nos processos de produção — ainda requer algum avanço tecnológico. E nós vamos estar preparados para acompanhar e ajudar a desenvolver esses avanços. Achamos que a perspetiva do power to gas, ou seja a utilização de energia elétrica renovável excedentária para produzir gás, seja ele hidrogénio ou metano renovável, vai ser uma realidade e nela queremos ser líderes. Hoje somos líderes no GNV e na produção de gases renováveis, queremos sê-lo também no hidrogénio.
De que forma a Dourogás vai produzir hidrogénio?
Podemos vir a obter hidrogénio de todas as formas, incluindo por eletrólise, como em Sines. Quer pelos biogases, quer através do sol, com energia fotovoltaica. Temos vindo a estudar todos os processos. A questão é que a sua utilização e distribuição caberá mais as empresas de gás. Existem já países do mundo onde é injetada uma dada percentagem de hidrogénio nas redes de gás natural. Essa é uma evidência: serão as empresas gasistas a fazer uma utilização deste gás de hidrogénio.
Nós temos em curso dois projetos de investigação, desenvolvimento e demonstração de pequenos sistemas para a produção de hidrogénio a partir de fonte solar fotovoltaica. Do nosso ponto de vista, o que nos interessa é vir a produzir metano a partir desse hidrogénio e poder vir a utilizá-lo nas nossas redes. Não vemos que essa tecnologia seja utilizada em exclusivo em grandes projetos, como o de Sines. Esperamos vir a financiá-los ainda este ano e colocá-los em prática em 2021. Não são projetos concorrentes com Sines, são sim complementares à aplicação desta tecnologia.
O setor do gás mostrou-se muito resiliente. Não será dos que terá mais dificuldades. Estamos apreensivos com o setor do turismo, ao qual fornecemos gás, e também com a restauração e outros serviços. Mas estamos otimistas face ao futuro. Porque vamos conseguir encontrar novos lugares no mercado.
Vão ter um papel a desempenhar no projeto de hidrogénio de Sines?
Não temos a certeza disso. Existem já grandes players. Vamos ser a empresa que poderá vir a utilizar algum do hidrogénio de Sines para os nossos usos: na mobilidade, entre outros. Queremos que o projeto seja um sucesso porque permitirá que, com a introdução de hidrogénio nas redes, também a nossa atividade passe a ser menos carbónica. Se na matriz do gás português o gás natural tiver uma incorporação de hidrogénio, ele será menos carbónico. É um investimento enorme e tem de se liderado por grandes empresas de energia, como a EDP e a Galp, que já não estavam juntas num projeto há muitos anos.
De que forma a pandemia de Covid-19 afetou a Dourogás e todo o setor?
O setor do gás mostrou-se muito resiliente. Não será dos que terá mais dificuldades. Estamos apreensivos com o setor do turismo, ao qual fornecemos gás, e também com a restauração e outros serviços. Mas estamos otimistas face ao futuro. Porque vamos conseguir encontrar novos lugares no mercado. De acordo com as estimativas, da possível retoma, estamos em crer que em dezembro de 2020 as nossas perspetivas de vendas estarão aproximadamente a 90% das de dezembro de 2019. É a nossa melhor previsão. Ou seja, a retoma pode ser ainda mais significativa em 2021.
Existem oportunidades em Portugal relacionadas com a nossa capacidade de termos resistido à pandemia de forma melhor que os nossos vizinhos. Não fechamos totalmente a economia e vários setores mantiveram a laboração. Acredito que estamos melhor preparados para recuperar mais rapidamente que o habitual, sobretudo face ao passado. Portugal vai continuar a conseguir exportar desde que os países à nossa volta recuperem também.
A atividade da empresa não abrandou?
Apenas um pouco. Nós prevíamos finalizar o investimento nas redes de gás em 18 concelhos em 2020, estando já na fase as ligações dentro das casas dos clientes, o que ficou suspenso neste período. Houve uma desmobilização de empreiteiros que pode demorar a ser recuperada, mas acredito que o atraso não vá além dos seis meses. Não é crítico. Do ponto de vista da abertura de novos postos de gás para veículos, temos pequenos atrasos relacionados com capacidade das entidades nos darem autorizações finais, o que não aconteceu nestes meses, apesar de as construções já estarem acabadas. É o que acontece nas áreas de serviço da BP na Maia e em Vilar Formoso, outro posto em Palmela, esses três postos devem poder estar a funcionar muito rapidamente. Sentimos alguns dos nossos clientes, nos transportes públicos de passageiros, a reduzirem substancialmente. Ainda assim o saldo é positivo porque também assistimos a uma maior evolução no setor da distribuição alimentar (camiões a gás natural), que é um dos nossos principais clientes.
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