“Entrar em quimeras de investimento público seria um disparate total”

Em entrevista ao ECO, o ex-ministro da Economia considera que ainda é cedo para saber se terá ou não de haver austeridade, mas neste momento é de evitá-la para não aprofundar a recessão.

Álvaro Santos Pereira esteve no Governo da última vez que Portugal esteve crise. Era o ministro da Economia numa altura em que a troika ditava os destinos do país. Agora, enquanto diretor do departamento de Economia da OCDE, diz em entrevista ao ECO que esse cenário não se pode repetir nesta crise económica provocada pela pandemia e que se deve evitar “o máximo possível” a austeridade para não aprofundar a recessão, apesar de avisar que é prematuro tirar conclusões sobre se vai ser necessária contenção orçamental. No entanto, também alerta que não se deve entrar em “quimeras de investimento público”.

“Portugal devia entrar num grande programa de investimentos públicos como alguns defendem? Seria um disparate total porque isso já se viu na crise de 2009/2010 o que aconteceu”, avisa.

Quanto à União Europeia, deixa um elogio ao Banco Central Europeu (BCE) e à Comissão Europeia pela reação rápida que tiveram neste crise, mas pede uma resposta comunitária maior para fazer face à dimensão do desafio. Perante o cenário de grande parte dos Estados-membros ficar com uma dívida superior a 100%, Álvaro Santos Pereira avisa que o que foi feito até agora, apesar de ser notável, não vai ser suficiente. É preciso mais e as coronabonds devem estar em cima da mesa.

Este não é o momento para o regresso da austeridade à Zona Euro como aconteceu na última crise?

É prematuro analisar essa questão. Ainda não temos dados suficientes para perceber qual vai ser o impacto. Vai depender muito do país. Dou-lhe um exemplo muito concreto: na Estónia, há pouco tempo, o grande desígnio nacional era pôr a dívida a 0%. Quando tinham a dívida a 12% do PIB — que são valores que todos nós gostaríamos de ter — lembro-me muito bem de falar com o ministro das Finanças da Estónia e ele me dizer: não, 12% é muito elevado, tem de ser 0% ou perto de 0%. Portanto, o senhor estava a implementar um programa muito rígido de austeridade, com o qual os estónios estavam de acordo, para conseguir baixar a dívida para zero.

Na Eslováquia também existem restrições muito grandes ao nível da Constituição para a dívida não subir acima de 55% do PIB. Vão ter de alterar a Constituição ou ter de suportar uma austeridade brutal, que certamente não faz sentido, para conseguirem diminuir a dívida abaixo de 55% do PIB. Isso vai depender das respostas nacionais, se vai haver mais ou menos austeridade. Pergunta-me: vai ser preciso apertar o cinto nos países por causa desta questão? Como disse, tudo depende das condições iniciais do país. Não estou a ver a Alemanha ou a Holanda, ou outros países, a apertarem o cinto. Vão ser menos prudentes porque têm muita margem [orçamental].

E no caso de Portugal?

Devemos evitar o máximo possível ter uma contração mais exagerada do PIB por implementarmos uma grande austeridade na economia, mas acho que é prematuro prever o que vai acontecer. Vamos lá ver [o que acontece].

Após se conseguir domar o vírus, pelo menos nesta primeira vaga, o Governo diz que haverá um plano para recuperar a economia tanto a nível nacional como a nível europeu. Qual deve ser o foco?

O secretário-geral da OCDE falou já na necessidade de um Plano Marshall [plano implementado na Europa após a Segunda Guerra Mundial]. Há muitas possibilidades, obviamente. O mais importante é conseguir que as pessoas voltem as seus trabalhos e que as empresas não entrem em insolvência por causa da crise atual. Esse tem de ser o foco principal dos governos nos próximos tempos: planos contra o desemprego, planos para que as empresas não entrem em insolvência e consigam recuperar do choque brutal que estão a sentir neste momento. Mas as pessoas conhecem-me: se estamos a falar de reformas estruturais, eu sou sempre a favor. Qualquer hora é hora para reformas estruturais.

Mas que reformas estruturais é que são prioritárias neste momento?

Reformas para aumentar a competitividade da economia portuguesa são sempre importantes. Reformas para conseguir enfrentar algum dos grandes desafios que temos pela frente como o envelhecimento da população ou a questão da digitalização são sempre importantes. Vai ter de ser um pacote de medidas. Primeiro terá de se tentar apoiar a procura para as empresas não entrarem em insolvência, principalmente os setores que vão continuar a ser afetados. Tem de haver programas específicos desses setores.

Para mim também é evidente que vai ter de haver uma espécie de plano nacional contra o desemprego. Outras medidas como o reforço das linhas de crédito, do diferimento de impostos, etc. Além disso, muitos países vão aproveitar esta ocasião também para tentar tornar-se mais competitivos portanto as reformas estruturais certamente vão ter de acontecer ao mesmo tempo que estes apoios à procura.

E deve haver uma aposta no investimento público?

Se me pergunta se deve haver um grande plano de investimentos nacional? Eu acho que é importante um plano desses a nível europeu, por exemplo para financiar — já defendo isso há muitos anos e não mudei de opinião sobre essa matéria — totalmente pela UE as grandes linhas transeuropeias de transporte de comboio, desde os bálticos até à Península Ibérica. A UE aí podia perfeitamente, se eles quisessem, financiar esse tipo de investimentos públicos. São os investimentos públicos que nós precisamos.

Mais: por exemplo, melhoramos um pouco, mas ainda somos uma ilha a nível de energia elétrica. Uma das razões para termos energia elétrica mais cara do que no resto da Europa é porque não há concorrência suficiente cá dentro. As grandes linhas de interligações intraeuropeias de energia deviam ser feitas também financiadas pela UE. Se lhe quiser chamar Plano Marshal… um plano europeu de investimento em infraestruturas totalmente financiado pela UE devia ser feito.

Se me diz: E Portugal devia entrar num grande programa de investimentos públicos como alguns defendem? Seria um disparate total porque isso já se viu na crise de 2009/2010 o que aconteceu. Começamos a fazer investimentos sem sentido nenhum e sem rentabilidade nenhuma e as consequências não foram boas. Por isso mesmo acho importante ter algum investimento público, certamente, mas um grande programa de investimentos para relançar a economia não é preciso. Utilizem esse dinheiro para ajudarem as empresas e para as pessoas voltarem a ter emprego. Isso é que é importante. Agora entrar em quimeras de investimento público e dos grandes planos seria algo bastante mau para a economia portuguesa.

Quanto aos investimentos que já estão em andamento, como o Aeroporto no Montijo e a expansão do Metro de Lisboa, é a favor de que continuem?

Uma obra pública que vale a pena avançar é investir na bitola europeia e nas ligações europeias de ferrovia. Isso claramente é importante que aconteça. Em relação ao Aeroporto já é consensual que é necessário, é importante continuar a avançar com esse tipo de investimento, aliás porque se for no Montijo não estamos a falar de valores astronómicos, mas é preciso obviamente ponderar se há margem ou não para fazer o investimento.

Focando agora na União Europeia. Esta divide-se na questão da emissão conjunta de dívida. Corre-se o risco de a resposta comunitária ficar mais uma vez aquém do necessário?

A reação europeia a esta crise é muito diferente da reação há cerca de dez anos. Não tem muito a ver, pelo menos a reação inicial. A reação inicial à crise europeia depois de a Grécia ter apresentado problemas foi uma reação errada. Primeiro, o BCE não ajudou. Havia uma contração de crédito muito grande na altura. O BCE teve uma reação errada à crise anterior. Contrariamente ao que a Fed [Reserva Federal norte-americana] fez, que foi injetar dinheiro na economia, o BCE não, fez o contrário. Depois corrigiu o tiro e, obviamente, ajudou bastante. Só nisso a reação europeia mudou. O que o BCE fez nesta crise foi comprar tempo. No fundo, deixar que os países, as empresas e a economia pudessem respirar um pouco, tivessem mais liquidez para que os programas lançados pelos governos possam ter um bocado de impacto.

A segunda resposta europeia foi através da Comissão Europeia, também muito diferente do que aconteceu em 2010, que tirou as restrições orçamentais pelo menos temporariamente. Não vamos falar de défices excessivos, toda a gente vai ter de qualquer maneira. Além disso, algo que é muito importante e que não aconteceu em 2011 e 2012 — e foi algo com que me bati, e outros governos também, na altura para ter acontecido e não aconteceu — foi acabar com as regras de auxílio de Estado para que estes possam ajudar as suas empresas. Isso já mudou. Em relação à crise de 2011, isso é um avanço enorme. E as pessoas têm salientado pouco essa questão.

Mas será preciso mais… Recentemente assinou um artigo com a economista-chefe da OCDE onde argumenta que a resposta europeia tem de subir de nível.

O que dizemos nesse artigo, eu e a Laurence Boone, é que apesar desse progresso, isso não vai ser suficiente. A recessão vai ser muito forte e o impacto no défice e na dívida de muitos países vai ser muito forte. Vamos ter grande parte dos países europeus com dívidas acima dos 100%. E nós [Portugal] bem acima disso e outros países ainda pior. Como é que podemos financiar a dívida que vai ser criada para responder à crise da pandemia?

Há dois grandes mecanismos: um é o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) que neste momento é demasiado pequeno para aquilo que vai ser preciso e tem restrições que não fazem sentido. Para se responder a uma crise de uma pandemia, não faz sentido nenhum haver condicionalidades. Se houver tem de ser só utilizar este dinheiro para gastos relacionados com a epidemia. É a única condicionalidade que pode haver. Não pode haver a pretensão de avançar com reformas estruturais, de obrigar alguns países a fazê-lo ou outro tipo de condicionalidades para financiar esta dívida. Neste caso não pode haver [condições] porque senão o MEE não vai servir para nada. É um dos mecanismos mais interessantes e provavelmente será o mecanismo em que alguns países poderão estar abertos em que isso aconteça.

O outro mecanismo passa pela mutualização parcial da dívida, o que causa grande divisão entre os Estados-membros…

A outra possibilidade será o mecanismo de mutualização dos custos orçamentais que vão ser gerados por esta crise. Alguns chamam coronabonds, podem chamar-lhe o que quiserem. O termo coronabonds tem a grande vantagem: claramente todos sabem para o que é. Vai durar um pouco mais tempo [até haver coronabonds], mas é uma questão que está em cima da mesa. Há uma boa possibilidade, mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais tarde do que mais cedo, deste tipo de iniciativas poder avançar. É importante dizer que tudo que já foi feito não vai ser suficiente para garantirmos que não vamos ter problemas dentro de pouco tempo. Um desses dois mecanismos ou uma combinação será necessário para conseguirmos sair desta situação.

A emissão das coronabonds é algo mais psicológico ou simbólico para os investidores? O presidente do MEE argumenta que já há dívida mutualizada através do Mecanismo.

Não acho que seja só psicológico. Há uma questão de mutualização… [já] existe um pouco. O BCE, neste momento, está a ajudar imenso ao nível de baixar as taxas de juro da dívida. Isso é o mais importante. Mas por uma questão de solidariedade europeia seria importante avançar para outros mecanismos para ter a capacidade de fogo necessária para lidar com estes enormes efeitos desta pandemia mas, por outro lado, também para dar margem aos governos.

O espaço orçamental é muito curto. Se tivermos países a rondar os 200% ou 170% [rácio da dívida pública no PIB] — acho que não vai ser o caso de Portugal, embora vá aumentar bastante a sua dívida — é preciso financiar essa dívida. É uma questão que se torna muito difícil… Quando as pessoas se esquecerem do efeito da pandemia, pode ser complicado para alguns desses governos financiarem a sua dívida. É por isso que ter o MEE ou as coronabonds serão importantes para diminuir os encargos orçamentais dos governos e para ajudar e mostrar que há solidariedade europeias.

Não haver condições nos empréstimos do MEE é necessário para que não haja um regresso da austeridade?

Não é isso que estou a dizer. Estou a dizer que certamente que a [inexistência] de condicionalidade significa que não vamos ter troika aqui ou noutros países quaisquer para resolver a questão do combate à pandemia. Não haver condicionalidade significa não ter que cumprir algumas ações prévias ou ser obrigados a cortar salários, pensões, ou outras coisas… A não ser que os nossos governos decidam fazê-lo. A única condição é que este dinheiro tem de ser utilizado nas despesas da pandemia e para ajudar a economia a recuperar da pandemia, e não para dívidas antigas.

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