Joana Cunha D'Almeida é a advogada do mês da edição de janeiro da Advocatus. A sócia da Antas da Cunha ECIJA chama a proposta do Orçamento de Estado para 2021 como o “Orçamento da fiscalidade oculta".
Joana Cunha D’Almeida, sócia da Antas da Cunha ECIJA, esteve à conversa com a Advocatus e fez uma análise da proposta do Orçamento de Estado para 2021, designando-o como o “Orçamento da fiscalidade oculta”.
Para a advogada, o sistema judiciário é tão “pesado” e “antiquado” que não basta implementar soluções digitais nos tribunais. E acrescenta que os advogados fiscalistas não são, por natureza, “advogados de barra”.
Integrou a Antas da Cunha ECIJA em 2016, tornando-se sócia no ano seguinte. Como está a correr esta experiência?
A cultura, modo de estar e trabalhar da Antas da Cunha Ecija é única, refletindo-se nas relações internas e com os seus clientes. Para alguém cujo percurso profissional passou por experiências e enquadramentos tão diversificados como aqueles em que tive a possibilidade de me formar enquanto pessoa e profissional, estar numa sociedade que reflete também o que somos e aquilo em que acreditamos é, obviamente, uma concretização profissional muito compensadora.
Tem sido um especial desafio criar e fazer parte do crescimento do departamento de Direito Fiscal, cuja evolução e dinamismo é o reflexo da confiança que os clientes depositam em nós. Esse é um desafio diário que acontece a cada decisão, a cada reunião, a cada novo processo ou aconselhamento.
Ser sócia da Antas da Cunha Ecija no momento de especial sucesso que a sociedade atravessa é também, por si só, um enorme desafio e responsabilidade. Trabalhar para garantir que em cada momento estamos à altura do projeto e das ambições das equipas, traz um elemento de novidade e de necessidade de superação constante ao nosso trabalho. Tenho a sorte de partilhar conhecimento e soluções com profissionais tão inquietos e dedicados e a visibilidade do sucesso daquilo que realizamos. Sinto-me em casa.
Esteve envolvida numa operação que ascendeu aos 4,5 milhões de euros, a da compra de um edifício em Carnaxide por parte do Grupo JOYN. Qual é o peso da responsabilidade de estar envolvida em processos tão valiosos?
Não vejo o peso da responsabilidade como um corolário do valor das operações que acompanho, mas sim da relação que mantenho com os meus clientes e da necessidade de me empenhar ao máximo em qualquer operação ou aconselhamento. Todas as operações têm impacto na esfera dos clientes, pelo que sinto o mesmo nível de responsabilidade para com cada um deles.
"Não vejo o peso da responsabilidade como um corolário do valor das operações que acompanho, mas sim da relação que mantenho com os meus clientes e da necessidade de me empenhar ao máximo em qualquer operação ou aconselhamento.”
O Grupo JOYN faz parte deste conjunto de clientes com quem partilhamos o tal modo de estar e forma de trabalhar muito próprias e quando isso acontece a empatia é inevitável. É claro que o acompanhamento de uma operação com uma complexidade desta natureza importa uma entrega e uma envolvência pessoal que exigem a nossa total disponibilidade mental. As circunstâncias concretas da operação e as questões que se foram colocando, acabaram por torná-la também tecnicamente muito interessante.
Qual foi o processo/caso que mais trabalho lhe deu? E porquê?
Os processos de natureza judicial, pelo facto de normalmente se alongarem mais, são projetos a que vamos tendo que nos dedicar de forma mais continuada. Quando falamos de processos judiciais com complexidade técnica e vários sujeitos processuais, a evolução a que os mesmos estão sujeitos desde o momento do inquérito até ao trânsito em julgado é, por vezes, tão dinâmica que isso implica, obviamente, um dispêndio grande de recursos e de tempo.
Os advogados fiscalistas não são, por natureza, advogados de “barra”. Por essa razão, os projetos em que estão envolvidos têm normalmente uma duração limitada no tempo, com a exceção das situações de contencioso tributário que, mesmo em fase administrativa, tendem a alongar-se mais do que o razoável.
"Os advogados fiscalistas não são, por natureza, advogados de “barra”. ”
Se o critério para responder à sua pergunta for o tempo e energia alocados a um só processo, posso identificar um processo de fraude fiscal e branqueamento de capitais que se encontra neste momento em fase de julgamento e cujo inquérito se iniciou há aproximadamente 10 anos! Um processo com estas características, com consequências irremediáveis na vida das pessoas, exige de nós uma dedicação e envolvência necessariamente pessoais, com tudo o que isso implica.
Este processo em particular é um belíssimo exemplo das duas grandes críticas que faço ao funcionamento da nossa justiça. A primeira é a lentidão e ausência de agilidade do sistema judiciário. Consegue explicar-me de que serve o princípio in dubio pro reo se um arguido perde anos da sua vida a tentar provar a sua inocência? Como pode uma pessoa recuperar todos esses anos e refazer minimamente a sua vida ainda que o advogado seja bem sucedido na sua defesa? O nosso sistema judiciário é de tal forma pesado e antiquado que não basta implementar soluções digitais nos tribunais. É preciso mudar formas de trabalhar, tornar os procedimentos mais rápidos e modernos. Foi aliás um relatório de 2020 sobre o Estado do direito na União Europeia que considerou que o sistema judicial português continua a enfrentar desafios no que diz respeito à sua eficiência, em particular em tribunais administrativos e fiscais. Não há dúvida que basta a justiça tardar para se poder afirmar desde logo que falhou! A segunda, é a falta de especialização fiscal dos tribunais criminais. Os crimes fiscais assumem uma natureza tão intimamente relacionada com o sistema tributário que me espanta porque é que consideramos adequado que os mesmos sejam julgados por juízes que não têm competência técnicas nessa área. Existe um mundo de realidades técnico-jurídicas e até de conceitos legais que não são facilmente apreendidos numa sala de audiências, com todos os constrangimentos associados a esse momento, por quem não é dotado das competências e experiências próprias do Direito Fiscal.
Sendo da área de fiscal e face à pandemia que atravessamos, como avalia a proposta de Orçamento do Estado para 2021?
Tenho tido oportunidade nas últimas semanas de comentar o texto deste Orçamento do Estado e as medidas aí previstas. Faço-o e fá-lo-ei sempre de um ponto de vista estritamente técnico. Tenho designado este Orçamento como o Orçamento da fiscalidade oculta. O estado da Nação e a situação de precariedade e urgência económica e social em que o país se encontra justificavam um Orçamento do Estado dotado de medidas fiscais mais relevantes.
Reconhece-se a óbvia necessidade da resposta política às graves e urgentes questões sociais. Se há momento em que o Estado Social se justifica é precisamente este. Compreendem-se as dificuldades inerentes à elaboração de um Orçamento em contexto de incerteza e imprevisibilidade. Já é, no entanto, do campo da boa vontade compreender o manifesto esquecimento a que este Orçamento relega o maior motor da riqueza do país – as empresas -, não cuidando de criar medidas fiscais que ajudem a minimizar os impactos da crise. O momento é, infelizmente, de uma fiscalidade inevitável.
Em termos fiscais, o Governo poderia apoiar mais as empresas em plena pandemia ou considera que é o apoio possível?
O recurso à política fiscal como forma de atingir metas políticas, sociais e económicas é comum nos sistemas políticos modernos, sendo o Orçamento do Estado o instrumento que normalmente materializa tais mudanças.
Este Orçamento do Estado não aproveita aquilo que seria um excelente momento em termos de política orçamental – desde logo atento o contexto internacional que se vive e, particularmente, no seio da União Europeia -, para ir mais longe no apoio aos setores mais fragilizados da economia, criando medidas concretas e corajosas que ajudem as empresas a evitar o colapso.
De entre as várias possíveis, vejo especial bondade em medidas que atuassem diretamente ao nível dos custos e da liquidez das empresas, como a redução da taxa de IRC para os setores mais fortemente atingidos, a possibilidade de utilização da totalidade dos prejuízos fiscais disponíveis ou mesmo a isenção de IRC em caso de afetação de lucros a reforço de capitais próprios.
Como caracteriza o atual contexto fiscal português?
Não obstante as importantes mudanças ocorridas com a Reforma Fiscal de 2014 e a modernização da Autoridade Tributária, principalmente no que se refere aos sistemas de informação, o nosso sistema fiscal apresenta ainda um nível de instabilidade e uma complexidade que dificulta a sua eficiência e produtividade.
Para garantirmos a fixação e estabilização de níveis de investimento que sustentem a nossa economia, a política fiscal não pode dançar ao som das cadeiras do poder. Notamos na nossa profissão que existe uma preocupação comum aos investidores – portugueses e estrangeiros – relacionada com a estimativa de estabilidade dos regimes fiscais em vigor. Quando os agentes económicos receiam que uma grande fatia do seu business plan, que é a fatura fiscal, não pode ser medida com um grau de certeza razoável, é normal que retraiam as suas decisões de investimento ou as levem para outra geografia.
"Se lhe disser que, enquanto fiscalista, tenho dificuldades em identificar boa parte destas taxas, pode imaginar a dificuldade que é gerir empresas com este nível de falta de simplicidade e clareza.”
O sistema fiscal português é ainda caracterizado por uma rede de despesas fiscais que sufoca as pessoas e, principalmente, as empresas, sendo prejudicial para a sensação e perceção de justiça do sistema fiscal. Para dar um exemplo revelador da estrutura ainda marcadamente burocrática do nosso sistema tributário, temos o caso das taxas. Existem demasiadas entidades no âmbito da Administração Central, as Entidades Reguladoras, a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., a Comissão Nacional de Proteção de Dados, entre outras, que são responsáveis por um total de aproximadamente 4.000 taxas. Se lhe disser que, enquanto fiscalista, tenho dificuldades em identificar boa parte destas taxas, pode imaginar a dificuldade que é gerir empresas com este nível de falta de simplicidade e clareza.
Trabalhou vários anos numa consultora, chegando a ocupar o cargo de manager da divisão de Consultoria Fiscal da Deloitte, entre 2007 e 2010. Quais são as principais diferenças entre exercer direito numa sociedade e numa consultora?
As diferenças são essencialmente ao nível da dinâmica da relação com o cliente e, claro, no tipo de trabalho realizado, apesar dos diversos pontos de convergência.
A vertente de consultoria que tive oportunidade de trabalhar e desenvolver na Deloitte é do que melhor se faz em consultoria fiscal em Portugal. Naturalmente que quem tem a sorte de iniciar e desenvolver a sua carreira na Deloitte faz por trazer consigo não apenas o método de trabalho, mas o mesmo rigor e aposta na qualidade do mesmo. No entanto, apesar das importantes valências que um advogado e um consultor devem ter em comum, existem várias que são específicas do advogado e não de um consultor. Um consultor não é um advogado. E também não é como tal que o cliente o vê. Abstraindo das diferenças óbvias que envolvem os atos próprios de advogado, na minha opinião é precisamente na dinâmica da relação com o cliente que residem as diferenças no fazer Direito Fiscal numa sociedade de advogados e numa consultora. Um advogado é ao mesmo tempo consultor, “problem solver” e parceiro constante dos assuntos do cliente, carregando o peso da responsabilidade da confiança que é depositada em si.
Também exerceu consultoria fiscal independente. Quais foram os maiores benefícios de trabalhar por conta própria?
Este foi um período da minha carreira marcado pelo desenvolvimento da minha faceta mais comercial e autossuficiente. Compreendi que as valências que tinha desenvolvido enquanto consultora e advogada me tornavam numa fiscalista com uma visão abrangente dos problemas e necessidades dos clientes que era facilmente apreendida como uma mais-valia. O facto de não estar inserida numa estrutura durante esse período também me permitiu apostar no desenvolvimento académico e formação pessoal.
Não valorizo mais o exercício da consultoria fiscal independente do que a experiência de consultoria na Deloitte ou como head of tax de uma sociedade de advogados. Sei que sou o produto de cada uma destas formas de fazer Direito Fiscal e do que aprendi em cada uma, com a tranquilidade inerente ao facto de me saber e sentir advogada.
Com 20 anos de experiência, qual foi o maior desafio com o qual se deparou na carreira?
Sou casada e mãe de três filhos. Tenho uma família ao bom estilo latino e muitos bons amigos. Sou uma mulher de convicções, vaidosa e que adora viajar. Entretanto, também sou uma advogada work-addicted apaixonada por Direito Fiscal e que trabalha intensamente em equipa. Diria que o maior desafio (superado) da minha carreira tem sido ser feliz a ser tudo isto ao longo destes 20 anos.
Tem sido obviamente muito exigente e estimulante construir um departamento fiscal que todos os anos dá passos importantes na sua consolidação como referência no mercado da advocacia em Portugal. Quanto a posicionamento e novas apostas, sinto que estou no bom caminho. O maior desafio profissional deste momento é saber ser uma advogada do futuro. Se pensarmos nos desafios que as novas tecnologias nos impõem, rapidamente compreendemos que é necessário alterar a forma como estamos na nossa profissão, colocando a inteligência artificial ao serviço da prestação de serviços jurídicos.
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