João da Costa Pinto é presidente da comissão de auditoria do Banco de Portugal e foi responsável pela comissão de avaliação à atuação do regulador no caso BES.
Começamos a conversa com o desentendimento que existe entre o Governo e o Banco de Portugal quanto à escolha dos novos administradores. João da Costa Pinto, com uma longa carreira no Banco de Portugal e na banca, é hoje presidente da comissão de auditoria do Banco de Portugal e liderou igualmente a comissão de avaliação às decisões e atuação do Banco de Portugal na supervisão do BES. Sobre o relatório desta avaliação escusa-se a falar por ter sido decisão do Banco de Portugal não o revelar. Mas deixa um conjunto de reflexões sobre o que se poderia ter feito e não fez para salvar o BES.
Prudente nas respostas sobre o caso BES, considera que existiam soluções que eram basicamente de decisão política. É nesse contexto que dá o exemplo de Inglaterra onde ninguém perguntou aos bancos se queriam usar dinheiros públicos, foram obrigados. Porque não se fez o mesmo com o BES? Ficam hipóteses.
Tem uma longa carreira ligada ao sistema financeiro, à banca e ao Banco de Portugal. Hoje é presidente da comissão de auditoria do Banco de Portugal e integra também a administração da Fundação Oriente. Tendo em conta a sua carreira, o que começava por lhe perguntar é se a instituição Banco de Portugal está hoje mais frágil ou nunca esteve tão frágil?
É meu convencimento que a instituição Banco de Portugal está como sempre esteve. No sentido em que é uma das principais instituições da República, com uma longa história. Os problemas que decorrem de uma conjuntura extremamente complexa, e sobre muitos aspetos única, podem criar algumas dúvidas. Mas estou convencido, quero crer, que no essencial não belisca a imagem e o prestígio da instituição Banco de Portugal.
Pensa que o governador do Banco de Portugal se devia demitir?
Essa é uma pergunta a que o próprio governador já respondeu. É uma questão que nem faz sentido eu estar a responder. Porque o próprio já deixou bem claro o que é que pensa sobre isso. Como sabe, hoje os estatutos do Banco de Portugal refletem o sistema europeu de bancos centrais, que deixam claras as condições e o contexto em que um governador é nomeado e termina o seu mandato. Dá-me ideia que essa questão não se coloca e não faz sentido.
Quando se trata de escolher mais de metade dos membros de um conselho de administração do Banco de Portugal, num contexto particularmente complexo, é natural que haja discussões (…)
Considera que o Governo está a interferir mais do que no passado, nomeadamente ao não aceitar os nomes que têm sido propostos pelo governador?
O que conheço desse processo é o que tem vindo a publico. E, portanto, não lhe posso referir nada quanto a isso. Aliás, apresentou-me como presidente do Conselho de Auditoria do Banco de Portugal. É verdade. Também é verdade que tenho uma longa história ligada à instituição. Costumo dizer que, no Banco de Portugal, só não fui contínuo e governador. Porque entrei como estagiário e cheguei a vice-governador. De facto, uma longa história. Mas exatamente por via dessa longa história, em minha opinião, quando se trata de escolher mais de metade dos membros de um conselho de administração do Banco de Portugal, num contexto particularmente complexo, é natural que haja discussões de perfis, de experiências, entre o Governo — a quem compete nomear — e o governador — a quem compete propor. Estou convencido que no final chegarão certamente a uma solução que será a melhor para o banco.
Foi responsável pela comissão de avaliação à atuação do Banco de Portugal na supervisão do BES. Pode dizer-nos desde quando é que se sabia que o BES tinha problemas?
Deixe-me só precisar uma questão: eu não fui responsável por essa comissão. Eu presidi, a pedido do governador, a uma comissão independente que, por decisão do governador procedeu a uma avaliação do contexto e da forma como o Banco de Portugal tinha conduzido e avaliado a situação do BES e do GES.
E desde quando é que se sabia que o BES tinha problemas?
Há também um outro aspeto que preciso de clarificar. Essa comissão produziu um relatório, que fez essa avaliação ao longo de um período muito grande. Chegou a um conjunto de conclusões que entregou ao governador, entidade que foi quem pediu. Portanto, eu não devo, não posso, sequer referir-me às conclusões de um relatório que o governador deu encaminhamento que considerou que devia dar. Não me vou referir às conclusões do relatório.
É do senso comum entender que a natureza e a dimensão dos problemas que acabaram por conduzir ao colapso do grupo GES/BES, pela sua dimensão, não foram problemas súbitos.
Mas uma das conclusões que chegou a público foi que esse relatório identificava problemas no BES e no GES desde o início do século, desde 2000-2001. Isso corresponde à realidade?
Falando como economista, a partir da experiência que referiu e que é longa de contactos com o mundo da atividade bancária e funcionamento dos mercados financeiros, posso dizer que o caso do BES/GES era um caso clássico de ligação entre um banco, que era um banco sistémico, e um grupo com múltiplas atividades fora do sistema financeiro. Ou seja, tratava-se de um conglomerado. Nesses casos, é clássico, aumenta enormemente a complexidade de acompanhamento e até de supervisão. É aliás, por isso, que de forma cada vez mais intensa, as legislações de diferentes países têm vindo a adotar dispositivos legais para condicionar, controlar, de forma cada vez mais apertada a vida interna desses conglomerados, nomeadamente as ligações entre a parte financeira bancária e a não bancária. Por outro lado, penso que é do senso comum entender que a natureza e a dimensão dos problemas que acabaram por conduzir ao colapso do grupo GES/BES, pela sua dimensão, não foram problemas súbitos. Foram certamente problemas determinados pela própria estratégia adotada pelo grupo BES/GES.
Na minha opinião, o colapso do grupo GES/BES tem um impacto negativo fortíssimo, quer sobre a economia portuguesa — neste período e no período futuro. Tem um efeito na capacidade da nossa economia produzir uma estratégia autónoma de desenvolvimento económico e financeiro. Isto aconteceu por virtude de erros, nalguns casos graves, do Grupo Espírito Santo. Mas foi extremamente negativo e foi uma pena que tivesse acontecido.
Mas interrompeu o seu raciocínio quando disse que não foram problemas súbitos. Com isso quer dizer que os problemas estavam a acumular-se há mais de uma década e o Banco de Portugal não os detetou?
Como disse, não me vou referir, nem vou utilizar qualquer tipo de informação ou conclusão que decorra do relatório [avaliação ao caso BES]. Agora, é público que o próprio Banco de Portugal sentiu necessidade de estabelecer um cordão sanitário à volta do BES, o célebre ring fencing. Exatamente para evitar que se acumulassem e se desenvolvessem o tipo de relações que acabaram por ter consequências negativas sobre o banco. Penso que a supervisão do Banco de Portugal foi acompanhando a evolução da situação do BES ao longo do tempo, tal como a dos outros bancos.
Ao dizer infelizmente o BES colapsou considera que se devia ter salvo o banco, não se devia tê-lo resolvido o banco daquela forma?
Salvar a parte não financeira do grupo não me parece possível. Na medida em que a natureza e a dimensão dos problemas no final era tal, que não vejo como é que isso poderia ter acontecido. Já no caso do banco, podemos discutir se seriam possíveis outras soluções.
E eram?
Dependia da capacidade e vontade até política. Repito, estou a dar a minha opinião pessoal, não é o presidente do conselho de auditoria do Banco de Portugal que está a falar, é o Costa Pinto economista. Era uma decisão que transcendia o Banco de Portugal. Teria que ser uma decisão de natureza política. Pondo nos pratos da balança dois tipos de valores. Por um lado, os recursos que obrigatoriamente iam ter de ser mobilizados e que, ao fim do dia, iriam sair dos bolsos dos contribuintes. E por outro, a avaliação da importância do BES no tecido produtivo português. O BES é hoje reconhecido, era um dos principais, se não o principal banco financiador de PME, com uma ligação importantíssima a milhares de empresas. Mas isso, como digo, era um julgamento que competia ao poder político.
Quando se refere a poder político, refere-se ao Governo de Passos Coelho?
Seguramente ao Governo que estava na altura, que era o governo anterior.
[No Reino Unido] Houve intervenções, que passaram por capitalização obrigatória. Não perguntaram aos bancos se eles estavam disponíveis ou não para utilizar dinheiros públicos.
O Governo de Passos Coelho podia ter decidido noutro sentido?
Há questões ligadas a isto que estão por explicar. Pelo menos para um observador como eu. A verdade é que ficaram por utilizar seis mil milhões do pacote que a troika destinou à recapitalização do sistema bancário português. Porque a troika não ignorava que o programa que nos impôs tinha dois mecanismos principais de ajustamento. A intenção da troika foi reduzir de forma rápida e substancial as necessidades de financiamento da economia portuguesa. E fez isso por duas vias: pela via do sistema bancário e pela via orçamental.
Mas o que me está a dizer é que se podia ter utilizado os seis mil milhões de euros para salvar o BES sem processo de resolução?
Em Inglaterra, várias instituições e dois dos principais bancos ingleses tiveram dificuldades de grande dimensão. Houve intervenções, que passaram por capitalização obrigatória. Não perguntaram aos bancos se eles estavam disponíveis ou não para utilizar dinheiros públicos. Não! Foi feita uma avaliação objetiva das necessidades de capital e foram metidos fundos públicos nos bancos para os recuperar, relançar e vender. É assim que no caso do Loyds praticamente todo o dinheiro já foi recuperado e o Royal Bank of Scotland está no início desse processo.
É óbvio, hoje, que houve uma subavaliação da situação em que o BES se encontrava, nomeadamente em matéria de imparidades potenciais e de necessidades de capital.
O que me esta a dizer é que o Governo de Passos Coelho e até a própria troika foram muito fracos para com a banca portuguesa, logo no início da aplicação do programa, podendo ter obrigado o BES a recorrer à linha de financiamento.
Só a corrigia na expressão “banca portuguesa”. Porque houve vários bancos sistémicos portugueses que utilizaram montantes substanciais [do financiamento da troika]. No caso do BES é óbvio, hoje, que houve uma subavaliação da situação em que o BES se encontrava, nomeadamente em matéria de imparidades potenciais e de necessidades de capital.
Mas a questão é: sabia o Governo e sabia o Banco de Portugal que o BES precisava de capital e sabendo isso não obrigou o BES a utilizar esse financiamento? O ponto é esse.
É um ponto de extrema importância e que não foi respondido até hoje. E eu não sei responder. O que é que levou a que ficassem por usar seis milhões que estavam destinados a suportar o golpe que a banca portuguesa ia sofrer com a aplicação do programa da troika e da desalavancangem da economia? É óbvio que hoje temos que reconhecer que o BES devia ter utilizado também esses recursos, como os outros bancos sistémicos portugueses. Porque é que não o fez? Não lhe sei responder. Só o Governo da altura e as autoridades de supervisão é que podem responder a isso.
Mas na altura, em 2012 ou 2013, quando os outros bancos acederam à linha de capitalização, o Banco de Portugal e o Governo, nomeadamente Ministério das Finanças, sabiam que o BES também precisava e não queria?
Podem ser feitas todas as críticas. A posteriori é fácil. Mas uma coisa penso que ninguém duvida – eu pelo menos não duvido: em todos os momentos, as autoridades de supervisão, incluindo o Banco de Portugal, tinham uma preocupação central que era a estabilidade financeira do país. Se houve capitais que não foram utilizados, foi porque foi considerado que não seriam necessários. É evidente que à luz do que aconteceu também há que reconhecer que houve aqui subavaliação. Por que é que ela se verificou? É uma questão que não lhe posso responder.
É evidente que a família Espírito Santo — e não propriamente o Ricardo — era um nome com um enorme prestígio nacional e internacional.
Uma das hipóteses é terem considerado que a estabilidade financeira era melhor garantida mantendo Ricardo Salgado à frente do BES?
Não lhe sei dizer isso. E não queria responder a isso.
Não quer responder, ou não sabe responder?
Não posso responder a isso.
Ricardo Salgado tinha muito poder e provavelmente alguns poderes ficaram com medo de o enfrentar e consideraram que ele abria os cofres internacionais mais facilmente?
Eu não faço esse julgamento. É evidente que a família Espírito Santo — e não propriamente o Ricardo — era um nome com um enorme prestígio nacional e internacional. E isso tem sempre consequências. Era uma família de banqueiros. Há quem lhe chame o último banqueiro português. Não é fácil, de facto, lidar com uma situação dessas. Admito que não fosse fácil. Mas não quero estar a fazer juízos de valor sobre isso.
Porque é que na sua perspetiva não se retirou a idoneidade a Ricardo Salgado logo em 2013? Uma reportagem recente da SIC mostrou que se defendia dentro do Banco de Portugal que existia margem legal para retirar a idoneidade de Ricardo Salgado logo em 2013. Por que é que pensa que isso não foi feito?
A única coisa que lhe chamo a atenção é que, de acordo com opinião do governador — e a opinião do governador é a opinião do Banco — o Banco de Portugal não tinha instrumentos legais que lhe permitissem atuar naquele contexto. Esta é a explicação oficial e eu ficar-me-ia.
Na altura, em 2014, existia outra alternativa que não a resolução do banco?
Tenho dificuldade em responder-lhe. Mas acho que, em 2014, a resolução acabou por se impor como a medida possível, para preservar quer a estabilidade do sistema bancário e financeiro português, quer para preservar interesses fundamentais, nomeadamente dos depositantes.
Não existia outra alternativa?
Em 2014, penso que não.
Porque é que não se divulga a avaliação que foi feita à supervisão e atuação do Banco de Portugal no BES. Na sua opinião essa não seria uma espécie de auto-avaliação que o supervisor faria a si próprio, reconhecendo os seus erros, como outros bancos centrais ou supervisores fizeram?
Esse relatório, cuja existência é publicamente conhecida, foi pedido pelo governador e só ao governador compete fazer uma avaliação de qual é o interesse para a instituição da utilização das conclusões do relatório. Não me pronuncio mais sobre isso.
Pensa que o Banco de Portugal devia fazer um mea culpa mais explícito?
Para se fazer mea culpa tem que se identificar os erros e eu não quero fazer isso. Nem posso responder pelo Banco de Portugal. Se o Banco de Portugal não faz mea culpa é porque considera que não há razões para isso. E, portanto, isso é uma opinião da instituição relativamente à qual não me compete, nem me quero pronunciar.
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“Colapso do grupo GES/BES, pela sua dimensão, não foi um problema súbito”
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