João Dias, presidente da agência que coordena todas as Lojas e Espaços de Cidadão, revela ao ECO que o Estado está a experimentar inteligência artificial para analisar reclamações dos portugueses.
Que os portugueses têm muitas queixas quanto ao atendimento que lhes é dado nos serviços públicos, já não é novidade. Mas o presidente da Agência para a Modernização Administrativa (AMA) acredita que a inteligência artificial pode contribuir para resolver esse problema. Em entrevista ao ECO, João Dias explica que esta tecnologia pode ser útil não só ao tornar os funcionários mais produtivos, mas também ao interagir diretamente com os cidadãos, dando-lhes as respostas que procuram.
De acordo com o responsável, já há vários testes em curso nesse sentido. Por exemplo, o site ePortugal já disponibiliza um avatar baseado em ChatGPT e o Estado tem experimentado também usar inteligência artificial para analisar as reclamações dos cidadãos. Outra hipótese em cima da mesa é aplicar esta tecnologia à contratação pública, para filtrar as candidaturas.
O presidente da AMA — que coordena todas as Lojas e Espaços de Cidadão do país — frisa, contudo, que esta transformação só é possível com funcionários públicos devidamente formados, esforço que garante estar a ser feito.
Esta é uma de duas partes da entrevista de João Dias ao ECO. Na outra parte (que pode ler aqui), fala sobre o novo modelo de atendimento nas Lojas de Cidadão, que arrancará já no final deste ano, e ainda sobre o novo Governo.
Numa cimeira organizada pela AMA, chegou-se à conclusão que o setor público tem dificuldade em atrair e reter talento especializado. Os salários são o maior obstáculo. Como é que o Estado empregador pode competir e atrair talento?
Há uma grande disputa no mercado por talento, especialmente em áreas muito ligadas à tecnologia. Há muita procura por parte de empresas privadas e até por empresas internacionais. Para o setor público, isto traduz-se num desafio ainda adicional, porque não temos toda a flexibilidade de recrutamento, de salários, de evolução da carreira e de medidas de meritocracia como têm as empresas privadas. Mas também temos alguns trunfos.
Quais são esses trunfos?
Há muitos jovens, felizmente, que hoje vão para o mercado de trabalho com outro paradigma. Valorizam outras dimensões que não só a variável salarial. No caso da AMA, e temos uma área muito forte de tecnologia, o que notamos é que há pessoas que querem se dedicar a uma causa e contribuir para um bem maior. Esta é uma variável que pesa muito na decisão de muitas pessoas. Por outro lado, no setor público, temos condições ideais – muitas vezes com acesso a informação e a dados muito interessantes – para os jovens que estão a concluir mestrados ou doutoramentos fazerem a aplicação prática do que estão a estudar, ou até fazer as suas teses.
A AMA foi das primeiras entidades em Portugal, e talvez a nível europeu, a pôr o Copilot – que é uma ferramenta de inteligência artificial com base em ChatGPT – ao acesso da maioria dos colaboradores para aumentar a sua produtividade.
Disse que a AMA tem uma forte componente tecnológica. A Administração Pública, como um todo, está a passar por uma transformação tecnológica. Os funcionários estão a ser devidamente preparados, em termos de formação?
De pouco adianta termos o estado da arte da tecnologia, sem… Bem, a AMA foi das primeiras entidades em Portugal, e talvez a nível europeu, a pôr o Copilot — que é uma ferramenta de inteligência artificial com base em ChatGPT — ao acesso da maioria dos colaboradores para aumentar a sua produtividade. Fizemos isso, mas tivemos um programa de formação para as pessoas tirarem o máximo proveito da tecnologia. As duas coisas andam de mãos dadas. Quanto maior é o salto tecnológico que damos, maior é a aposta e o cuidado que temos de ter com a formação. Temos tido esse cuidado e acho que existe no Estado como um todo. Acho que o Estado está cada vez mais consciente da importância da formação.
E conseguiram aumentar a produtividade com a introdução dessa ferramenta, como queriam?
É muito recente, mas o feedback oral que estamos a ter de muitos dos nossos colaboradores é absolutamente extraordinário. Na AMA, temos de seguir toda a produção legislativa europeia em matérias muito diversificadas do digital. É um esforço muito grande de leitura e de análise. Ter uma ferramenta que ajuda a sistematizar, sumarizar e fazer análises é absolutamente extraordinário. Já temos muitas áreas de atividade onde já estamos mesmo a fazer pilotos dedicados para usar essa tecnologia. Por exemplo, na área da contratação pública. Quando lançamos um concurso grande na área da tecnologia ou do outsourcing, vêm vários candidatos e todos trazem as propostas com centenas de páginas. Imagine ter uma ferramenta que faz logo um checklist do que é preciso de saber. Não substitui humano. Mas há todo um trabalho rotineiro, de muito baixo valor acrescentado, que esta tecnologia acelera e liberta o humano, para este, depois, fazer a análise qualitativa que interessa.
Em que outras áreas estão a testar a inteligência artificial?
Um outro campo de aplicação onde já estamos também a testar e a taxa de sucesso foi de 99% – agora vamos mesmo passar à produção – é a análise de feedback do cidadão, como reclamações, sugestões ou elogios. Coordenamos todas as Lojas de Cidadão do país, e também Espaço de Cidadão. As pessoas podem escrever um comentário, uma reclamação, uma sugestão, um elogio no livro ou podem fazê-lo digitalmente. Analisar todo esse feedback à mão…
Era hercúleo?
Ocupava uma série de pessoas. Tendo a inteligência artificial, não só conseguimos passar o formato físico das folhas dos livros para uma base de dados digitalizada, como conseguimos ter tudo na mesma nessa base e ter a inteligência artificial a ajudar a perceber que tipo de comentários está a ser mais feito pelas pessoas e que dificuldades estão a sentir mais. Isso permite não só aumentar a produtividade, mas também ajuda muito a reter os insights daquilo que é a voz do cidadão para nos ajudar a melhorar o serviço.
Além dos temas mais operacionais – e é importante que os processos no backoffice no Estado andem rápido e com eficiência – há toda uma nova janela de oportunidade na inteligência artificial, que é na interação direta com o cidadão.
Não é segredo que há muitas críticas por parte dos cidadãos aos serviços públicos. A inteligência artificial pode, então, ajudar a resolver esta situação?
Sim. Pelos dados que temos de todos os pilotos que estamos a fazer, acredito que pode ajudar muito. Além do nível da operação, há todo um outro campo de aplicação da inteligência artificial, em particular da inteligência artificial generativa. Já estamos a testar e também aí fomos pioneiros a nível internacional.
Que campo é esse?
Se for ao site do ePortugal, vai ver logo na primeira página um avatar, que é o assistente virtual digital. Por detrás desta figura digital está a inteligência artificial generativa, com base em ChatGPT, que treinamos com base em modelos e informação preparada por nós.
Qual é o objetivo, neste caso?
Permite uma interação como se de um humano se tratasse. No modelo antigo, tinha de ligar para alguém ou tinha que andar a navegar no site. O que isto agora faz é que não tem que navegar, ou seja, pergunta o que quer saber e ele escreve. Fizemos um piloto em maio no caso do serviço da Chave Móvel Digital e correu tão bem que já estamos a trabalhar para alargar as temáticas e os serviços que este assistente virtual cobre. Isto para dizer que, além dos temas mais operacionais – e é importante que os processos no backoffice no Estado andem rápido e com eficiência – há toda uma nova janela de oportunidade, que é na interação direta com o cidadão. No modelo do atendimento futuro, vemos que o assistente virtual pode ser este primeiro contacto informacional.
Prevê, portanto, uma redução do número de trabalhadores?
Não. Infelizmente, não adianta esconder, hoje temos filas nas lojas e as pessoas esperam para ser atendidas nos contact centers. Muitas vezes as pessoas estão numa fila para terem uma informação ou um encaminhamento. Se lhes dermos a oportunidade delas falarem com um assistente virtual, e a pessoa conseguir a resposta que precisa, acho que estamos a prestar um bom serviço. A pessoa deixa de estar na fila de espera, tem a solução que precisa e, estando menos pessoas em espera, os atendedores passam a atender aquilo que são os temas mais complexos. Se calhar até não estão tão pressionados por saberem que não há uma fila enorme, e podem atender a pessoa com quem estão com mais tempo, calma e profundidade. No fundo, é uma parceria entre tecnologia para um primeiro nível e, depois, a parte humana.
Subjacentes a estas transformações, estão dados. O Estado está suficientemente capacitado ao nível da cibersegurança?
Temos de distinguir dois tipos de dados. Há dados que são pessoais e que estão ao abrigo do chamado Regime Geral de Proteção de Dados. Isso aí é quase uma coisa sagrada. É uma premissa inquestionável que temos de ser – e somos – absolutamente rigorosos na preservação desses dados. Depois há uma outra camada de dados. São dados operacionais, que são muito úteis para podermos gerir os serviços. É informação que naturalmente também queremos recolher.
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“Não adianta esconder, hoje temos filas”. Inteligência artificial pode “ajudar muito” a melhorar os serviços públicos
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