Miguel de Castro Neto, diretor da Nova IMS, considera que a prestação de serviços públicos está a colapsar. Solução passa por "fazer a transformação digital de toda a nossa administração".
“Os direitos das pessoas já não estão a ser satisfeitos à data de hoje e vão colapsar”, antecipa Miguel de Castro Neto, dean da Nova Information Management School. Para o antigo secretário de Estado do Ordenamento do Território e Conservação da Natureza, não é possível manter a atividade da Administração Pública suportada em processos humanos, porque “não há recursos suficientes”. A solução passa pela transformação digital de toda a administração.
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Miguel de Castro Neto é também especialista em cidades inteligentes e foi responsável pela criação do NOVA Cidade – Urban Analytics Lab, que dirige. Em entrevista ao podcast À Prova de Futuro, uma iniciativa do ECO com o apoio do Meo Empresas, afirma que o país está este ano “num momento de verdadeira transformação” com a implementação da estratégia nacional dos territórios inteligentes. “Estão neste momento 297 municípios a trabalhar ativamente para apresentar planos de ação para concretizarem investimentos em plataformas de gestão urbana”, assinala.
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Vamos começar por colocar a fasquia bem alta. Num cenário assim a atirar para o utópico, o que é que seria uma verdadeira smart city?
Quando nós falamos em cidades inteligentes, há também uma discussão sobre um futuro distópico, que leva a que muitas vezes se olhe com desconfiança para as cidades inteligentes.
Cidades hipercontroladas.
Exatamente, do controle das câmaras, da recolha de informação, da identificação e fiscalização do comportamento das pessoas.
A privacidade é um tema.
A privacidade é um tema e o controle de tudo o que fazemos e, portanto, não é essa a visão. Não é essa a forma como nós na Europa encaramos o futuro. Vivemos num ambiente em que a regulação já existe e, portanto, a nossa privacidade está por lei protegida e esse futuro não vai acontecer na Europa. Não pode acontecer por via legal e, de facto, a utopia é possível de ser sonhada no contexto em que nós vivemos no espaço europeu.
O que nós tentamos é garantir que, para o cidadão, não há qualquer fricção, não há qualquer atrito no seu uso fruto da cidade.
O que pode então ser esta cidade inteligente ideal?
A forma é especialmente interessante, pelo menos para mim, que vivo num mundo em que nós tentamos contribuir diariamente a partir do trabalho que desenvolvemos na Universidade Nova, na Nova Information Management School, no contexto da construção de cidades e territórios inteligentes, que é tornar as cidades invisíveis para as pessoas. O que nós tentamos é garantir que, para o cidadão, não há qualquer fricção, não há qualquer atrito no seu uso fruto da cidade.
Isso em termos práticos significa o quê?
Significa que, se nós conseguirmos gerir serviços e infraestruturas de forma eficiente e eficaz, nós conseguimos não apenas garantir que a cidade funciona, mas, tirando partido da ciência dos dados, da inteligência artificial, antecipar necessidades, antecipar o que vão ser, digamos assim, os problemas e garantir que não há lixo na rua, que o autocarro está na paragem no momento e no local em que é necessário, que os semáforos mudam de cor em função da densidade do tráfego naquele momento e naquele local, e assim sucessivamente.
O cidadão, quando passeia pela cidade, não há engarrafamentos, a cidade está limpa, o autocarro ou o metro está na paragem à hora que deverá estar, não há um excesso de pessoas nos transportes públicos, porque a oferta de transporte público se ajusta à procura de transporte público.
O cidadão, quando passeia pela cidade, não há engarrafamentos, a cidade está limpa, o autocarro ou o metro está na paragem à hora que deverá estar, não há um excesso de pessoas nos transportes públicos, porque a oferta de transporte público se ajusta à procura de transporte público, e assim sucessivamente, a qualidade do ar e o ruído está a ser monitorizado.
Todas estas variáveis entram na equação. Se há um evento na cidade, a cidade prepara-se para esse evento e, portanto, a higiene urbana ajusta-se ao evento e responde a esse evento, a iluminação. Sem fricção. Isto é a utopia que nós estamos a construir hoje. Eu acho que, por vezes, as pessoas não têm noção do que é que já está a acontecer.
Daí a invisibilidade.
A invisibilidade traduz-se numa dificuldade de perceção. Por exemplo, à data de hoje, os semáforos de Lisboa já estão neste processo de transformação. Muitos deles já têm hoje um algoritmo de inteligência artificial que está a aprender em contínuo com o trânsito da cidade, porque tem sensores e está-se a ajustar, está a aprender em contínuo, para eu não estar parado num semáforo, a emitir gases com efeito de estufa, se não houver trânsito em sentido contrário.
Mas esta é a primeira etapa. A segunda etapa é à medida que eu vou melhorando a gestão operacional da cidade, vou construindo uma base de conhecimento que me vai permitir começar a ganhar a capacidade de não apenas gerir a minha operação, mas criar a capacidade de usar este histórico para planear o futuro. As minhas decisões de planeamento da cidade, de como é que eu vou fazer o planeamento urbanístico, podem ser impactadas com este conhecimento. Onde colocar uma estação da rede gira, onde colocar um espaço verde, como combater as ilhas de calor, como adotar medidas que possam permitir reduzir o ruído ou melhorar a qualidade do ar.

Mas a sensação de quem vive na cidade é de que isto ainda se faz pouco, mesmo esse planeamento.
É um processo muito lento, porque a cidade é um organismo vivo e Lisboa é uma cidade muito grande. Mas a discussão que nós temos à volta de Lisboa não se aplica em 307 municípios. Temos municípios que são bastante mais pequenos e em que as mudanças são rapidíssimas. Eu vou para o Funchal e é uma história espetacular. Eu vou para Braga e é uma história espetacular. Vou para Guimarães e é uma história espetacular. Viseu, Fundão…
Algum projeto que gostasse de destacar?
São projetos integrados. A tecnologia, a transformação digital, são instrumentais. O que na realidade faz a diferença é uma liderança forte. É haver um presidente de câmara ou um vereador que ficou empoderado com a estratégia da cidade inteligente, que tem um plano, que tem uma linha que quer seguir e que tem ali depois várias iniciativas que vão conduzir a um determinado objetivo.
Já passámos a fase em que havia exceções. Nós, em 2025, estamos num momento de verdadeira transformação, porque estamos no ano da implementação da estratégia nacional dos territórios inteligentes.
Mas isso ainda é a exceção ou começa a ser a norma?
Já passámos a fase em que havia exceções. Nós, em 2025, estamos num momento de verdadeira transformação, porque estamos no ano da implementação da estratégia nacional dos territórios inteligentes, que, neste momento, está numa fase de aceleração brutal. Houve o lançamento de um aviso em que convidaram os municípios a associarem-se para apresentarem candidaturas e investirem nas plataformas de gestão urbana, que são sistemas tecnológicos que permitem gerir os diferentes serviços da cidade usando tecnologia.
Dos 308 municípios, 297 municípios viram candidaturas que apresentaram serem aprovadas e terem financiamento. Portanto, dos 308 municípios, estão neste momento 297 municípios a trabalhar ativamente para apresentar planos de ação para concretizarem investimentos em plataformas de gestão urbana, que estão associados em consórcios de 57 associações, para alavancarem esta realidade.
Pode-se dizer então que este conceito das cidades inteligentes está generalizado em Portugal?
Está generalizado e está a avançar no terreno, depois de um momento em que tínhamos um número já bastante significativo de municípios a avançar.

Portugal é muito mais do que Lisboa. Ainda assim, Lisboa é a única que é avaliada num ranking que é elaborado anualmente pela escola de negócios suíça IMD. Lisboa chegou a estar na 75.ª posição, em 2020, e entretanto desceu para a 115.ª. Caiu 40 posições. Não sei se quer ir às causas deste trambolhão, mas há um fator que é muito evidente que é Lisboa ter uma pontuação mesmo muito baixa no critério do acesso à habitação. Esse é o principal problema das nossas cidades?
É inquestionável, de facto. Depois é discutível como é que esta questão tem este impacto numa avaliação que tem a ver com cidades inteligentes. Do ponto de vista da cidade inteligente, quando nós falamos em habitação estamos a assistir a algumas evoluções como ter edifícios mais inteligentes do ponto de vista da eficiência energética, adotando quer técnicas passivas quer adotando energias renováveis, etc. Ou, por exemplo, com o chamado co-living, ter partes do edifício com serviços partilhados, ou até soluções ainda mais futurísticas que é o espaço da habitação transformar-se dinamicamente ao longo do dia. Outra coisa é o acesso à habitação. E o acesso à habitação, à data de hoje, é um problema em inúmeras cidades. E não é um problema de Lisboa, é um problema da área metropolitana.
E é um problema europeu.
É um problema europeu e em Portugal esse problema não é do presidente da câmara. Quer dizer, o presidente da câmara não tem capacidade para resolver o problema da habitação em Lisboa. É um problema nacional, é um problema de simplificação do licenciamento urbanístico que, mais uma vez, não é um problema do presidente da câmara.
Eu julgo que muitas vezes não há uma noção clara de que nós, na realidade, estamos a assistir paulatinamente ao colapso da prestação do serviço público nos vários setores.
Quando falamos em cidades inteligentes temos de abordar também a relação dos cidadãos com as entidades e serviços públicos. Tem-se falado muito na modernização e na reforma do Estado. Também é urgente fazer essa modernização e simplificação das autarquias?
Sem dúvida. Eu acho que isso é transversal, ou seja, não distingo entre administração pública central e local. Mas o desafio é até maior nas autarquias, porque estamos a falar de uma realidade muito mais pulverizada. A maturidade digital, à medida que nós vamos descendo da administração central para a administração local e depois à junta de freguesia, porque ela está ainda com uma maior capilaridade no terreno, é mais complexa. Nós temos assistido – e eu acho que deve ser aprofundado –, ao processo de descentralização e de delegação de competências nas autarquias locais, que deve ser acompanhada do orçamento necessário para poderem, efetivamente, executar essas competências.
Temos o desafio que foi lançado pelo Governo, acompanhado da criação do Ministério da Reforma do Estado, com dois braços, simplificação e digitalização, que eu acho que era crítico. Eu julgo que muitas vezes não há uma noção clara de que nós, na realidade, estamos a assistir, paulatinamente, ao colapso da prestação do serviço público nos vários setores. O que está a acontecer na justiça, na educação, na saúde, é a incapacidade da prestação do serviço. Não é uma questão de governação destes setores, é mesmo não haver meios para responder à procura.
Mas a descentralização facilitaria esse processo?
A descentralização vai ter o mesmo problema, porque nós não temos sido capazes de fazer a simplificação e a digitalização. Isto implica fazer reengenharia de processos, implica fazer a transformação digital de toda a nossa administração. Não é possível manter a nossa administração pública a suportar a sua atividade em processos humanos. Não há recursos suficientes para prestar os serviços com a qualidade, com a eficiência e com a eficácia que nós exigimos hoje, todos, como cidadãos, Porque o custo necessário para fazer isso exigia duas, três, quatro vezes mais pessoas do que nós temos hoje na administração.
Em paralelo com isto, nós não podemos continuar a remunerar as pessoas que estão na administração como as remuneramos hoje. Temos que aumentar a remuneração média dessas pessoas, até porque precisamos de aumentar a sua qualificação. Só com uma reforma estrutural da administração pública é que isso é possível de ser feito. Com a digitalização, com a simplificação, com gestão de informação, ciência de dados e inteligência artificial. E nós vivemos um momento de oportunidade único, porque é um momento em que a configuração política que temos hoje pode, eventualmente, conseguir fazer isso sem termos um conflito, digamos assim, na rua, ideológico.
Por causa da maioria alargada que a direita tem no Parlamento.
Exatamente. Porque os instalados não são capazes de ver que temos que respeitar os direitos das pessoas e as pessoas têm direito aos serviços públicos. Se nós não fizermos nada, estamos a colocar em causa os direitos das pessoas, porque os direitos das pessoas já não estão a ser satisfeitos à data de hoje e vão colapsar.
Não há ministro da Saúde que resolva, não é o ministro, é o sistema. Enquanto nós não fizemos a reforma estrutural, não tem solução.
Chegamos a uma altura em que é absolutamente urgente fazer isso.
É urgente. Nós podemos mudar de ministra da Saúde de seis em seis meses… Não há ministro da Saúde que resolva, não é o ministro, é o sistema. Enquanto nós não fizermos a reforma estrutural, não tem solução.
Há tantos anos que se fala nisso, acho que é desta vez que vai acontecer?
Eu tenho esperança porque agora há aqui um quadro que cria essa oportunidade. E esta oportunidade, neste momento, pode acontecer na administração central e depois, digamos assim, por capilaridade, ir também à administração local. A administração local é mais simples, mas precisa também desta transformação, porque também não tem os meios.
É preciso uma guerra à burocracia também na administração local?
Sim. Porque é que é tão importante? Porque a administração local não tem capacidade sozinha. Tem que haver aqui economias de escala. Nós temos que ter modelos que possam ser desenhados à escala central, em conjunto com a administração local, tirando partido de uma reforma que foi feita em 2015, que foi a criação das comunidades intermunicipais e das áreas metropolitanas, para, através desta camada intermédia, termos a capacidade de trabalhar com as as câmaras municipais.
No âmbito desta reforma do Estado temos também de conseguir criar as condições para ter recursos humanos qualificados para fazer isto acontecer. Não basta nós criarmos o quadro da reforma do Estado; temos que ter depois os recursos humanos que consigam executar a reforma no terreno. E para isso falta aqui uma coisa que é termos um quadro de reconhecimento do mérito dentro da administração.

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