“No mercado de arrendamento em Portugal junta-se o inútil ao desagradável”

O economista Luís Cabral afirma que em Portugal há muita vezes "mais politiquice do que políticas", apelando a que PS e PSD façam um pacto para resolver a crise do arrendamento.

Afinal, o que está a falhar no mercado de arrendamento português? E é o alojamento local o grande culpado? Luís Cabral, economista e professor da Universidade de Nova Iorque acredita que é a instabilidade legislativa o principal problema. Em entrevista ao ECO, o diretor académico do novo instituto de políticas públicas da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Nova SBE) defende, assim, um pacto entre PS e PSD para que haja estabilidade na próxima década e se resolva, deste modo, a crise no arrendamento.

Caso contrário, no cenário atual, nem inquilinos nem senhorios estão a ver as suas necessidades respondidas, avisa. Nem o mercado tem a liquidez desejada, nem se estão a proteger as pessoas de ações de despejo iníquas, acrescenta.

A habitação será, de resto, um dos primeiros temas que o novo instituto — que será apresentado esta sexta-feira — vai abordar. Outro será o problema da produtividade, tema que Luís Cabral também aborda nesta entrevista.

Já na segunda parte desta conversa com o ECO (que pode ler aqui), o economista debruça-se sobre o mercado de trabalho português, o IRS e o Orçamento do Estado para 2025, avisando que um chumbo seria negativo para o país.

Compreender bem as políticas públicas, desde o momento do seu desenho até ao momento da sua aplicação, é uma tarefa importante, e que não é tão feita quanto deveria ser.

Vai ser diretor académico do novo instituto de políticas públicas da Nova SBE. Comecemos por aí. O que podemos esperar deste novo instituto? Qual a sua relevância no momento atual?

É relevante, porque as políticas públicas são um instrumento muito importante para resolver muitos problemas do país, da Europa e do mundo. Por conseguinte, compreender bem as políticas públicas, desde o momento do seu desenho até ao momento da sua aplicação, é uma tarefa importante, e que não é tão feita quanto deveria ser.

E que avaliação faz da qualidade das políticas públicas implementadas em Portugal, neste momento?

Gostaria que me fizesse essa pergunta dentro de um ano. Nessa altura, terei uma ideia melhor, porque um dos objetivos que temos é de fazer um levantamento do que já existe. Outro dos objetivos que temos é o de encorajar a investigação sobre políticas públicas que tenha impacto. Na academia, medimos muitas vezes impacto de uma forma muito restrita, nomeadamente se somos citados por outros investigadores. É uma ambição muito pequena e, quando se trata de políticas públicas, é muito muito pequena, porque o valor da investigação nesta área é o de que venham a ter algum efeito na vida real.

Anunciaram este instituto como um centro que vai conectar o conhecimento académico à experiência daqueles que estão no terreno, para que todos possam ter voz. Sente que as políticas públicas em Portugal têm esquecido a voz da academia e de quem está no terreno?

Não vivo em Portugal há décadas e, portanto, não tenho o conhecimento tão profundo como deveria da sociedade portuguesa. Por isso, dos primeiros passos que gostaria de dar é justamente ter um melhor conhecimento do que existe. Já comecei essa tarefa e já tive algumas surpresas positivas. Na Administração Pública portuguesa, já existem várias instituições nesse sentido, mas não existe uma ligação tão estreita como deveria existir entre a academia e as pessoas que estão no terreno a trabalhar em políticas públicas.

Luís Cabral, diretor académico do instituto de políticas públicas da Nova SBE, em entrevista ao ECO. Luís Ribeiro/ECO

Essa falha pode decorrer do facto de a academia estar fechada sobre si mesma?

Em grande parte, o sistema de incentivos criado pela estrutura académica vai no sentido de enfatizar o impacto interno, e não o impacto externo. A política pública perde com isso em dois sentidos. Existem ideias muito boas na academia que não estão a ter tanta saída como poderiam e deveriam ter. Por outro lado, as pessoas que estão no terreno têm um conhecimento de causa, nomeadamente em relação às restrições criadas pelo contexto político, social ou legal, que os académicos não têm em consideração como deveriam ter. A ligação da academia aos responsáveis pela política económica, desde o nível local ao nível internacional, tem muito a ganhar com o diálogo. Já tem sido feita alguma coisa nesse sentido, mas penso que se poderá fazer mais.

Vamos, então, a assuntos concretos. Um dos primeiros temas que o novo instituto quer abordar é a produtividade. Faço-lhe a pergunta para um milhão de euros. Como se resolvem os baixos níveis de produtividade em Portugal?

Um dos nossos objetivos é justamente conseguir dar uma melhor resposta a essa pergunta.

Nas condições atuais, que resposta é que dá?

Um dos grandes puzzles da economia portuguesa é que tivemos um choque de capital humano brutal. Um choque positivo, que é a educação. Na história de Portugal, nunca houve um salto tão forte como nos últimos 30 anos. Temos uma das populações mais bem educadas. Mas isso não se tem refletido na produtividade. Aliás, chegamos a esta situação estranha, que é um dos setores que mais contribui para o PIB, que é o turismo, cria postos de trabalho de baixa produtividade e não consegue recrutar os portugueses nos quais foram investidos milhões e milhões para melhorar os níveis de educação. Temos esta situação que esperamos que seja temporária. Temos capital humano, mas não temos as organizações e as empresas que combinam com esse capital humano. Há um desencontro.

Seria importante haver um acordo multinacional para evitar os malefícios da concorrência fiscal, nomeadamente no que respeita à fuga de capital.

O enquadramento fiscal português pode ser um dos culpados por não haver empresas com outros perfis?

Há muitos fatores. O imposto sobre as empresas existe em muitos países. Um dos bons movimentos que tem sido feito pela comunidade internacional é o de elevar a taxa mínima de IRC, porque das piores coisas que pode haver, no contexto de política fiscal, é a concorrência fiscal entre países. É uma concorrência muito desleal para os trabalhadores, porque a mobilidade do capital é muito superior à mobilidade laboral. Se quisermos diminuir a tributação laboral, vamos ter de aumentar outros tipos de tributação. Penso que seria importante haver um acordo multinacional para evitar os malefícios da concorrência fiscal, nomeadamente no que respeita à fuga de capital.

Já vamos à tributação sobre os rendimentos do trabalho. Insisto no IRC. Este tem sido um dos pontos quentes da negociação do Orçamento do Estado para o próximo ano. Faz sentido baixar o IRC como o Governo quer?

Teria de ter um melhor conhecimento de causa para responder essa pergunta. O que digo é que este tipo de movimento de que falo só funciona se for coordenado com países. A última coisa que quero é subir ou manter uma taxa de IRC elevada e, depois, ver as minhas empresas todas a fugir. A resposta à sua pergunta varia muito de setor para setor.

De que modo?

Por exemplo, a habitação é um dos setores em que as políticas públicas deverão ter algum efeito. Neste momento, é principalmente um problema da oferta, não é um problema de procura. A tributação também terá o seu efeito, mas será relativamente secundário em relação a todas as questões de licenciamento, que são muito difíceis para a habitação residencial, nomeadamente em Portugal.

A habitação também é um dos temas que o novo instituto vai abordar nesta primeira fase. Identificou o problema no licenciamento. O Governo do PS e o Governo do PSD apresentaram medidas para resolver a crise na habitação. Foram ao lado?

Não tenho conhecimento em pormenor, mas parece-me que seria importante atacar esse problema, e há também o problema de incentivos à oferta. Outro problema que gostaria de estudar melhor é o facto de haver tantos imóveis não utilizados e que tipo de incentivos se poderá dar. Há também todo o problema de estrangeiros e cidadãos portugueses, que também tem de ser estudado. Sem ter conhecimento de pormenor dos planos que foram postos em prática até agora, há vários aspetos que poderiam ser melhorados. Houve algum movimento contra o alojamento local. Acho que isso provavelmente é uma má ideia.

Porquê?

Faz parte de um setor importante, que é o turismo. É estar a culpar a procura por um problema de oferta principalmente. Por outro lado, acho que também se insere num problema mais geral, que é o tratamento dos estrangeiros, como nómadas digitais e reformados, que as pessoas começam a ver — não só em Portugal, como noutros países europeus — como inimigo número um.

Erradamente?

Erradamente. Um dos aspetos positivos de Portugal é que é um país que as pessoas gostam. Não é só o clima, é a segurança e o sistema de saúde. Não é que a saúde dos Estados Unidos seja melhor que a portuguesa, mas custa dez vezes mais. Por vários motivos, Portugal é um país que tem muito a oferecer e não há motivo nenhum para que não possamos fazer de uma forma que seja justa para com os portugueses. O valor que se pode criar é tão grande, que há suficiente para distribuir por todos. Isso não está a ser feito neste momento. As pessoas só veem, e com alguma razão, o custo, que é o de não conseguirem comprar casa, porque os estrangeiros compram tudo.

Uma das grandes vantagens do mercado de arrendamento é permitir uma maior mobilidade geográfica. Por outro lado, queremos proteger pessoas de ações de despejo que sejam iníquas. Desses dois objetivos, neste momento, não estamos a conseguir nenhum.

Portanto, não faz sentido controlar a entrada desses compradores no mercado?

Faz sentido controlar de uma forma em que eles compensem os cidadãos portugueses de forma a que todos ganhem. Isso não é impossível. Tem que ver, por exemplo, com uma reforma do Imposto Municipal sobre Imóveis.

Um agravamento do IMI?

Provavelmente, ou uma estruturação de forma a que a população estrangeira que queira estar em Portugal contribua.

Chegou a dizer anteriormente que defendia um pacto entre o PS e o PSD nesta questão da habitação. Ainda é dessa opinião?

Exprimi essa opinião especificamente em relação ao mercado de arrendamento, e mantenho a sua opinião completamente. Penso que na situação do mercado de arrendamento em Portugal junta-se o inútil ao desagradável. Nem se beneficia uma parte, nem a outra. Uma das grandes vantagens do mercado de arrendamento é permitir uma maior mobilidade geográfica, e isso é um fator importante para o desenvolvimento económico do país. Por outro lado, queremos proteger pessoas de ações de despejo que sejam iníquas. Desses dois objetivos, neste momento, não estamos a conseguir nenhum.

Luís Cabral, diretor académico do instituto de políticas públicas da Nova SBE, em entrevista ao ECO. Luís Ribeiro/ECO

O que está a falhar?

Temos tido uma instabilidade legislativa enorme e, quando temos instabilidade legislativa, chegamos àquilo que chamava de juntar o útil ao desagradável.

Dizia há pouco que é má ideia olhar para o alojamento local como um vilão. Mas o alojamento local não é um dos fatores para o mercado de arrendamento português não funcionar como devia?

O principal problema do mercado de arrendamento português é a instabilidade legislativa. Se eu não sei quais são as regras durante os próximos anos, tenho uma relutância muito grande em fazer um contrato de arrendamento de mais um ano.

Daí o pacto entre partidos.

As pessoas concordam muito mais entre si do que discordam. Muitas vezes, temos mais politiquice do que políticas em Portugal. As pessoas discordam mais na ideologia do que nas ideias. Ninguém quer ações de despejo que estraguem a vida de uma pessoa. Todos querem que exista mercado de arrendamento que seja líquido e que permita às pessoas mudar de um sítio para o outro sem grande dificuldade. Não há nenhuma discordância nesse sentido. Seria um enorme progresso se conseguíssemos chegar ao ponto de concordar naquilo que discordamos.

Portanto, acredita que seria possível um acordo entre PS e PSD, apesar das diferenças.

A primeira conclusão a que chegaríamos, entre PS e PSD, é que [aquilo em que discordam] é muito menos do que parece à primeira vista. Tendo chegado a esse acordo sobre o desacordo, podíamos fazer um pacto de longo prazo a dizer que, nos próximos dez ou 20 anos, vamos ter balizas no mercado de arrendamento, isto é, não é possível fazer legislação que mude mais do que isto, para garantir o mínimo de previsibilidade legislativa, que é um dos fatores mais importantes para a atividade económica. A incerteza legal é das piores coisas que existem.

Nos Estados Unidos, ser um empreendedor em série é um símbolo de honra. A mentalidade europeia ainda é muito diferente. Há um estigma social em relação à falência.

Vive nos Estados Unidos há várias décadas. O que é que os Estados Unidos têm que a Europa não tem que explique o sucesso empresarial do outro lado do oceano?

Não existe um motivo único. Primeiro, a dimensão de mercado. A Europa como um todo é do tamanho dos Estados Unidos, mas não é um mercado único.

Não é unificado.

Não tem a unificação que existe nos Estados Unidos. Isso é muito importante. Muitas vezes é um zero mais. É uma diferença brutal. Em segundo lugar, o aspeto cultural. Estou no advisory board de um programa de startups em Nova Iorque. Quando as pessoas se apresentam, vemos os mentores dizerem que, das suas cinco empresas, quatro faliram. Dizem com orgulho. Ser um empreendedor em série é um símbolo de honra. A mentalidade europeia ainda é muito diferente. Há um estigma social em relação à falência. E também o facto de existir um mercado financeiro mais líquido.

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