A erosão do capital público em Portugal

Se o processo de ajustamento orçamental era inevitável, as consequências de determinadas opções políticas terão efeitos que poderão sentir-se por gerações.

Desde a crise de dívida soberana da zona euro que Portugal se encontra num processo de ajustamento orçamental, tendo os sucessivos governos levado a cabo esforços para reduzir o rácio de dívida pública e PIB. O país tem registado saldos estruturais primários positivos desde 2012, isto quer dizer que as receitas do Estado têm excedido as suas despesas, excluindo pagamento de juros da dívida (“primário”) e ajustado para o ciclo económico, e o facto de que as despesas e receitas variam naturalmente dependendo da expansão ou recessão (“estrutural) da economia.

Este ajustamento reflecte uma combinação de:

  • (i) restrições à capacidade de manobra de sucessivos Governos (por exemplo, a situação e capacidade de financiamento do Estado junto dos mercados);
  • (ii) escolhas políticas por parte dos Governos. O ajustamento pode também ser feito pelo lado da receita ou pelo lado da despesa. Como mostra a Figura 1, que apresenta séries temporais para a receita e despesa totais do Estado em % do PIB entre 1995 e 2019, o ajustamento foi feito essencialmente pelo lado da despesa.

Um exercício interessante é, portanto, olhar para os diferentes componentes dessa despesa, para tentar perceber onde é que ocorreu esse ajustamento. A Figura 2 apresenta séries temporais para os três principais componentes da despesa pública (de um ponto de vista económico, não necessariamente funcional): “consumo” do Estado (gastos correntes), investimento do Estado (formação de capital), e juros sobre a despesa, uma vez mais todos em % do PIB.

A Figura 2 mostra que houve, efectivamente, algum ajustamento em termos dos gastos correntes (que em % do PIB se encontravam mais ou menos aos níveis de 1999 no final de 2019), mas que o grosso deste ajustamento adveio da enorme queda do investimento público desde 2010, que tem sido inferior aos juros pagos pela dívida desde esse ano (o comportamento da despesa com juros reflecte um grande amento do stock de dívida durante a crise soberana e a posterior melhoria da capacidade de financiamento do Estado).

O investimento público é um fluxo que acrescenta ao stock de capital público. Este stock de capital consiste primariamente da infraestrutura física e económica detida pelo Estado. Os exemplos mais óbvios são infraestrutura de transportes, como aeroportos e autoestradas, mas inclui também escolas, universidades, hospitais, tribunais, instalações militares, etc.

O stock de capital público é um componente importante da “função produção” da economia, aumentando a sua produtividade. Este impacto na produtividade pode ser directo: Precisamos de portos, aeroportos e estradas para conseguir exportar bens para o estrangeiro, por exemplo). Muitas vezes é, contudo, indirecto: Para cumprir os seus objectivos de forma eficaz, o sistema público de ensino e o Serviço Nacional de Saúde necessitam de escolas e hospitais bem mantidos e equipados.

Baixo investimento público significa, portanto, que os incrementos a esse stock de capital público têm sido relativamente baixos desde 2011. Isso é um problema pois esse stock de capital deprecia-se ao longo do tempo: O capital estraga-se com a sua utilização ou torna-se progressivamente obsoleto (deixando portanto de contribuir para a produtividade do resto da sociedade). O stock de capital público de um país é igual ao stock existente, mais investimento, menos depreciação. Para garantir que o stock se mantém, o investimento tem portanto de, pelo menos, exceder a taxa de depreciação.

Dado que é um conceito relativamente abstracto, o stock de capital público não é fácil de medir, mas há quem o tenha tentado fazer: O FMI mantém uma base de dados que estima stocks de capital público para vários países até 2017 [1]. Utilizando dados de investimento público da AMECO (base de dados da Comissão Europeia), expandi a serie de capital público ate 2020 [2]. Esta serie, expandida, encontra-se na Figura 3.

Desta figura constata-se que o capital público cresceu sempre entre 1995 e 2012 (na realidade, de acordo com as estimativas do FMI, o capital público em Portugal cresceu sempre desde 1960, o primeiro ano da base de dados). Por outro lado, o capital público nunca cresceu desde 2012: Como o investimento público tem sido sempre inferior à depreciação, o capital público em 2020 encontrava-se aos mesmos níveis de 2004.

Estes factos tornam-se mais gritantes quando olhamos para o stock de capital público em % do PIB (com todas as qualificações inerentes a estarmos a dividir um stock por um fluxo). A Figura 4 apresenta movimentos ainda mais drásticos nos últimos anos, em consequência do stock estar a decair ao mesmo tempo que a economia cresce. O aumento no último ano da amostra não reflecte um aumento do stock de capital (ver Figura 3), mas uma queda ainda maior do PIB.

Muitos dos desafios económicos e sociais enfrentados pelo Governo e pelos portugueses durante a actual emergência de saúde pública prendem-se com a incapacidade de infraestruturas públicas essenciais de responder a alterações súbitas de prioridades e de comportamentos. Exemplos incluem a inexistência de soluções tecnológicas que permitissem que as escolas públicas continuassem a funcionar de forma sustentada em confinamento ou problemas de gestão de recursos no sistema de saúde. Parte desta incapacidade de resposta é uma manifestação da erosão do stock de capital público que se tem verificado em Portugal na última década.

A queda do investimento público é uma tendência generalizada nas economias da zona euro, mas mesmo neste contexto Portugal tem liderado as quedas. Em 2020, o investimento púbico total em % do PIB na União Europeia foi de 3.4% vs. 2.5% em Portugal (mais baixo da UE a seguir ao Chipre, com 1.9%).

Como expliquei antes, o investimento é um fluxo que contribui para um stock: Um ano de baixo investimento implica uma perda de stock potencial cujos efeitos na produtividade serão sentidos durante cerca de duas décadas. Uma década de baixo investimento implica, portanto, uma perda de stock potencial cujos efeitos poderão ser sentidos durante mais de um século.

Se, por um lado, o processo de ajustamento orçamental era inevitável, as consequências de determinadas opções políticas tomadas no contexto desse processo terão efeitos que poderão sentir-se por gerações.

Notas:
Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
As opiniões aqui expressas vinculam somente o autor e não refletem as posições do Federal Reserve Bank of St. Louis, ou do Federal Reserve System.

[1] https://www.imf.org/external/np/fad/publicinvestment/pdf/csupdate_aug19.pdf

[2] Capital público é calculado como capital do período anterior mais investimento menos depreciação. Não é óbvio como estimar a taxa de depreciação do capital público. A partir dos dados de capital e investimento do FMI, é possível inverter esta fórmula para calcular a taxa de depreciação implícita. Entre 2017 e 2020, utilizei a taxa de depreciação implícita para 2016, que foi de 4.9% ao ano.

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