Depois do ‘caso das gémeas’ foi aprovado um requerimento parlamentar para clarificar o segredo de justiça. Advogados não estão certos desta necessidade e apontam soluções mais “viáveis”.
- Este artigo integra a oitava edição do ECO magazine, que pode comprar aqui.
Uma comissão parlamentar de inquérito aprovou um requerimento do PSD para clarificar o conceito de segredo de justiça. Este pedido surgiu no seguimento no caso das gémeas luso-brasileiras, depois de Nuno Rebelo de Sousa ter recusado prestar esclarecimentos. Por ter alertado que iria exercer o seu direito ao silêncio antes da audição, o arguido no processo fez “disparar” o alarme: afinal o que é o segredo de justiça? Será necessário a sua clarificação?
Rui Costa Pereira, associado coordenador da área de Penal e Contraordenacional da MFA Legal, é perentório: nada carece de “qualquer espécie” de clarificação, face ao que está consagrado no regime dos inquéritos parlamentares e na lei processual penal. “Todas as dúvidas que a comissão tem invocado seriam talvez evitadas se se tivesse acolhido aquela que terá sido a sugestão do presidente da Assembleia da República, a suspensão dos trabalhos da comissão até à conclusão da investigação criminal em curso, conforme, aliás, o regime dos inquéritos parlamentares prevê como possível”, aponta o advogado.
Para Rui Costa Pereira, ao invés de ponderar alterações legislativas, talvez se justificasse mais fazer com que essa suspensão fosse obrigatória, ao invés de uma mera possibilidade. “Com o inquérito criminal encerrado, já não haveria qualquer segredo de justiça a invocar, poderíamos até já nem ter arguidos constituídos que pudessem invocar direitos processuais, nomeadamente ao silêncio e toda a recolha de informação seria, com certeza, muito mais facilitada”, acrescenta.
O segredo de justiça tem como finalidade “preservar a investigação”, especialmente na fase de inquérito, e “acautelar a defesa de direitos fundamentais dos sujeitos processuais”, nomeadamente o da presunção de inocência, explica Ana Rodrigues Carvalho, associada da SPCB Legal. Logo, quem é chamado a prestar declarações perante comissões parlamentares de inquérito pode invocar o segredo de justiça para não depor sobre factos sob investigação em sede de inquérito, considera a advogada.
Ainda assim é necessário definir certos limites, “estabelecendo-se um equilíbrio entre o segredo, enquanto mecanismo de proteção dos direitos fundamentais, e a publicidade, enquanto corolário da transparência que norteia o trabalho das Comissões”, admite. “Cumpre clarificar, sobretudo, se o segredo de justiça é absoluto, impondo-se a quaisquer outros valores que com ele colidem, ou não, devendo ser restringido quando colide com a necessidade e o direito à informação das Comissões Parlamentares de Inquérito.”
Pese embora a sujeição a segredo de justiça, é possível ser concedido acesso a determinados documentos, desde que não ponha em causa a investigação em curso e se revele conveniente ao esclarecimento da verdade ou indispensável ao exercício de direitos pelos interessados, precisa o sócio da Abreu Advogados Pedro Barosa. “Será, nomeadamente, à luz desta primeira hipótese – a conveniência ao esclarecimento da verdade – que poderá ser equacionado o levantamento ou quebra do segredo de justiça que permita a prestação de esclarecimentos por parte da pessoa convocada a depor em comissão parlamentar de inquérito, na condição de tal não fazer perigar a investigação em curso”, aponta o advogado.
Proteger um segredo… na Justiça
Apesar de ter sido consagrado com o propósito de garantir que a investigação decorra na fase de inquérito sem “entraves” que possam comprometer o seu desenvolvimento, nem sempre o segredo de justiça é assegurado, como acontece nos casos em que há fugas de informação.
“Apenas na hipótese de o depoimento em sede de comissão parlamentar de inquérito não pôr em causa a investigação poderá ser o segredo de justiça derrogado em prol da plena realização das funções das comissões parlamentares, que gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, relembra Pedro Barosa. Logo, a comissão de inquérito do caso das gémeas poderia ser realizada à porta fechada, circunscrevendo-se a um universo mais restrito de intervenientes. “Diga-se, no entanto, que tal não garante, por si só, que o segredo de justiça se cumpra”, acrescenta Ana Rodrigues de Carvalho.
Mas haverá mesmo forma de garantir que o segredo de justiça seja cumprido? A resposta não é clara, nem a solução certa, mas Rui Costa Pereira desconfia da forma como atualmente é tratada a violação do mesmo. O advogado revela que já denunciou a violação de segredo relativo a atos processuais que acompanhou, mas que não percebe a forma como o Ministério Público (MP) atuou. “Imprimem-se as peças jornalísticas que corporizam o segredo violado, chamam-se os jornalistas como se alguém acreditasse que fossem revelar as suas fontes, fazem-se dos jornalistas arguidos. Então e os intervenientes diretos no processo? Os juízes, os procuradores, os advogados, os polícias, os funcionários? Esta gente existe. Gozam todos de presunção absoluta de inocência, ao ponto de não terem de ser chamados a dizer algo? Se acontece, nunca vi”, atira.
Segundo Rui Costa Pereira, a atual direção do sindicato dos magistrados do MP não “perde uma oportunidade” para defender uma alteração legislativa que legitime o recurso a escutas telefónicas na investigação criminal da violação do segredo. “[Escutas] a um crime que é uma bagatela penal, punível no limite com prisão até dois anos, responder-se-ia com uma das mais intrusivas medidas de obtenção de prova previstas na lei. Sendo certo que a investigação do segredo de justiça só surge naturalmente depois do segredo violado, vamos escutar o quê? Mas agora achamos que quem viola o segredo de justiça depois anda a falar ao telefone para se regozijar por isso, é?”, acrescenta. “Fosse a violação do segredo de justiça um critério de ponderação na avaliação dos magistrados do MP para efeitos de progressão na carreira ou para nomeação de cargos na sua estrutura hierárquica e estou em crer que, finalmente, veríamos uma tutela mais eficaz do segredo”, sublinha o advogado.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Até onde vai o segredo de justiça?
{{ noCommentsLabel }}