Data de reabertura da restauração não significa regresso de todos. Chefs de restaurantes com estrelas Michelin apontam outros desafios, além das medidas de distanciamento e limpeza.
Feitoria. Epur. Vistas. The Yeatman. G Pousada. Loco. Alma. Fortaleza do Guincho. Todos restaurantes. Todos com estrelas Michelin. Todos fechados a 18 de maio, data anunciada pelo Governo para a retoma da atividade dos restaurantes em Portugal, depois de declarado o estado de emergência em meados de março, ou seja, há dois meses.
No G Pousada, em Bragança, o pré-pandemia trazia números assim: cerca de 60% dos clientes que frequentavam o restaurante — que se estreou no ano passado no famoso guia francês — eram estrangeiros, de férias ou escapadas no nosso país. Por isso, para António Gonçalves, a questão da reabertura vai muito mais além de aumentar as regras de limpeza e desinfeção, distanciamento e serviço que, muitas vezes, já faziam parte do modus operandi do G.
“Restaurantes desta natureza têm já salas mais amplas que determinam, por natureza, que o cliente acabe por ter um espaçamento maior. É dada maior reserva e privacidade ao cliente, e isso já acontecia”, explica. O G Pousada antes da Covid-19 já garantia, por isso, pelo menos um metro e meio entre mesas, que nessa altura garantiam 30 lugares sentados. “Na reabertura vou ter 20 lugares sentados”, explica António Gonçalves, que garantem um “distanciamento perfeito”.
Por isso, para o responsável, o desafio não está nas normas a adotar — que, considera, acrescentam muito pouco àquilo que o conceito de restaurantes de fine dining já garante: um maior nível de privacidade aos seus clientes, espaços mais amplos e até unidoses no que toca aos pratos servidos tradicionalmente. “O maior desafio, de norte a sul do país, é o de ter ou não ter clientes. Vamos abrir e, na realidade, não vamos ter clientes. De uma forma muito fria e real: quem eram os clientes de grande parte da restauração e hotelaria? Eram turistas”, assinala o responsável.
Marcada para 1 de junho, a reabertura do G vai coincidir com o regresso da Pousada, a unidade hoteleira da qual o restaurante é complemento. Dos 30 trabalhadores que garantiam o serviço no G Pousada e também no Geadas, o outro restaurante dos irmãos António e Óscar Gonçalves (este último, o chef), todos estão em lay-off.
"O maior desafio, de norte a sul do país, é o de ter ou não ter clientes. (…) De uma forma muito fria e real: quem eram os clientes de grande parte da restauração e hotelaria?”
“Não vale andar a tapar o sol com a peneira e a erguer bandeiras que acabam por ser, diria, mais populistas. A reativação do turismo com turismo nacional não é suficiente porque o grosso da economia é garantido por turismo externo. E isso significa que grande parte da hotelaria e restauração vai ter dificuldades na reabertura”, assinala António Gonçalves.
No Loco, do chef Alexandre Silva, fazem-se os preparativos para o novo menu, como é habitual nesta altura do ano. O restaurante lisboeta continua, no entanto, sem data de reabertura, depois do fecho a 14 de março. Com cerca de metade de clientes de fora de Portugal, o peso dos turistas nas contas do restaurante vai refletir-se a curto e médio prazo, acredita o chef Alexandre Silva.
“Ainda que o Loco tenha começado com base numa situação de crise — e por isso é tão pequeno e os cozinheiros servem à mesa, porque procurámos fazer mais com menos — a verdade é que o conceito foi sendo atualizado e reestruturado para responder ao nível que tínhamos antes da pandemia. Por isso, neste momento, o maior desafio é que o Governo liberte financiamento, o segundo que tenhamos clientes e, o terceiro, que as pessoas deixem de ter medo e pensem pela própria cabeça”, assinala Alexandre Silva.
Para o chef, mais assustador do que o vírus é que “as pessoas se barriquem com medo”. Com 22 lugares, o Loco vai reduzir a ocupação para metade na data da reabertura e, das 12 pessoas que trabalham no restaurante, oito voltarão ao trabalho nessa altura. A estratégia? “Abrir reservas para daí a 15 ou 20 dias”, ainda que essas datas continuem sem agendamento.
Em dois meses, o restaurante deixou de faturar 700 mil euros. E, nesse momento, a chegada “dos créditos necessários” é uma prioridade. “É muito dinheiro, há dívidas a fornecedores que têm de ser repostas e não podemos deixar de pagar os impostos senão perdemos o acesso a tudo. As linhas de apoio a que concorremos têm de chegar rapidamente porque, sem elas, é ainda mais difícil colocar a máquina a andar”, explica o chef.
Os mesmos preços no regresso
“Não temos como baixar os preços sem baixar a qualidade da oferta, mas queremos acrescentar valor às experiências”, aponta o chef Rui Silvestre, do Vistas, no Algarve. O restaurante, inserido no Monte Rei Golf & Country Club, em Vila Nova de Cacela, mobiliza uma equipa de 18 pessoas de um total de cerca de 200 que trabalham no resort. “Ainda não faz sentido porque não temos reservas”, explica o chef, em conversa com o ECO. “Já retomámos a atividade do resort e do golfe mas não há clientes. Os restaurantes do resort deverão abrir no início de julho”, explica Rui Silvestre. O maior desafio atual passa por “restabelecer a confiança e esperar que as pessoas se sintam novamente confortáveis ao irem a um restaurante”.
Cerca de 80% dos clientes do Vistas foram, até à pandemia, estrangeiros mas, em 2019, o número de portugueses cresceu. Rui Silvestre esperava que, este ano e com a estrela Michelin conquistada, o volume de clientes nacionais continuasse a crescer.
Para António Gonçalves, também está fora de questão aumentar preços com a manutenção dos custos da matéria-prima na cozinha do G Pousada. Encerrado desde 15 de março, na reabertura do Alma, no Chiado, em Lisboa, o restaurante contará com 20 dos 40 lugares disponíveis habitualmente. Na ementa, o chef decidiu alargar às opções à la carte e reduzir o número de pratos do menu de degustação, o que levou também à redução do seu preço. “Vamos reajustar a duração do nosso menu, que tinha vários momentos, por acharmos que os clientes deixam de querer estar tanto tempo no restaurante. A redução de preço é feita de acordo com a redução de pratos do menu”, explica.
Combater o medo
A AHRESP lançou, esta semana, um guia de boas práticas validado pela Direção-geral da Saúde (DGS) e que recomenda, em pontos, regras que respeitam as diversas orientações emitidas pela DGS e a legislação aplicável atualmente em vigor. A lista de medidas inclui, por exemplo, garantir o distanciamento entre as pessoas durante o período de funcionamento dos estabelecimentos, a promoção e incentivo do agendamento prévio para reserva de lugares, a utilização preferencial de espaços exteriores como esplanadas ou de serviço de take-away ou drive-in e a disposição de cadeiras e mesas de forma a garantir pelo menos dois metros de distância entre as pessoas.
No entanto, há ainda outro fator a ter em conta na hora de “voltar à normalidade possível”.
“É normal que as pessoas tenham medo de sair de casa, é normal que haja ansiedade e insegurança. Uma espécie de síndrome de quem será o primeiro a sair de casa e a correr o risco”, assinala Henrique Sá Pessoa. Para o chef do Alma, a reabertura de unidades de hotelaria e de restauração terá de ser acompanhada de uma reabertura “simultânea das fronteiras”: é que foi esta fácil circulação que elevou Portugal enquanto destino turístico. “A nossa economia interna não é forte ou grande para sustentar uma indústria da restauração e hotelaria”, defende.
"A nossa economia interna não é forte ou grande para sustentar uma indústria da restauração e hotelaria.”
Para o chef, esta sustentação da economia do pós-pandemia terá de ser feita com alguns apoios. “Estamos todos ligados ao ventilador, desde as fábricas a restaurantes, e empresas de serviços. E o ventilador precisa de oxigénio: se ele não vai aparecendo, deixamos de respirar. E uma empresa, como os restaurantes, que fatura zero nos últimos dois meses, não é sustentável”, sublinha, acrescentando: “Mais dois meses a faturar zero sem apoios, é insustentável”.
No Alma, apenas 1 em cada 10 clientes é nacional, ainda que “não por falta de procura de portugueses mas porque os hábitos de marcação de refeições sejam muito diferentes nos clientes locais e nos internacionais”. “Sentimos que, nas últimas duas semanas antes de encerrarmos, o Alma teve muito mais portugueses graças ao cancelamento de reservas vindas de fora. Mas com o mercado nacional é difícil que voltemos à situação anterior ao Covid”.
“O documento que a DGS enviou mais não é do que normas e regras básicas de HACCP recorrente que todas as entidades e restaurantes já deviam cumprir. Acresce algum cuidado no manuseamento da proteção individual. Todo o resto, vou ser sincero, são questões de HACCP”, assegura António Gonçalves, do G Pousada. Por isso, as mercadorias serão recebidas, de acordo com as regras, no cais de desembarque, munido de desinfetante. Os trabalhadores fardados, estarão munidos de máscara e luvas para medirem a temperatura de carnes, peixes, legumes e lácteos que devem respeitar diferentes registos, e o Virucid fará a desinfeção antes da armazenagem.
“Em restaurantes desta natureza, as medidas que a DGS acabou por integrar neste documento são, para nós, super pacíficas. A questão do serviço talvez seja sempre mais complexa. Na estrutura física da sala não há praticamente alterações”, sublinha António, acrescentando que a adaptação a nível de serviço poderá ser feita, por exemplo, em snacks de partilha, que deixam de existir, ou no pão que será servido em unidoses.
Henrique Sá Pessoa concorda. “As implementações práticas são uma questão de hábito. Claro que é estranho pensarmos em ir a um restaurante com uma máscara, gel desinfetante, mas se olharmos para a forma como estamos a reagir agora face ao que fazíamos há dois meses, demonstra-se a enorme capacidade de adaptação do ser humano”, refere o chef do Alma.
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Com estrela Michelin mas sem reabertura. “Maior desafio é ter clientes”
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