Como a China está a encostar os gigantes europeus do automóvel à parede

A crise que assola a indústria automóvel europeia está apenas no início. Se hoje as marcas chinesas têm uma quota de mercado de 2,5% na Europa, na próxima década podem chegar aos 10%.

O setor automóvel europeu está à beira de um precipício. A recente saída de Carlos Tavares da liderança da Stellantis — a quarta maior construtora automóvel do mundo — não foi apenas um choque para o mundo empresarial, mas um símbolo de uma crise que ameaça os alicerces de uma das indústrias mais emblemáticas da Europa.

Sob pressão dos dececionantes resultados da empresa nos primeiros seis meses do ano e do crescimento avassalador da concorrência chinesa, o gestor português viu o seu mandato chegar ao fim de forma abrupta, num desfecho que faz eco das dificuldades que afetam todo o setor. No entanto, este abalo é apenas a ponta de um icebergue que esconde um cenário alarmante para a Europa.

Um relatório do Parlamento Europeu publicado em outubro refere que a indústria automóvel, que emprega 13,8 milhões de pessoas e representa 6,1% do emprego total na União Europeia, enfrenta uma encruzilhada histórica. A transição verde, a digitalização e a concorrência global — com a China a assumir a dianteira — estão a transformar as regras do jogo.

A indústria automóvel europeia, com uma tradição centenária na produção de veículos com motores de combustão, enfrenta agora o desafio de adaptar rapidamente o seu modelo de negócio para mitigar os riscos associados a estas tendências disruptivas.

Mesmo com a imposição de tarifas pela União Europeia sobre os veículos elétricos fabricados na China, as marcas chinesas estão a adaptar-se, considerando a instalação de fábricas na Europa por forma a produzirem localmente e contornarem estas barreiras.

Em 2023, a União Europeia produziu 14,8 milhões de veículos (15,8% da produção mundial), incluindo 12,2 milhões de automóveis, números que permanecem abaixo dos níveis pré-pandemia. Por trás desta recuperação tímida está uma luta feroz para salvar décadas de liderança no mercado global, que agora é ameaçada por marcas chinesas que estão a redefinir o conceito de competitividade ao tomarem o continente europeu de assalto.

Somente no primeiro semestre deste ano, as vendas de automóveis elétricos de marcas chinesas na Europa atingiram as 70 mil unidades, cerca de 26% mais em comparação com os números alcançados no primeiro semestre de 2023. Este forte crescimento fez disparar a quota de mercado dos elétricos chineses na Europa de 5,97% em junho de 2023 para 7,37% em junho deste ano, segundo dados da Jato Dynamics.

O Volvo EX30, fabricado na China, foi o terceiro automóvel elétrico de passageiros mais vendido na Europa durante o primeiro semestre de 2024. O quarto mais popular foi o MG4 — também fabricado na China. “É evidente que a China contribuiu significativamente para o crescimento do mercado”, refere Felipe Munoz, analista da Jato Dynamics, destacando os preços competitivos dos carros chineses como uma das grandes vantagens do “made in China”. Mas não é só pelo preço que o dragão chinês está a desafiar as grandes marcas europeias.

No primeiro semestre de 2024, a BYD vendeu cerca de 17 mil automóveis elétricos na Europa, quase seis vezes mais que os números registados no mesmo período em 2023. E apesar das vendas na Europa representarem apenas 11% das vendas da BYD fora da China, o forte crescimento registado nos primeiros seis meses do ano colocou a BYD como a 16.ª marca de veículos elétricos mais vendida na Europa - a segunda marca chinesa a seguir à MG, que ocupa o 8.º lugar no ranking.

Gigantes europeus em apuros

A Volkswagen, o segundo maior fabricante de automóveis do mundo, está a considerar o impensável: fechar fábricas na Alemanha. Em 87 anos de história, a marca germânica nunca encerrou uma fábrica no país, mas agora pondera fechar três e cortar os salários dos trabalhadores em 10%. A empresa já emitiu duas revisões em baixa das previsões para os lucros que estima registar este ano, refletindo com isso a gravidade da situação.

A BMW e a Mercedes-Benz também não estão imunes à crise. “A base do nosso sucesso e prosperidade está sob pressão crescente”, referiu Oliver Zipse, CEO da BMW, ao Financial Times, à margem da edição deste ano do Paris Motor Show, realizado na capital francesa em outubro.

Se em casa as marcas europeias estão a perder terreno, fora de portas os números não são menos avassaladores. As marcas alemãs, outrora dominantes no mercado chinês, viram a sua quota de mercado cair drasticamente nos últimos anos. Se em 2020 as marcas estrangeiras representavam quase dois terços das vendas de automóveis na China, nos últimos oito meses de 2024 tinham uma quota de mercado de apenas 37%, segundo dados da consultora Automobility, sediada em Xangai.

Parte desta vertiginosa queda deve-se a uma profunda mudança de paradigma da própria indústria automóvel, que em apenas quatro anos fez a China a emergir como epicentro do setor, não apenas ao nível dos custos mas também no campo da tecnologia e da inovação. Isso é visível de várias formas:

  • Baterias e armazenamento de energia
    A Contemporary Amperex Technology (CATL) é líder mundial na produção de baterias por via do desenvolvimento de tecnologias de ponta como as baterias de estado sólido e as células Qilin, que oferecem maior densidade energética e tempos de carregamento ultrarrápidos. Estas inovações colocam a CATL como parceira estratégica de várias marcas globais, incluindo Tesla e a Hyundai, e desafiam as fabricantes europeias, que dependem de tecnologia menos avançada e mais dispendiosa.
  • Veículos acessíveis e inovadores
    Marcas como BYD, Nio e Xpeng redefiniram o conceito de mobilidade elétrica com modelos acessíveis e recheados de tecnologia de ponta. A BYD, por exemplo, registou um aumento de 73% nas vendas globais de veículos elétricos em 2023 e tornou-se a maior produtora mundial de veículos elétricos, ultrapassando a Tesla. Já a NIO aposta fortemente em sistemas de substituição rápida de baterias (battery swapping), uma solução que reduz drasticamente o tempo de recarga e que começou a ser implementada em massa em cidades europeias.
  • Condução autónoma e conectividade
    A Xpeng e a Huawei lideram no desenvolvimento de software de condução autónoma. A plataforma NGP (Navigation Guided Pilot) da Xpeng é amplamente considerada uma das mais avançadas do mundo, rivalizando com o sistema full self-driving da Tesla. Adicionalmente, os automóveis chineses oferecem integração avançada com sistemas de inteligência artificial e redes 5G, permitindo experiências de condução conectadas que os fabricantes europeus ainda estão a tentar alcançar.
  • Sustentabilidade como diferencial competitivo
    A China também apostou em práticas de produção sustentáveis. A BYD e a Geely (que agrega marcas como a Volo, a Polestar e a Lotus) investiram em fábricas neutras em carbono e na utilização de materiais recicláveis nos seus veículos, estratégias que lhes permitiram ganhar vantagem competitiva junto de consumidores sensíveis às questões ambientais, sobretudo no mercado europeu.

Ascensão imparável das marcas chinesas na Europa

Enquanto os fabricantes europeus lutam, as marcas chinesas ganham terreno rapidamente. “Em 2023, a China continental emergiu como o maior país exportador de automóveis mundialmente, com a União Europeia a tornar-se um destino significativo para muitas exportações de veículos elétricos chineses”, refere Sidong Fan, analista sénior da S&P Global Mobility.

De acordo com dados da Associação dos Construtores Europeus de Automóveis (ACEA), que reúne os 15 principais fabricantes europeus de automóveis, entre 2020 e 2023, a quota de mercado dos automóveis fabricados na China nas vendas de veículos elétricos a bateria na União Europeia aumentou de 3% para mais de 20%. E deste total, as marcas chinesas são já responsáveis por aproximadamente 8% do mercado.

O desempenho das marcas chinesas tem sido extraordinário. A MG, outrora bastião da indústria automóvel britânica até em 2005 ser comprada pela chinesa SAIC Motor, duplicou as vendas europeias durante quatro anos consecutivos, ultrapassando a Tesla como a marca automóvel mais exportada para a Europa no ano passado. E no primeiro semestre deste ano, a MG vendeu aproximadamente 130 mil unidades na Europa, enquanto marcas como a Volvo e a BYD registaram aumentos significativos nas suas vendas, não apenas na Europa, mas globalmente.

Nota: Se está a aceder através das apps, carregue aqui para abrir o gráfico.

“Mais de 20 marcas chinesas já entraram ou planeiam entrar no mercado europeu no futuro”, revela Sidong Fan. Esta invasão chinesa está a forçar os fabricantes europeus a repensar as suas estratégias. A BYD, por exemplo, planeia lançar mais veículos elétricos híbridos plug-in, enquanto a MG e a Chery Automobile (que nasceu como fabricante de brinquedos e de jogos infantis) introduzirão modelos híbridos e de combustão interna.

A competitividade dos veículos elétricos chineses deve-se, em grande parte, à eficiente cadeia de abastecimento da China, aos baixos custos de mão de obra e ao apoio governamental. Mesmo com a imposição de tarifas pela União Europeia sobre os veículos elétricos fabricados na China, as marcas chinesas estão a adaptar-se, considerando a instalação de fábricas na Europa por forma a produzirem localmente e contornarem estas barreiras.

A Chery Automobile estabeleceu uma parceria estratégica com a espanhola EV Motors com vista a construir em Barcelona a primeira unidade fabril da Chery na Europa. As operações de produção estão programadas para iniciar ainda este ano. Além dessa fábrica, está também em conversações com o governo italiano para construir uma fábrica em Itália e a considerar uma outra unidade em Inglaterra.

Também com planos para deslocar parte da sua produção para o Velho Continente está a Leapmotor (em parceria com a europeia Stellantis), a SAIC Motor, a Xpeng, a Geely e a BYD. Esta última planeia produzir componentes na Europa e montar baterias em fábricas na Hungria e na Turquia, importando apenas a célula da bateria da China.

O impacto desta crise na economia europeia não pode ser subestimado. Na Alemanha, o setor automóvel — incluindo fornecedores e empresas dependentes — representa 7% a 8% da produção económica anual do país. Hans-Werner Sinn, ex-presidente do Instituto Ifo de Munique, refere à Deutsche Welle que a Volkswagen “é apenas uma vítima precoce”, vaticinando que “há mais por vir” porque o “fracasso” reside na ideia de não se reconhecer “a rapidez e a determinação com que as políticas [pró-veículos elétricos] na China e na Europa estão a ser aplicadas”.

Para sobreviver e prosperar, os fabricantes europeus terão de se reinventar, abraçando novas tecnologias e modelos de negócio. O destino de milhões de empregos e uma parte significativa da economia europeia dependem da capacidade da indústria de se reinventar.

A situação é particularmente grave em algumas fábricas europeias. Na unidade da Stellantis em Mirafiori, onde é construído o Fiat 500e totalmente elétrico, a produção caiu mais de 60% no primeiro semestre de 2024, levando a empresa a suspender novamente a produção na sua histórica fábrica italiana de 2 de dezembro a 5 de janeiro. Mesmo a fábrica belga da Audi, que produz o modelo de luxo Q8 e-tron, enfrenta o risco de encerramento.

O futuro da indústria automóvel europeia permanece incerto. Sidong Fan projeta que “a quota de mercado das marcas chinesas na região atingiu 2,5% em 2023, e as projeções indicam que isso poderá subir para quase 10% até 2034, com mais de 1,2 milhões de carros vendidos no mercado europeu”. Esta previsão sublinha a urgência com que os fabricantes europeus precisam de se adaptar e inovar para permanecerem competitivos.

A crise no setor automóvel europeu é um reflexo das mudanças sísmicas na indústria global. A transição para veículos elétricos, a digitalização e a forte concorrência chinesa estão a redefinir as regras do jogo. Para sobreviver e prosperar, os fabricantes europeus terão de se reinventar, abraçando novas tecnologias e modelos de negócio. O destino de milhões de empregos e uma parte significativa da economia europeia dependem da capacidade da indústria se reinventar e navegar por estas águas turbulentas.

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