Com os investidores "escaldados" e receosos, os pedidos de mais regulação para criptoativos vão ganhar expressão em 2023. Ano será crítico, mas o "interesse não vai desaparecer".
A discussão pública sobre a regulação das criptomoedas promete ganhar ainda mais expressão em 2023, depois de se terem esvaído dois biliões de dólares de valor de mercado em 2022, ano que fica para a história pelo colapso de projetos de grande dimensão. Foi o caso da corretora FTX, cujas ondas de choque alcançaram os quatro cantos do planeta (ainda que, para alívio dos reguladores, não ameaçaram a estabilidade do sistema financeiro).
O ano novo começou com ganhos para a maioria das cripto, mas as subidas são muito tímidas face ao mergulho superior a 60% acumulado pelas cotações em dólares da bitcoin e do Ethereum, as duas mais conhecidas, no ano que terminou. A política monetária dos bancos centrais e a conjuntura macroeconómica menos favorável terão contribuído bastante para esta correção – mas não só.
Ao mesmo tempo, o entusiasmo dos pequenos investidores é agora bem menor. Longe vão os tempos de euforia em que a especulação nas criptomoedas era vista como uma receita para enriquecer rapidamente. Quem entrou no mercado em 2021 e vendeu em 2022 pode ter sofrido perdas expressivas, assim como aqueles que confiaram as poupanças à FTX de Sam Bankman-Fried. A empresa, que chegou a ser a terceira maior corretora cripto do mundo, caiu com estrondo no ano passado, deixando uma dívida multimilionária. Em causa estão acusações de fraude e um falhanço total ao nível da governação.
Não é por acaso que o ano começou com avisos do Banco Central Europeu (BCE). Mal o réveillon tinha terminado e já o economista Fabio Panetta, do conselho executivo do banco central, dava início a uma espécie de campanha em defesa de mais regulação para as cripto. Num artigo no Financial Times, a 4 de janeiro, o italiano argumentou que devem ser aplicadas aos criptoativos regras semelhantes às das apostas online.
“São ativos especulativos. Os investidores compram-nos com o único objetivo de os vender a um preço mais alto. Na verdade, são apostas disfarçadas de ativos de investimento”, defendeu o responsável do BCE, para quem os criptoativos não desempenham “qualquer função economicamente útil”. O mesmo manifesto esteve em grande destaque no portal do supervisor europeu até à terça-feira de 10 de janeiro.
São ativos especulativos. Os investidores compram-nos com o único objetivo de os vender a um preço mais alto. Na verdade, são apostas disfarçadas de ativos de investimento.
“Legado pesado, investidor escaldado”
“O tema da regulação vai ser, provavelmente, o principal” este ano, concorda Mariana Albuquerque, advogada com prática em regulação e tecnologia financeira. Até porque o ano anterior assistiu a “um conjunto” de eventos do tipo cisne negro, afirma, referindo-se a eventos muito raros cujo impacto é enorme (como a pandemia, por exemplo). “Não é habitual que ocorram com esta sucessão, uns atrás dos outros, a menos que seja num contexto específico”, esclarece.
Para a advogada, “essas situações realçaram muito o problema da falta de um quadro de regras para a indústria, especificamente no que diz respeito à parte financeira“, que contrasta com outros “ativos virtuais que não têm nada a ver com a área financeira”, sobre os quais, para a profissional, “estas questões não se colocam”. O mercado cripto financeiro “é uma mímica do que se passa no mercado financeiro” regulado, “mas sem qualquer tipo de supervisão”. “Isto abre caminho para práticas abusivas, como abuso de mercado, imensos casos relatados de insider trading [negociar com informação privilegiada, que é crime quando acontece na bolsa] e empresas que acabam por fazer operações em benefício próprio”, exemplifica.
Na perspetiva de Afonso Eça, diretor executivo do centro de excelência de inovação e novos negócios do BPI e professor convidado da Nova SBE, “2023 começa com um legado pesado” e “muito investidor escaldado e receoso do que este espaço pode ou não ser”. Começa ainda com taxas de juro elevadas e a subir, o que “vai ter impacto nas decisões de investimento”, acredita. Com este pano de fundo, “fala-se cada vez mais de regulação” e, depois de casos como o da FTX, a tendência “só vai aumentar”.
"2023 começa com um legado pesado [para as cripto].”
Por isso, este pode bem ser um ano de ‘tudo ou nada’ para o ecossistema, que terá de provar que a utilidade da tecnologia supera os riscos conhecidos. Mariana Albuquerque tende a concordar com esta ideia, mas, novamente, apenas na parte financeira da questão: “Nesta parte do investimento, para um futuro imediato, vai ser muito assim.” O capital disponível para investir é menos abundante, levando a que os grandes investidores institucionais sigam um plano “mais criterioso” com “mais escrutínio da natureza dos investimentos”. Um projeto em busca de dinheiro fresco terá o “ónus maior” de “comprovar que é merecedor” do voto de confiança.
“Situações [como a da queda da FTX], que são de desvio padrão, vão começar a ser cada vez menos comuns. Seria razoável presumir que toda essa especulação vai começar a estabilizar para deixar ficar só alguns projetos que têm viabilidade económica e não só a força de o público achar que aquilo vai valorizar”, vaticina a advogada.
"Seria razoável presumir que toda essa especulação vai começar a estabilizar para deixar ficar só alguns projetos que têm viabilidade económica.”
Já para Afonso Eça, “depende de como olhamos” para o assunto – será, principalmente, um ano determinante “para alguns produtos que associamos a criptomoedas”. Mas “o interesse não vai desaparecer”, até porque, por esta altura, o BCE e as autoridades norte-americanas estão a trabalhar na criação, respetivamente, do euro e do dólar digitais. “Quando estão a discutir a criação de uma moeda digital de banco central, também estão a contribuir para a discussão deste espaço. Não o estão a impulsionar, mas estão a contribuir”, destaca o responsável.
Enquanto o oficial do BCE, Fabio Panetta, pede regulação para as cripto como se fossem apostas online, há passos concretos a serem dados nos dois lados do Atlântico. Em Washington, discutem-se três pacotes legislativos para as cripto: dois mais abrangentes e um focado apenas nas stablecoins (criptomoedas com valor indexado a uma moeda ‘real’, como o dólar). Na União Europeia, está em foco o regulamento MiCA (significa ‘mercados em criptoativos’), que teve por base uma proposta da Comissão apresentada em 2020.
Em junho do ano passado, a presidência francesa do Conselho chegou a acordo com o Parlamento Europeu para a adoção dessa proposta, que visa “proteger os consumidores de alguns riscos associados com o investimento em criptoativos, bem como ajudá-los a evitar esquemas fraudulentos”. Espera-se que a lei chegue ao terreno muito em breve, provavelmente durante 2023.
Outro aspeto importante relaciona as cripto com a ameaça iminente de uma crise energética. Ao contrário do que se temia, a Europa deverá conseguir escapar ao problema neste inverno, devido a um misto de poupanças e tempo mais quente do que o habitual. Mas o próximo ano pode ser mais complicado: será preciso encher as reservas de gás natural sem qualquer fornecimento russo. Ciente de que algumas criptomoedas são consumidoras intensivas de energia – a rede precisa de uma quantidade gigantesca de eletricidade para funcionar -, a Comissão Europeia pediu aos Estados-membros, em outubro, que estejam “preparados” para travar essas atividades caso seja necessário libertar capacidade no sistema.
Enquanto alguns investidores lambem as feridas do ano velho, o ecossistema dos criptoativos vai-se desenvolvendo noutras vertentes, paralelamente à montanha russa dos mercados financeiros. “Fora da indústria financeira, o que vemos todos os dias é que, mesmo com todo o crash que aconteceu no valor destes ativos, há interesse de várias indústrias em explorarem projetos de Web3 e metaverso, em que, muitas vezes, a infraestrutura financeira que existe é descentralizada e recorre a criptoativos”, recorda o profissional do BPI.
Afonso Eça também fala em nome próprio. Em 2022, o banco português lançou um balcão no metaverso (conceito que o banco explica ser “um novo mundo virtual digital, feito à imagem do mundo ‘real’, onde se poderá interagir com pessoas e ter experiências digitais únicas”). Não foi a única instituição portuguesa a render-se a esta tendência tecnológica. No ano passado, a operadora Meo também lançou um espaço no metaverso, por exemplo.
O entusiasmo chega igualmente a Bruxelas. Num discurso em dezembro, Mairead McGuinness, comissária europeia com a pasta das finanças, reconheceu os problemas que afetam as criptomoedas, como as fraudes e a falta de suporte. Mas assegurou que por trás das criptomoedas “está uma tecnologia com enorme potencial”, capaz de tornar as transações e os pagamentos “mais eficientes” e “aumentar a concorrência”.
Não é preciso ter uma bola de cristal: as cripto vão continuar a dar que falar este ano. “Acho difícil que, em 2023, este espaço como um todo não vá ser, novamente, um dos temas do ano”, remata Afonso Eça. Mas não resiste a um desabafo: “Espero que, desta vez, não seja por más razões.”
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