Da química ao automóvel, da cortiça ao calçado, industriais avaliam os riscos da decisão eleitoral entre Trump e Kamala no quarto melhor cliente de Portugal e o que mais está a aumentar investimento.
Mais de uma centena de países ou blocos políticos já foram ou ainda vão a votos durante o ano de 2024. A maior parte das mudanças políticas com impacto de relevo para as empresas portuguesas já aconteceram, como foi o caso das legislativas no plano interno e em França ou as europeias. No entanto, excetuando a ida às urnas em março que alterou a cor política em São Bento, é a votação desta terça-feira para a Casa Branca, com a escolha entre Donald Trump e Kamala Harris, que gera mais expectativa e apreensão junto das exportadoras nacionais ouvidas pelo ECO. A lista de riscos é encabeçada pelas práticas protecionistas, mas inclui também as mexidas nas regras ambientais, a instabilidade das cadeias de fornecimento, o aumento dos preços da energia e de algumas matérias-primas ou uma alteração da política externa norte-americana que influencie as guerras em curso e deteriore as relações diplomáticas com a Europa.
Apesar de as relações transatlânticas se terem vindo a deteriorar nos últimos anos e os EUA “há muito [terem deixado] de ser ‘o porto seguro’ da Europa”, o diretor-geral da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) descreve a possibilidade de uma escalada nas políticas protecionistas como o maior risco para as empresas portuguesas. Aconselha até a “avaliar o contexto e analisar as oportunidades vindouras”, notando que “muitas empresas souberam contornar os entraves” criados pelos EUA ao apostarem nos mercados vizinhos, como o México e o Canadá. Ainda assim, Rafael Alves Rocha assinala que “a prudência será a melhor estratégia”. É que “existe sempre algum desfasamento entre as promessas das campanhas eleitorais e as decisões tomadas posteriormente” e também “um fio condutor” na política económica americana, seja ela liderada pelos republicanos ou pelos democratas. Por exemplo, o Inflation Reduction Act (IRA) surgiu na Administração Biden e os conflitos na Organização Mundial do Comércio têm atravessado várias administrações.
“A eleição de Donald Trump parece apresentar o maior risco para as empresas portuguesas que exportam para os EUA. Durante a campanha prometeu aumentar drasticamente os direitos aduaneiros, defendendo a ideia de uma tarifa universal de 10% a 20% sobre todos os produtos importados. A União Europeia está [atenta a] esse cenário e tem preparadas medidas de retaliação. Uma guerra comercial será o cenário mais provável caso as partes não consigam chegar a um acordo. No caso da vitória de Kamala Harris, espera-se um cenário de continuidade, incluindo a manutenção de uma política de subsídios, como o IRA. Não será certamente o regresso aos tempos anteriores à primeira administração Trump, mas apresenta menores riscos de um agravamento das tensões comerciais entre os EUA e a Europa”, compara o dirigente da confederação patronal portuguesa.
Balança favorável a Portugal: excedente de 2.983 milhões
A angústia dos empresários portugueses ganha expressão numérica através dos valores do comércio e do investimento bilateral. É que, segundo o Instituto Nacional de Estatística, os EUA foram o quarto cliente das exportações portuguesas de bens no ano passado, com uma quota de 6,8%, ocupando ainda a nona posição ao nível das importações (2,1%). Nos últimos quatro anos, estes indicadores registaram um crescimento médio anual de 16,7% e de 21,2%, respetivamente, com a balança comercial a ser favorável ao nosso país: um excedente de 2.983 milhões de euros em 2023. Produtos químicos (26,7%), combustíveis minerais (17,9%), máquinas e aparelhos (10,2%), plásticos e borracha (7,2%) e metais comuns (6,2%) foram as primeiras mercadorias nacionais compradas pelos clientes americanos.
Por outro lado, o stock de investimento direto português nos EUA superou 1,5 mil milhões de euros em 2023, enquanto o stock de investimento americano em Portugal cresceu 25% em termos homólogos, para acerca de 10,8 mil milhões de euros. Numa ótica de investidor final, isto é, ao invés de se considerar o local da subsidiária através da qual é feito o investimento, ocupa o quinto lugar na lista dos maiores investidores no país, apenas atrás de Espanha, França, Reino Unido e China. Ainda de acordo com os dados mais recentes do Banco de Portugal, tendo como referência apenas o ano passado, os investidores daquele país foram os estrangeiros que mais aumentaram o volume de capital aplicado em Portugal, num montante total de 2,1 mil milhões de euros, o que equivaleu a uma subida recorde de 305% face ao registo de 2022.
No que toca ao investimento direto, os efeitos da disputa eleitoral na maior economia do mundo são “mais difíceis de perspetivar”. “É até possível que um eventual aumento do protecionismo favoreça os fluxos de investimento industrial, para escapar ao aumento das tarifas. Por outro lado, a incerteza é inimiga do investimento, pelo que a imprevisibilidade de Donald Trump e o seu potencial impacto desestabilizador pesarão sobre as decisões dos investidores”, contextualiza Rafael Alves Rocha, diretor-geral da CIP.
Já no capítulo das exportações, o maior contributo (1,4 mil milhões de euros em 2023) advém dos produtos das indústrias químicas, onde se inclui o setor farmacêutico (600 milhões) que é também, entre os principais exportadores, o que regista uma maior dependência do mercado dos EUA: vale quase metade (48%) das vendas totais ao exterior.
Carla Pedro, diretora-geral da APQuímica – Associação Portuguesa da Química, Petroquímica e Refinação teme um cenário de aumento do protecionismo, com imposição de barreiras e tarifas nas importações a partir da UE, que diz ser “transversal” a ambos os candidatos, “embora potencialmente mais acentuado no caso de Donald Trump”. Na lista dos riscos para esta indústria portuguesa inscreve o “aumento da turbulência geopolítica com eventual impacto na estabilidade das cadeias de fornecimento e potencial reflexo no acesso e no aumento do preço da energia e de algumas matérias-primas”.
José Eduardo Carvalho, presidente da AIP – Associação Industrial Portuguesa, antecipa igualmente dificuldades para o setor das máquinas e equipamentos, pois “não são boas as notícias que vêm dos EUA”. Lembra que ambos os candidatos têm uma “visão protecionista da economia”, apesar de a eleição de Trump neste capítulo ser mais “preocupante” por mudar a estratégia de alianças internacionais.
“Estas eleições acarretam riscos acrescidos para a atividade das empresas portuguesas nos EUA, particularmente pela possibilidade de implementação de medidas protecionistas como um aumento das taxas alfandegárias sobre as importações de bens provenientes do exterior, incluindo dos países da UE. E levará a UE a retaliar, como mencionado pelo ministro das Finanças alemão, Christian Lindner. Adicionalmente, a valorização / desvalorização do dólar face ao euro poderá limitar ou beneficiar as exportações, embora seja prematuro antecipar flutuações cambiais”, resume o presidente da AEP. Apesar disso, Luís Miguel Ribeiro confia que “muitas empresas portuguesas que atuam em mercados competitivos, como o dos EUA, apresentam estratégias diversificadas e uma capacidade de adaptação que lhes permitirá mitigar, em parte, alguns riscos”.
Tarifas, ambiente e guerras
Para a indústria corticeira portuguesa, os americanos são os segundos melhores clientes internacionais e ultrapassaram em 2023 o máximo histórico de compras, superior a 214 milhões de euros. Nos últimos dez anos, o ritmo de crescimento anual rondou os 4%, embora em 2024 as fábricas nacionais estejam ali a “sentir de forma bastante significativa os efeitos de um contexto inflacionista e dos conflitos geopolíticos à escala global”. Os EUA são o maior importador e consumidor de vinho no mundo, pelo que “qualquer alteração regulatória teria certamente implicações significativas nas exportações diretas, assim como impacto indireto através da redução de exportações de vinho de mercados clientes de produtos de cortiça”, descreve Paulo Américo Oliveira, presidente da associação setorial (APCOR), notando igualmente os efeitos diretos sobre os materiais de construção.
“Uma eventual implementação de tarifas mais restritivas ou medidas mais protecionistas que podem levantar barreiras à importação são riscos aos quais nenhum setor está imune, afetando certamente Portugal como líder mundial no setor da cortiça. Um cenário [que] afetaria as relações bilaterais, influenciando acordos comerciais, e a estabilidade para as empresas que investem no país. Uma deterioração nas relações diplomáticas entre EUA e Europa, por exemplo, poderia trazer desvantagens para as empresas portuguesas no longo prazo. Por outro lado, falando de políticas ambientais, um cenário que promova a sustentabilidade e o consumo de produtos promotores de práticas sustentáveis será mais favorável ao crescimento do nosso setor devido às credenciais ambientais da cortiça”, frisa o também CEO da Amorim Florestal.
Apesar dos “riscos evidentes e inevitáveis”, Paulo Américo Oliveira recorda que os períodos de transição política também podem criar “oportunidades de investimento e colaboração”, avisando as empresas nacionais para estarem preparadas para se adaptarem às mudanças e conseguirem manter a competitividade naquele mercado. Além disso, embora o investimento direto americano no setor da cortiça seja atualmente reduzido, o líder da APCOR expõe que “com o interesse crescente nos EUA pelo uso de materiais mais sustentáveis, é previsível que cada vez mais empresas americanas venham a explorar parcerias com empresas portuguesas de cortiça no âmbito da pesquisa, inovação e desenvolvimento de produtos específicos” para aquele mercado.
Implementação de tarifas mais restritivas ou medidas mais protecionistas que podem levantar barreiras à importação são riscos aos quais nenhum setor está imune, afetando certamente Portugal como líder mundial no setor da cortiça. Afetaria as relações bilaterais, influenciando acordos comerciais, e a estabilidade para as empresas que investem nos EUA.
Com cerca de 340 milhões de habitantes e um PIB per capita na ordem dos 80.874,6 dólares, os EUA são também o mercado com “maior potencial de crescimento” para as empresas do setor do calçado. No ano passado, os industriais portugueses faturaram 101 milhões de euros naquele que é atualmente o sexto melhor destino e que desde 2018 aumentou em 44,3% as compras a Portugal, segundo dados da associação do setor (APICCAPS). “Para um setor como o nosso, que exporta mais de 90% da produção, a defesa do comércio livre, justo e equilibrado é essencial. Não gostaríamos que a política externa americana se alterasse de forma significativa. Rejeitamos sempre novas ondas protecionistas que penalizam o comércio internacional”, reage o porta-voz, Paulo Gonçalves, para quem “o maior risco é sempre o de incerteza, que penaliza naturalmente os negócios”.
Independentemente do vencedor, as “políticas restritivas” que se adivinham “terão seguramente impactos” nas exportações crescentes do setor metalúrgico e metalomecânico para os EUA. No último ano, o sexto melhor mercado para esta indústria valeu receitas superiores a 773 milhões de euros, mais de metade (57%) constituídas por produtos metálicos e máquinas e equipamentos. “É uma exportação de elevado valor acrescentado e que tem por base uma relação de confiança dos parceiros americanos na nossa qualidade, inovação e incorporação tecnológica. Portanto, mesmo se for o candidato republicano a vencer, acredito que algumas não abdicarão dos fornecedores lusos e estarão dispostas a pagar as taxas impostas. Além disso, o nível de especialização é muito elevado e dependem de parcerias externas como as que têm com as empresas portuguesas”, enquadra Rafael Campos Pereira.
“De qualquer forma, a ameaça é real e impõe-se uma reação concertada do bloco europeu, que não pode continuar a implementar constantes bloqueios à competitividade da economia europeia”, completa o vice-presidente executivo da associação do setor (AIMMAP). Teme sobretudo uma vitória de Trump que recupere a estratégia da primeira passagem do republicano pela Casa Branca com cortes nos impostos, aplicação de pesadas taxas alfandegárias e barreiras à imigração que contribuiriam para aumentar os preços e estimular a inflação nos EUA. Mas antevê igualmente que uma política orçamental expansionista da democrata Kamala Harris afetará a prazo o crescimento da economia e quem exporta para lá.
No caso particular dos fabricantes portugueses para a indústria automóvel, com 560 milhões de euros comprados e uma quota de 4,5%, os EUA foram o quarto país cliente em 2023. E, este ano, até agosto, continuou a aumentar a procura junto das fábricas nacionais, em contraciclo com a quebra de 4,8% por parte dos clientes europeus, confirmada por dados oficiais. José Couto, presidente da associação setorial (AFIA) tem “a sensação” de que ambas os candidatos têm uma visão protecionista, embora mais pronunciada no caso republicano, anotando que “essa é uma preocupação para todos os fornecedores europeus da indústria automóvel”.
Na primeira era Trump foram atribuídos subsídios para a instalação de construtoras europeias em território americano, numa “perturbação das regras da concorrência e das ajudas dos Estados”. E teme que isso volte a acontecer, ameaçando o fornecimento das empresas portuguesas. “Significa que ou a empresa portuguesa se muda também para continuar a ser fornecedora ou tem um problema de concorrência com os que lá estão, porque há custos mais elevados de transporte. É preciso fazer contas e, de facto, muitas empresas que trabalham para fornecedores de primeira linha deslocalizaram-se para os EUA e para a América Central”, recorda José Couto, relatando que “houve algumas portuguesas que também o fizeram”.
Das componentes automóveis para a pedra natural, à ameaça de agravamento das tarifas e de políticas comerciais e regulatórias que “afetariam diretamente” o custo dos produtos portugueses exportados, tornando-os menos competitivos face a concorrentes locais – sobretudo em caso de vitória de Trump, que tem “uma postura potencialmente mais protecionista”, Miguel Goulão acrescenta outra relativa às políticas ambientais e de sustentabilidade que se tornariam “ainda mais rigorosas” com Kamala Harris em Washington. Algo que “pode aumentar as exigências de conformidade e as regulamentações” para os produtos a entrar nos EUA. “Neste cenário, as empresas portuguesas enfrentam custos mais elevados e processos de certificação mais exigentes para atender aos padrões de sustentabilidade, algo que precisará de adaptação rápida e investimentos associados”, adverte.
O presidente da Associação Portuguesa da Indústria dos Recursos Minerais (Assimagra) reconhece que “há alguns segmentos que podem ser mais vulneráveis a mudanças políticas nos EUA, especialmente os ligados à construção e ao design de interiores”. Em 2023, as exportações portuguesas de pedra natural para os EUA ultrapassaram os 31 milhões de euros, com uma subida de 24,6% no preço médio em relação ao ano anterior. Impulsionado nos últimos anos pela recuperação do setor da construção, pela adesão a padrões de sustentabilidade e pela crescente procura americana por produtos de qualidade para design de interiores, Portugal ocupa agora o 9º lugar na lista de fornecedores com produtos como mármore, calcário e granito.
Por outro lado, Miguel Goulão assinala que o resultado das eleições nos EUA poderá ter um impacto direto no desenvolvimento futuro dos conflitos militares em curso, o que “não é desprezível” para a economia portuguesa e, em particular, para este setor. E não é só por reduzir a volatilidade dos preços das matérias-primas e melhorar as condições de exportação. “O fim dos conflitos, sobretudo na Ucrânia, abriria novas oportunidades para o setor da pedra natural e outros mercados de exportação, já que uma estabilização nas regiões afetadas aumentaria a procura por materiais de construção e recuperação de infraestrutura, [com] novos projetos de reconstrução e reurbanização, áreas onde a pedra natural portuguesa tem grande potencial de destaque”, enumera.
No setor da pedra natural, os padrões de sustentabilidade e as normas de emissão têm se tornado cada vez mais rigorosos. Qualquer nova regulamentação mais restritiva poderia trazer aumentos de custos e exigências adicionais para obtenção de certificações, impactando diretamente as empresas portuguesas exportadoras.
Já os industriais do mobiliário aparentam estar mais tranquilos, com o diretor executivo da APIMA, Gualter Morgado, a atribuir o abrandamento das vendas ao período pré-eleitoral, mas a confiar que, tal como nas votações anteriores, independentemente do resultado, voltará a “normalidade” a um mercado que nos móveis “pode passar rapidamente de 5º para 3º melhor mercado após as eleições” e que na fileira casa, para os têxteis-lar e cerâmicas decorativas, é mesmo o preferido dos fabricantes portugueses. O responsável perspetiva que “o período pós-eleitoral criará uma certeza de governação e fará espoletar os projetos e a normalidade no mercado dos Estados Unidos”.
Quem também está expectante quanto à votação do outro lado do Atlântico são os operadores do turismo, depois de no ano passado os EUA se terem posicionado como o terceiro mercado turístico para o destino Portugal em número de hóspedes, com cerca de dois milhões de dormidas. E no caso particular das viagens motivadas pelo vinho foram mesmo o principal emissor, com uma quota de 20% do fluxo estimado pela Associação Portuguesa de Enoturismo (APENO).
“Apesar de Trump ser uma figura polémica, a vitória republicana pode implicar uma resolução mais rápida dos conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente, e fazer com que outros países próximos dessas zonas passem a ser considerados seguros e a estar na moda. Podemos perder algum fluxo de turistas americanos, mas os enoturistas continuarão a procurar-nos pela diversidade de regiões vitivinícolas e bons vinhos, gastronomia, cultura e clima”, conjetura Luís Sá Souto. E com mais dinheiro no bolso a reboque da política republicana de desagravamento fiscal, o vice-presidente da APENO acha que uma vitória de Donald Trump “poderá implicar também um aumento de enoturistas em Portugal”.
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