Seis anos depois de polémicas e milhões de prejuízos, António Ramalho deixa o Novobanco a dar lucro e pronto para ser vendido

Ramalho entrou no Novo Banco a 1 de agosto de 2016. Agora, seis anos depois, sai de um novo Novobanco a dar lucro e à espera de ser novamente vendido. O que se segue?

Nos seis anos em que liderou o Novobanco, António Ramalho colecionou polémicas, muitas disputas com o Governo, Parlamento e regulador. Sete mil milhões de euros de prejuízos depois, deixa um banco (finalmente) a dar lucros e depois de uma profunda limpeza que ainda hoje, oito anos após a resolução do BES, tenta fazer esquecer um legado problemático e tóxico da era Ricardo Salgado. Mas fê-lo com o sacrifício dos outros bancos que vão ter de pagar as injeções de oito mil milhões ao Fundo de Resolução (incluindo o acordo de capital contingente) e aos contribuintes nas próximas décadas. Esta conta ainda não está fechada, mas já se olha para a futura venda.

De um feito António Ramalho poderá gabar-se: pegou num banco moribundo e com o futuro atravessado na guilhotina de Bruxelas se não fosse vendido e, depois de uma profunda reestruturação (que ainda não foi dada como fechada por Bruxelas), deixa-o agora bem posicionado para aproveitar o novo ciclo da política monetária na Zona Euro.

O processo até chegar aqui foi tudo menos pacífico e levantou muitas questões. Como pouco pacíficas parecem ser as circunstâncias da sua saída abrupta do banco.

Ainda em março, quando apresentou os primeiros lucros anuais de sempre do Novobanco, assegurava um “compromisso total” com o banco até final do mandato, em 2024, isto apesar de toda a pressão da Operação Cartão Vermelho, que o ligou ao grande devedor Luís Filipe Vieira. Poucas semanas depois, porém, anunciou a saída com o argumento de, prestes a completar 62 anos daqui a semanas, ter um “compromisso com a família”, disse numa entrevista ao Jornal de Negócios.

António Ramalho abandona agora um banco restabelecido no mercado, precisamente seis anos depois de ter iniciado as funções de CEO num banco que era transição, mas deixa um pé na porta: vai tirar um diploma de não executivo no IMD, na Suíça, o que permitirá voltar mais tarde ao board de uma instituição.

Antes do Novobanco, passou por várias instituições, sempre com funções executivas: presidiu à Infraestruturas de Portugal (2015-2016), Estradas de Portugal (2012-2015) e Comboios de Portugal (2004-2006), foi vice-presidente do BCP (2010-2012), liderou a Unicre, foi administrador executivo do Totta (2000-2003) e do grupo Mundial Confiança (1990-2000).

Para o seu lugar entra o irlandês Mark Bourke, até agora administrador financeiro e nome forte do acionista Lone Star. Vem com uma missão que parece estar à vista de todos: de vender o banco e permitir aos americanos recuperarem – com lucro — os mil milhões de euros investidos em 2017.

O que mudou no banco em seis anos? Muita coisa.

Um início atribulado

Com mais de 12 mil milhões de euros em crédito problemático, cerca de um terço da sua carteira, resultado do trágico passado do BES, o Novobanco era uma instituição com a corda na garganta quando António Ramalho entrou em agosto de 2016.

Nessa altura, Portugal estava sob pressão para vender o banco, depois de falhado o primeiro processo de venda no final de 2015. Foi já na 25.ª hora — e depois de esgotados todos os prazos de Bruxelas para evitar o encerramento do Novobanco — que, em outubro de 2017, foi encontrado um comprador: o Lone Star, que ficou com 75% a troco de uma injeção de mil milhões.

Se o negócio com o fundo americano permitiu dar uma nova esperança ao banco, também abriu uma caixa de Pandora com o chamado mecanismo de capital contingente no valor de 3,89 mil milhões que viria a ensombrar nos anos seguintes todos os que intervieram nesse processo.

Na altura da venda, António Costa assegurou: “Os contribuintes não pagarão nem direta, nem indiretamente. Necessidades eventuais têm de ser asseguradas pelo Fundo de Resolução e o Fundo de Resolução tem as suas dotações asseguradas pelos bancos”. Estas palavras perseguem o primeiro-ministro desde então, tendo em conta as injeções milionárias já realizadas no banco e que o Tribunal de Contas considera serem com recurso ao erário público.

O funcionamento desta garantia pública nunca foi de fácil perceção ao público. Quem financia: dinheiro público ou dos bancos? Que prejuízos cobre: apenas as perdas dos ativos tóxicos? E como se faz o controlo das chamadas de capital? Depois, os contratos com Bruxelas e o Lone Star nunca foram divulgados até hoje, apesar de toda a pressão, o que ajudou a reforçar a desconfiança dos contribuintes. Também não ajudaram na imagem do banco (e que depois começou a fazer dano sério na reputação do próprio António Ramalho) os vários negócios de vendas de carteiras de crédito malparado e de imóveis com elevados descontos e a investidores cuja origem não estava totalmente identificada.

Muitas destas operações estiveram na origem dos prejuízos milionários do banco e dos pedidos ao Fundo de Resolução. Uma delas chegou mesmo à Procuradoria-Geral da República.

Ainda no mês passado as auditorias da Deloitte e do Tribunal de Contas expuseram todos estes problemas do banco. O Tribunal de Contas concluiu que nem Governo, nem Fundo de Resolução, nem banco salvaguardaram o interesse público, enquanto demonstrou os negócios milionários que os fundos internacionais fizeram com o imobiliário comprado a preços de saldos ao Novobanco e revendido a peso de ouro.

Em sua defesa, António Ramalho repetiu a ideia de que o banco é mais auditado da história e que esteve sempre disponível para dar todos os esclarecimentos dos casos mais duvidosos.

Contando já com estas últimas duas auditorias, o Novobanco diz que já foi alvo de 28 auditorias. E mereceu ainda honras de uma comissão de inquérito que, em 2021, pôs os deputados a investigar as perdas imputadas ao Fundo de Resolução e deixou o país incrédulo com algumas das revelações dos principais intervenientes, incluindo os grandes devedores.

Até hoje, o banco já consumiu 3,4 mil milhões de euros do polémico mecanismo de capital contingente que divide opiniões sobre a sua razoabilidade, mas ainda disputa com o Fundo de Resolução muitas dezenas de milhões no tribunal arbitral que podem esgotar toda a almofada.

FdR já injetou 3,4 mil milhões através do mecanismo

Fonte: Novobanco

O mecanismo nunca reuniu consenso. Há quem defenda que criou os incentivos errados à administração, ao estimular vendas de ativos ao desbarato e a qualquer custo, pois o banco sabia que tinha sempre as costas protegidas pelo erário público.

Mas há quem argumente no sentido contrário, nomeadamente o Governo, Banco de Portugal e Fundo de Resolução: sem o mecanismo de capital contingente, o Novobanco dificilmente seria vendido, um cenário que levaria à sua liquidação com custos incalculáveis para a economia portuguesa.

Outro detalhe: foi Bruxelas quem travou que o Fundo de Resolução pudesse indicar qualquer nome para o conselho de administração a fim de fazer um exercício de controlo mais próximo das decisões de Ramalho. Criou-se uma comissão de acompanhamento para fazer essa supervisão para tentar compensar, mas também se levantaram dúvidas quanto à eficácia da fiscalização deste órgão.

Do lado do Novobanco, além das auditorias, defende-se a gestão com os números: as perdas com os ativos do mecanismo de capital contingente foram bem superiores às chamadas de capital junto do Fundo de Resolução em mil milhões. Na prática, está a dizer que poupou dinheiro aos contribuintes.

Os conflitos com Governo e Banco de Portugal

A relação de António Ramalho com o Governo e Banco de Portugal foi azedando ao longo dos anos. Cada pedido milionário para tapar as perdas do Novobanco ia cavando não só buraco nas contas do Fundo de Resolução — que os bancos poderão ter de pagar até 2062 — mas também distância entre o gestor com o Executivo e o regulador.

Ramalho saiu bastante prejudicado (e poderá ter precipitado a sua saída) com as notícias divulgadas no início do ano sobre a Operação Cartão Vermelho, que investiga o ex-presidente do Benfica Luís Filipe Vieira, que é um dos grandes devedores do Novobanco com a Promovalor. Foi apanhado nas escutas telefónicas a combinar uma reunião com o ex-presidente do Benfica para preparar para a comissão de inquérito e a dizer que um dos seus administradores vai ser “monocórdico e chato” perante os deputados que “os gajos não vão perceber nada”. O Banco Central Europeu (BCE) disse estar a investigar as informações, mas não se conhecem resultados sobre o processo.

Em muitas situações, também ficou a ideia de que estaria a gerir o banco no sentido de maximizar os pedidos ao Fundo de Resolução e de procurar esgotar todo o mecanismo de capital contingente. Situações que deram origem, de resto, a muitos conflitos, alguns deles públicos e outros que estiveram ou estão a ser dirimidos no tribunal arbitral.

Isso aconteceu, por exemplo, com os bónus diferidos atribuídos à gestão e a pagar pelo Fundo de Resolução, que mereceu o repúdio de todos, do primeiro-ministro ao Presidente da República, passando pelo governador do Banco de Portugal e Parlamento, no mesmo tom: como é possível premiar uma administração de um banco que continuava a apresentar prejuízos de muitos milhões?

Ou então quando o banco tentou mudar de política de contabilidade que lhe permitia ir buscar mais dinheiro ao Fundo de Resolução.

Ou quando vendeu o banco em Espanha, num esquema que levantou dúvidas sobre a boa-fé da administração, como disse a comissão de acompanhamento, pois registou as perdas do negócio e o alívio nos rácios em anos diferentes, e pôde assim pedir mais 147 milhões — que o Fundo de Resolução travou.

Já este ano, quando a perspetiva de lucros deixava antever o fim das chamadas de capital, eis que o Novobanco voltou a pedir mais dinheiro ao Fundo de Resolução, alegando, entre outros fatores, uma norma aprovada no Parlamento que agrava o IMI para os proprietários localizados em offshore.

O Fundo de Resolução não pagou os 209 milhões pedidos pelo banco. E abriu-se mais uma disputa entre as duas partes, que se juntam-se às outras divergências de 400 milhões que o Tribunal Arbitral de Paris irá decidir.

Se o banco ganhar todas as ações, basicamente esgota os 3,89 mil milhões do mecanismo de capital contingente. Se perder, ainda poderá pedir dinheiro ao Fundo de Resolução até 2026, que é quando termina o acordo.

Por tudo isto, o Novobanco nunca foi um processo fácil de gerir politicamente pelo Governo de António Costa. Chegou mesmo a provocar uma minicrise entre o primeiro-ministro e Mário Centeno em 2020: o antigo ministro das Finanças autorizou um empréstimo de 850 milhões de euros para o Fundo de Resolução injetar no banco, quando Costa tinha prometido no Parlamento, a Catarina Martins, parceira da geringonça, que só iria transferir mais dinheiro após serem conhecidos os resultados da auditoria da Deloitte. O problema foi superado com Centeno, que entretanto foi designado governador do Banco de Portugal, a assumir uma “falha de comunicação”.

No final desse ano, o Parlamento haveria por o Governo em alta tensão, depois de ter chumbado novas injeções sem a autorização dos deputados, situação que o ministro das Finanças também haveria de ultrapassar.

Banco dá a volta em seis anos

Apesar de todas as polémicas e peripécias milionárias, para o banco e para o Lone Star, tudo isto não terá sido em vão. 2021 marcou o ano de viragem para o Novobanco. A instituição alcançou os primeiros lucros anuais desde a resolução, no que será a face mais visível da transformação operada no banco nos últimos anos e abre o caminho para a venda.

O ajustamento do banco desde 2017 foi tão agressivo como necessário para assegurar a sua sobrevivência. Bruxelas ainda não deu luz verde à conclusão do período de reestruturação, momento a partir do qual poderá pagar dividendos ou comprar outros bancos. Embora um ou outro objetivo tenha ficado aquém das metas, o contrato está praticamente concluído.

Os números não desmentem: o Novobanco é hoje um banco muito mais pequeno do que há seis anos, mas mais eficiente. O ajustamento teve muitos custos sociais. Desde o final de 2016, saíram da instituição quase 2.000 trabalhadores, uma redução de 30% da força de trabalho que deverá prosseguir. Foram encerradas mais de 200 agências: conta agora com uma rede de 310 balcões.

Fonte: Novobanco

O banco desfez-se de todas as operações internacionais para se concentrar em Portugal, o que explica em parte a redução do número de funcionários e de agências. Os bancos na Venezuela, Londres, Nova Iorque, Caimão, Bahamas, Madeira SFE, Ásia, Cabo Verde, Irlanda, França, Alemanha, Suíça, Brasil, África do Sul e Espanha foram vendidos, encerrados ou absorvidos.

Isto permitiu reduzir os custos com pessoal, que baixaram mais de 40% em seis anos.

No que diz respeita ao negócio, os depósitos estabilizaram na ordem dos 27 mil milhões de euros, num sinal de confiança dos clientes apesar de toda a turbulência e das notícias pouco positivas para a reputação do banco.

Já a carteira de crédito bruto contraiu consideravelmente, passando dos 33,8 mil milhões em dezembro de 2016 para 25 mil milhões em dezembro de 2021, uma redução que se deveu em grande medida à venda de empréstimos tóxicos em grandes carteiras a fundos internacionais e que permitiu uma profunda limpeza interna.

O rácio de malparado caiu de 33% para 5,7% em cerca de meia dúzia de anos, mais alinhado com a média europeia e uma das maiores marcas que Ramalho deixa. O banco ainda tem cerca de 1.700 milhões de euros em malparado para “limpar”.

Pelo meio, o banco mudou de nome: deixou de ser Novo Banco e passou a chamar-se Novobanco. Esta ligeira alteração da marca pouco tem a ver com as profundas mudanças nos últimos anos, mas serviu para marcar a viragem do banco para um novo capítulo. Os lucros abrem caminho à venda num processo que interessa ao acionista americano, mas não só: o Fundo de Resolução (23,44%) e o Estado (1,56%) também detêm participações no banco e estarão atentos. Mas este processo já não será conduzido por Ramalho.

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