A balança da Justiça
Facto é que ninguém é indiferente à invasão de um país por outro, de forma beligerante, com baixas civis e inevitavelmente, inocentes. Nesta questão moral, mesmo nesta, a justiça deve permanecer cega.
A justiça deve ser cega. Alegoricamente vendada para não olhar a quem, nem à sua condição. Mas também vendada para não ser reconhecida. Alegoria difícil nestes tempos. As leis existem precisamente para assegurar, de forma imparcial, isenta e geral, que todos somos tratados de forma igual, sem prejuízo do que possa ser entendido como parâmetro em cada ordenamento jurídico. O princípio da igualdade tem esta configuração, também ela de equilíbrio. Tratar de forma igual o que é igual, mas de forma diferente o que é diferente. Facto é que ninguém é indiferente à invasão de um país por outro, de forma beligerante, com baixas civis e inevitavelmente, inocentes. Nesta questão moral, mesmo nesta, a justiça deve permanecer cega.
Isto é o ponto de partida para a leitura que, juridicamente, podemos fazer sobre as notícias que têm chegado a propósito de sanções que alguns países têm aplicado a oligarcas russos. Sanções que passam pela apreensão de bens. De atender que as notícias têm, muitas vezes, uma limitação de fontes que gera uma limitação de informação. Em concreto, pouco se sabe sobre o fundamento destas sanções. As opiniões que vão sendo adiantadas prendem-se com o objetivo de enfraquecer ou minimizar o alcance da influência do presidente russo.
Legalmente, estamos em crer que haverá algo mais do que uma decisão política. I.e., uma decisão jurídica, que se fundamenta num processo de investigação de crimes graves, como a associação criminosa, o branqueamento de capitais ou outros. Algum crime com consolidação legal, tanto interna como comunitária. Isto, sim, justificaria uma decisão de limitar, ainda que preventivamente, direitos dos cidadãos, como o direito de propriedade.
Os bens, não pertencendo ao país ou ao presidente visados, mas a pessoas singulares ou coletivas, que, por acaso, têm nacionalidade ou ligação aos anteriores, não podem, sem justificação legal – objetiva e subjetivamente – ser apreendidos. Este é o princípio de qualquer limitação legal e judicialmente aplicada a um direito consagrado no direito interno de qualquer país democrático. Bem assim, é o que resulta da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948. É este documento, proclamado pelas ditas Nações Unidas, no seu artigo 17.º, que relembra que “Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros”. Mais acrescentando que “Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”.
Posto isto, em vez de adivinhar justificações, preferimos acreditar que, i) existem justificações juridicamente sustentadas e sustentáveis; ii) a justiça far-se-á, cegamente. Os bens apreendidos foram-no, certamente, com justificação bastante. Se a justificação não for sustentada ou não se vierem a provar os pressupostos, a apreensão é ilegítima e revogada. Se for, é mantida e os bens são destinados ao fim que se vier a decidir. Isto num pressuposto cautelar. Não de sanção.
Esta incorreção é a base do problema de configuração das notícias que temos conhecido. A ser uma sanção, tem de ser uma sanção baseada numa justificação com substrato legal. Pelo que, qualquer conclusão que se venha a alcançar, neste quadro, que confirme que são, efetivamente, sanções aplicadas a pessoas singulares pelo simples facto de serem oligarcas russos, sem mais, atentará contra os mais elementares direitos consagrados no nosso ordenamento jurídico, a nível comunitário.
Esta é a premissa do direito positivo, não discriminar o sujeito pela respetiva condição de nascimento, de raça, de condição económica ou social. Não fazer depender o direito de solidariedades singelas e sazonais, mesmo que necessariamente bondosas. O caminho trilhado pela História já nos ensinou que esse não pode ser o caminho.
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