A China e os tempos da Europa
Não ganhamos muito em sincronizar sanções à China com outros, tratando-se de instrumentos diplomáticos que a Europa raramente utilizava.
1. A economia e as empresas são tributárias da geo-política. Isso significa que a geografia condiciona a política, e que por sua vez aqueles factores são determinantes para o crescimento da economia e o sucesso das empresas. Sobretudo no plano global, onde directa ou indirectamente estamos todos. Por isso os europeus, e os portugueses, não podem ficar alheios aos novos equilíbrios, ou tentativas de equilíbrios, que estão a desenhar os Estados Unidos e a China. E como raramente a política externa ou a situação internacional são em” slow – motion”, as empresas e os agentes económicos têm que saber antecipar as tendências que os podem afectar.
2. Os Estados Unidos e a China são hoje as maiores potências globais. Nos planos estratégico, político e económico. Mas também militar (aqui cabe a Federação Russa), científico, tecnológico, logístico. E disputam poder em todas essas vertentes. Não é o caso da União Europeia e da generalidade dos países europeus. Com raras excepcões que o Brexit veio diminuir. Londres, está fora. Berlim tem dias, Paris hesita. Neste jogo, os outros não contam. E assim continuamos à espera que entre em vigor o Acordo sobre Investimentos assinado entre a União Europeia e a China em Dezembro.
Nos últimos anos, a China investiu mais de 300 biliões de euros na Europa. Se analisarmos este investimento “per capita”, o país que recebeu o maior investimento foi a Finlândia. Mas Portugal, com mais de 7 biliões de euros de investimento chinês, é o segundo país europeu a beneficiar deste fluxo de capital em relação à população. Daí a importância para nós da ratificação do Acordo com a União Europeia que agora parece causar algumas dúvidas, dúvidas que Washington alimenta.
3. Para se ter uma ideia mais clara do que está em jogo, em 2020 a China ultrapassou os Estados Unidos como o primeiro parceiro comercial da União Europeia.
A China exportou para os 27 países europeus 383,5 biliões de euros, mais 5,6%do que no ano anterior. E importou 202,5 biliões, um crescimento de 2,2% em relação a 2019. O comércio entre a Europa e a China é de 1,7 biliões de euros por dia.
Para comparar: a balança comercial da China com a Europa alcançou 586 biliões de euros. O total do comércio externo de Portugal foi de 121 biliões, ou seja dois meses e meio do que a China representou para a Europa.
A China foi em 2019 o sexto fornecedor de Portugal e o nosso 14º cliente. Exportámos 569 milhões de euros e importámos um pouco mais de 3 biliões.
4. Apesar da pandemia, a economia da China viria a crescer 2,3% em 2020. Ao contrário dos nossos principais mercados (Espanha, França, Alemanha, e Reino Unido). Todos com fortes quebras nos índices de crescimento. A China constitui assim um dos mercados extra-europeus onde as nossas empresas poderão compensar a quebra dos seus clientes da União Europeia, que representam mais de 70% das nossas exportações. E que irão demorar alguns anos até atingir os níveis anteriores. Para não falar no turismo.
Ao contrário do que sucede em muitos países europeus, as compras e as vendas de bens e serviços ao exterior representam em Portugal mais de 90% do PIB. Daqui a prioridade para a nossa diplomacia económica assegurar mercados que compensem as previsíveis tendências regressivas. Entre os quais o mercado chinês, o único com índices de crescimento significativos nos dias de hoje e com um aumento esperado de 6% no ano corrente.
5. A Europa tem vindo a definir e assumir objectivos claros para superar a crise. E a impor esses alvos aos países, como Portugal, que mais se propõem beneficiar do Plano de Recuperação e Resiliência. A renovação tecnológica, com o ponto de mira na digitalização, implica largos investimentos em infraestruturas que irão servir aquela inovação. Assim a Europa poderia marcar presença activa numa futura ordem global. Mas está a dar-se conta de que não pode excluir empresas que inovam noutras geografias, sejam americanas ou chinesas. E aqui a Europa mergulha num conflito latente que não é dos europeus.
Há alguns dias um jornal de referência em Espanha, “El País” (20 de Março) titulava um artigo “A tensão entre a China e os Estados Unidos está a fazer mal à ciência”
Também o “think tank” norte–americano Brookings publicava um estudo do John L. Thornton China Center que referia: “os Estados Unidos impuseram muitas sanções tecnológicas e comerciais à China nos últimos anos. Algumas são importantes e efectivas. Mas muitas são simbólicas e ineficazes, afectando mais os interesses dos Estados Unidos do que os da China”. E da Europa, acrescentamos nós.
Aliás, o Governo chinês iniciou já há algum tempo uma clara política para disciplinar e impor regras às plataformas tecnológicas mais importantes. Tal como procura fazer o Congresso norte-americano. Não apenas para evitar a divulgação de “fake news”. Mas também para regular pagamentos digitais, evitar monopólios e disciplinar o mercado. Tudo isto exige diálogo e equilíbrio. Como a visão multilateral, as regras no comercio internacional, as alterações climáticas, a aplicação do direito internacional e a definição de linha vermelhas. Matérias onde os Estados Unidos, a União Europeia e a China deviam querer encontrar-se.
6. A nova administração americana, por enquanto com muitas mudanças de tom e outras substanciais em relação ao “America First” de Trump, tenta regressar ao mundo. Esperava-se que fosse um regresso menos controverso. Veja-se a recente reunião com a China, no Alaska. Território aliás comprado ao Czar russo Alexandre II pelos Estados Unidos, em 1867.
A diplomacia parece ter cedido à propaganda. Os responsáveis americanos falaram para a galeria e os chineses responderam, sempre em público, subindo a linha das acusações. Como comentou Carlos Miranda, meu colega espanhol na NATO há alguns anos, “acabaram à bofetada limpa diante das câmaras”. A somar às acusações pessoais de Biden a Putin, parece que a diplomacia americana ainda anda à procura de um registo adequado às suas novas ambições. Nada disto é bom para a estabilidade política e para a economia que precisa de recuperar da onda negativa da pandemia.
No entanto, a larga maioria dos Estados Membros da ONU, e até aliados europeus, não partilham o sentido do encontro de Anchorage e não encaram a China como uma ameaça. Na dimensão que Washington propõe. Por razões históricas, que Portugal recorda melhor que muitos outros, mas também por interesses geo-políticos, estratégicos, económicos e até culturais. Conviria ter presente, como por vezes aqui se recorda, que somos aliados dos Estados Unidos, mas amigos da China. Com quem temos um diálogo estratégico institucionalizado.
7. Alguns responsáveis políticos ocidentais parece que descobriram agora dois factos: que a China é um país com uma ideologia precisa, e que desde 1949 que tomou essa opção com Mao; e que o desenvolvimento económico não alterou essa escolha, com Deng Xiaoping desde 1978 e Xi Jiping desde 2012 a terem mantido os rumos ideológicos. Além disso, a China herdou e cultiva uma civilização própria, com valores que conviria ter presentes. Talvez relendo os sinólogos que ainda vamos tendo no Ocidente e que nos ajudam a entender esses conceitos. Uma percepção distinta de valores existiu sempre, desde a antiguidade. Não deve condicionar o relacionamento internacional. Nem a importância dos tempos em política e dos mercados em economia.
E é por isso que a Europa, e os europeus, devem ter uma identidade e uma política próprias neste caso. Sobretudo países como Portugal.
Não ganhamos muito em sincronizar sanções à China com outros, tratando-se de instrumentos diplomáticos que a Europa raramente utilizava. Tanto mais que são decisões europeias que implicam medidas nacionais, o que nunca é explicado. E levam a escaladas de consequências imprevisíveis em tempos difíceis para os europeus.
Qual é a mensagem que a Europa quer passar? Nos tempos das suas prioridades e dos seus interesses ou por conta de outros? Para além da política, tudo isto tem implicações económicas, e até sociais, que interessam também às empresas portuguesas.
É que não fica uma ideia clara da densidade e do alcance que a União Europeia quer para a sua autonomia estratégica.
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