A Covid-19 e as execuções hipotecárias – uma polémica evitável

  • Joana Clemente e Teresa Cabral Rego
  • 23 Outubro 2020

Não existe diferença entre as execuções hipotecárias em curso e as a requerer; diferença que só teria sentido no que toca aos créditos hipotecários cujo reembolso foi afetado pela Covid-19.

A Covid-19 originou uma intensa produção legislativa, o que obrigou o legislador a desdobrar-se e determinou que, por vezes, não tenha conseguido exprimir-se de modo absolutamente claro. Uma das polémicas suscitadas respeita à execução hipotecária relativa a habitação própria e permanente.

A Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, estabeleceu um regime processual transitório e excecional, em que ficaram suspensas todas as diligências de entrega judicial da casa de morada de família (artigo 6.º-A).

O artigo 8.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, consagrou um regime extraordinário de proteção dos arrendatários, em que, entre outras, ficou suspensa, até 31 de dezembro de 2020, a execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado (alínea e)).

Porém, nenhum dos diplomas esclarece que estes regimes se reportam apenas às execuções em curso e não a novas execuções.

Há quem entenda que a dita alínea e) não traduz uma medida de proteção dos arrendatários, mas antes visa regular as execuções hipotecárias ainda não requeridas e que versem sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado.

O artigo 6.º-A da Lei n.º 16/2020 aplicar-se-ia às execuções em curso que ficam suspensas até que cesse o período de vigência do regime excecional e transitório e o artigo 8.º.e) da Lei n.º 1-A/2020 aplicar-se-ia a todas as execuções ainda não requeridas e que versassem sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado (HPPE).

Também há quem defenda que com a alínea e) do artigo 8.º, o legislador pretendeu suspender até 31 de Dezembro todas as execuções relativas a HPPE e que estaríamos perante um lapso legislativo, uma vez que o aí previsto contradiz o disposto no artigo 6.º da Lei n.º 16/2020.

Para ultrapassar esta questão apurámos que em diversas execuções em curso, o agente de execução requereu ao Juiz que esclarecesse se a instância executiva prossegue ou se suspende, tendo sido proferidos despachos a ordenar a suspensão da entrega, caso a venda viesse a ocorrer.

Analisada a questão, concluímos que nenhuma das alternativas deve ser considerada e que inexiste qualquer lapso ou incongruência.

De facto, não vemos por que motivo no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório as execuções já requeridas em que foi penhorada a casa de morada de família podem prosseguir até às diligências de entrega e, em contrapartida, até 31 de Dezembro de 2020, não podem ser requeridas novas execuções hipotecárias sobre imóvel que constitua HPPE. Também não se perceberia por que, o legislador se refere à casa de morada de família no que toca às execuções em curso e, no que respeita às novas execuções, se refere a imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado. Não se compreenderia ainda por que razão os prazos são diferentes: por um lado, até que cesse o decurso do período de vigência do regime excecional e transitório e, por outro, até 31 de dezembro.

O lógico será submeter, quer as execuções em curso, quer as novas execuções – respeitantes à casa de morada de família –, ao mesmo regime: podem prosseguir ou ser requeridas até à fase da diligência de entrega.

Quando muito poderia o legislador definir que o mutuante não poderia requerer novas execuções hipotecárias que incidam sobre a casa de morada de família, se o contrato de mútuo tivesse entrado em incumprimento depois de declarada a pandemia e como consequência desta. Mas, estas situações já estão salvaguardadas pelo Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março.

Assim, concluímos que o regime previsto no artigo 6.º-A da Lei n.º 16/2020 se refere quer às execuções em curso, quer a novas execuções relativas a créditos não abrangidos pela moratória.

Relativamente ao artigo 8.º.e) da Lei n.º 1-A/2020, a interpretação mais correta é a que vai no sentido de que, tendo em vista a proteção do arrendatário nas situações do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017 (em que o mutuário deu de arrendamento o imóvel que adquiriu para habitação própria e permanente), ficam suspensas até 31 de dezembro as execuções hipotecárias requeridas e ou a requerer contra o respetivo senhorio, situações em que, atingindo-se a fase da venda, o contrato de arrendamento caducaria e haveria, por isso, a obrigação de entrega do imóvel por parte do arrendatário.

Com esta interpretação fica claro que não existe diferença entre as execuções hipotecárias em curso e as execuções hipotecárias a requerer; diferença que só teria sentido no que toca aos créditos hipotecários cujo reembolso foi afetado pela Covid-19, mas que já estão salvaguardados pela moratória prevista no Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março.

  • Joana Clemente
  • Sócia da Sousa Guedes, Oliveira Couto & Associados
  • Teresa Cabral Rego
  • Associada da Sousa Guedes, Oliveira Couto & Associados

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