A Justiça não é apenas os tribunais

  • Rita Alarcão Júdice
  • 13 Janeiro 2025

Eu sei o que fazer para que a Reforma da Justiça não tenha resultados: é fazer anúncios de planos estratégicos. E também sei o que fazer para que Justiça seja reformada: resolver os problemas um a um.

Há quatro dias, pouco depois da meia-noite, uma mulher de 46 anos foi morta pelo marido, em sua casa, no Barreiro, à frente dos seus filhos menores, de 6 e 14 anos. Foi degolada e ferida na barriga a golpes de faca e de tesoura. Chamava-se Alcinda Cruz.

Enquanto isso, alguns dos presentes preparavam a mais importante cerimónia do ano judicial. Aqui estamos. O que temos a dizer aos filhos de Alcinda Cruz? Nada do que aqui se diga vai salvar a vida desta mulher, que tinha dois filhos para educar e ver crescer. Mas o que tem a Justiça a dizer a estes filhos, aos avós, aos tios, aos primos, aos amigos, aos professores dos filhos, aos vizinhos, a outras mulheres vítimas de violência doméstica, a todos nós que vimos as notícias?

A queixa que Alcinda Cruz apresentou em 2022 foi arquivada no ano seguinte. As palavras bonitas sobre a Justiça já foram todas inventadas e já foram todas ditas. Encaremos então as palavras duras.

Muitas pessoas pensam que a violência doméstica é apenas uma questão familiar, e até se envergonham de serem vítimas, o que as leva a sofrer em silêncio. Mas a violência doméstica não é uma questão familiar. É um crime, e dos mais graves, que precisa de ser denunciado, investigado, reprimido e, acima de tudo, evitado. Alcinda Cruz é a grande ausência, e o grande silêncio, nesta sala e nesta cerimónia.

Na expressão “violência doméstica” há sempre uma referência em falta que é “crime”, “crime de violência doméstica”. E quero chamar especial atenção para este facto porque “As palavras são também ações”. Transcendem a comunicação, são capazes de moldar comportamentos.

As vítimas de crimes devem ocupar um lugar cimeiro do sistema judicial. E não falo só das vítimas do crime de violência doméstica, mas das vítimas de todos os crimes contra as pessoas ou contra o património

Também muitas vítimas de crimes económicos e financeiros ficam com as vidas desfeitas. Também o Estado, e, por conseguinte, todos nós, cidadãos que pagam impostos, somos vítimas colaterais de tais crimes. A criminalidade económica e financeira é uma ameaça ao desenvolvimento socioeconómico do Estado. Retira, direta e indiretamente, recursos, não só porque os subtrai da economia, como também porque exige meios ao erário público para ser investigada. A criminalidade económica compromete a credibilidade do Estado e repele o investimento.

Este mês fica concluído o trabalho que reformula o instituto da perda alargada de bens, conhecido como “confisco” de bens obtidos pela via da corrupção.

Paralelamente, vamos criar um grupo de trabalho que se vai debruçar sobre matérias de promoção da celeridade processual e de combate aos expedientes dilatórios.

Falamos, especificamente, da fase da instrução no processo penal, do reforço dos poderes do juiz na gestão processual e de outras alterações ao Código de Processo Penal – por exemplo, em matéria de recursos.

Neste preciso momento, lá fora, há uma vigília silenciosa convocada pelos Sindicatos dos Oficiais de Justiça. É uma forma democrática e legítima de protesto.

Mas os Oficiais de Justiça já tiveram provas da determinação e da boa-fé do Governo em resolver os problemas da classe nos últimos meses: no aumento do Suplemento de Recuperação, decidido e pago logo em 2024, na revisão do Estatuto Profissional, em curso, e no recrutamento de quase 600 novos profissionais em apenas seis meses.

Os funcionários judiciais sabem que têm na Ministra da Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do seu trabalho, que move montanhas para que os Tribunais tenham computadores, sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de acesso, salas onde não chova.

Eu sei o que fazer para que a Reforma da Justiça não tenha resultados: é fazer anúncios de grandiosos “planos estratégicos”.

E também sei o que fazer para que Justiça seja reformada: resolver os problemas um a um, mesmo que não sejam imediatamente percetíveis para o cidadão.

Uma das reformas mais importantes, e que já está a dar resultados, é a da tramitação eletrónica do inquérito no processo penal. É uma medida quase invisível, mas que tem grande impacto na vida das secretarias dos Tribunais. Entrou em vigor há um mês.

Neste período, deram entrada quase sete mil peças processuais e foram feitas 22 mil notificações sem papel. Mas não é só a poupança de papel que nos move. É o tempo que se poupa, podendo fazê-lo com comunicações seguras e fidedignas.

Num mês, poupámos 238 dias de trabalho de um Oficial de Justiça: são mil e 665 horas, ou seja, oito meses de trabalho. É tempo que pode ser alocado a outras tarefas, também úteis e necessárias. Poupa-se tempo, ganha-se eficiência e celeridade.

A Justiça tem muitos problemas, não tantos como diz quem a quer enfraquecer, mas também não tão poucos para que tudo possa ficar na mesma.

Esperamos ter mais candidatos à magistratura num futuro próximo, com as novas regras de acesso ao Centro de Estudos Judiciários e com a abertura de um novo Polo em Vila do Conde já em 2025. A aprovação das novas regras, conseguida em tempo muito curto, foi um dos melhores exemplos do esforço legislativo do Governo para termos a lei a tempo do próximo curso.

Temos dado a devida atenção ao futuro da Magistratura: está em circuito legislativo um Projeto de Proposta de Lei que altera os Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a Lei Orgânica do Sistema Judiciário.

Um dos problemas mais imediatos que pretendemos resolver com esta Proposta de Lei é o do rejuvenescimento do corpo de juízes conselheiros. Propomos alargar, aos magistrados mais jovens, o acesso ao concurso para o Supremo Tribunal de Justiça. A nova regra vai trazer mais estabilidade, reduzir a indesejada rotatividade e colmatar a saída de muitos graduados, que se encontram em idade próxima da jubilação.

Outra questão que atacámos desde cedo foi a das assessorias nos Tribunais. Encontra se em fase de produção legislativa adiantada um projeto de Decreto-Lei que vem regular de forma global e sistematizada as assessorias em todos os Tribunais, tendo-se introduzido desde já no projeto de alteração à Lei Orgânica do Sistema Judiciário e no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais as alterações necessárias à sua viabilização.

Em matéria de Acesso ao Direito e aos Tribunais, revimos, como prometido, a Tabela de Honorários pagos aos advogados oficiosos. E não nos limitámos a atualizar os valores das remunerações dos atos; procedemos também à sua especificação de acordo com as respetivas complexidades. Se há 20 anos a tabela não era revista, foi este Governo que a reviu e a aprovou.

Como sabem, o PRR da Justiça só permite que os fundos sejam utilizados em projetos de digitalização.

Não os enjeitamos: a Justiça precisa de ser modernizada, atualizada e equipada. Não me posso resignar a ouvir, como ouvi no Funchal, uma conservadora dizer que as conservatórias não têm correio eletrónico há mais de um ano.

O que temos feito?

• Num projeto PRR, em articulação com a Região Autónoma da Madeira e o IGFEJ, estamos a tratar da entrega de 110 computadores aos funcionários do Instituto de Registos e Notariado da Madeira.

• Já distribuímos cerca de 5.000 computadores a magistrados e a auditores de justiça.

• Estamos a desenvolver o eTribunal, que serve Magistrados, Mandatários, as Secretarias e os Cidadãos. Brevemente haverá interfaces mais rápidas, mais intuitivas e mais inovadoras.

No Ministério da Justiça, desde a equipa governativa aos organismos, todos estamos muito atentos à execução do PRR. Temos agora um ano para o fazer.

A Justiça não é apenas os Tribunais. A Justiça de que os cidadãos precisam inclui os tribunais, os registos, os centros educativos, os estabelecimentos prisionais, a investigação criminal, a formação de magistrados…

A Política de Justiça é definida pelo Governo. A gestão, a administração, os investimentos, a afetação de recursos, as prioridades legislativas e orçamentais cabem a quem foi eleito para governar, sujeitando-se ao debate, à discórdia, à negociação e ao escrutínio final dos eleitores.

O Ministério da Justiça exerce as suas competências, toma as decisões que lhe parecem mais adequadas e sujeita-se ao escrutínio técnico e político. É uma das regras do jogo democrático: decisores políticos gerem os recursos públicos e são avaliados, politicamente, pelo mérito das suas decisões.

Aos tribunais o que é da aplicação da Justiça, ao Governo o que é da Política de Justiça. Esta é a primeira vez que intervenho na sessão solene de Abertura do Ano Judicial, fazendo-o na qualidade de Ministra da Justiça. Antes de mim, outras mulheres estiveram neste e noutros lugares de relevo na Justiça Portuguesa. Em 2024, perdemos uma das melhores: Joana Marques Vidal, antiga Procuradora-geral da República, cuja morte não vem esbater o legado de independência, dignidade e de trabalho que nos deixou. Que o seu exemplo nos inspire a mudar a história de Alcinda Cruz com que iniciei esta intervenção e a darmos o melhor de nós a favor da Justiça do nosso país.

*Este texto é o discurso na íntegra da ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, na cerimónia de abertura do ano judicial que decorreu a 13 de janeiro de 2025.

  • Rita Alarcão Júdice
  • Ministra da Justiça

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