A mortalidade materna e a ideologia

O SNS tem um problema grave de gestão. Como todos os problemas de gestão, no público ou no privado, este ficou mais à vista quando começou a faltar dinheiro.

Setembro de 2017, a bastonária da Ordem dos Enfermeiro, em entrevista ao Público, avisa que “há blocos de parto fechados a partir de determinadas horas” e que “há grávidas a serem empurradas de hospital para hospital”.

Uns meses mais tarde, o mesmo jornal noticiava que a “falta de obstetras afecta assistência aos partos complicados”, mencionando que à falta de especialistas os hospitais já usavam médicos “de outra especialidade” para evitar fechar urgências.

Em Agosto desse ano, os ginecologistas e obstetras do hospital Amadora-Sintra ameaçaram demitir-se por “falta de condições para exercer o seu trabalho”. No hospital das Caldas da Rainha uma notícia apontava para o mesmo problema.

Uma pesquisa mais detalhada encontrará dezenas de notícias com falhas nos serviços de obstetrícia no SNS ao longo de 2018. Uma pesquisa detalhada também encontrará vários políticos erguendo a sua voz contra o uso de prestadores privados para colmatar as falhas. Chegados ao final de 2018, feitas as contas e Portugal teve a mais alta taxa de mortalidade materna dos últimos 40 anos, mais do triplo de mortes em relação ao que ocorreu no pico da intervenção da troika. Dezassete mulheres ao todo morreram em resultado de complicações durante a gravidez, parto ou pós-parto.

O jornal Público fez umas contas usando os dados no site do SNS e concluiu que sete das 17 mortes aconteceram em clínicas ou hospitais privados. Muitos socialistas respiraram de alívio (principalmente no Twitter*). Afinal, se descontarmos essas mortes, a taxa de mortalidade “no SNS” está “só” no dobro do que era no período da Troika e “só” quatro vezes mais do que em 2000. Em vez de Portugal ser o líder de mortalidade materna na União Europeia (UE), passará a ser o 3º ou o 4º, ainda atrás da Roménia e Bulgária. Acusar o SNS de falhas na prestação de serviços de obstetrícia que poderão ter levado aos números de mortalidade materna, apesar de elas terem sido largamente noticiadas ao longo de 2018, é “populista e demagógico”.

Este argumento tem vários problemas.

  1. O primeiro é que falhas no serviço privado e público têm implicações diferentes. A solução para falhas em estabelecimentos privados é estes deixarem de ser usados pelos utentes (ou, se as falhas forem graves, impedido de praticar pelo regulador). Já as falhas no prestador público, como não pode ser encerrado nem é de pagamento voluntário, são um problema político, um problema de todos que merece ser discutido politicamente. E os resultados de um problema político, sejam eles mortes ou tempos de espera alargados, têm responsáveis claros: os políticos que tomam as decisões e os ideólogos que lhes dão suporte.
  2. O segundo problema daquele argumento é que o SNS não é o sistema de saúde apenas dos que o usam num determinado momento. O SNS é um sistema pago por todos os portugueses e com responsabilidades pela saúde de todos. É também o único prestador com dimensão crítica geradora de valências para cuidar dos casos mais graves. É por isso comum, e esperado, que os casos mais graves ou urgentes acabem por ser seguidos ou tratados no SNS e que os privados, necessariamente mais pequenos, não tenham capacidade crítica para criar essas valências. Mas o que acontece quando o serviço de último recurso tem falhas graves? O que acontece quando as situações urgentes não têm um hospital com as valências e os recursos necessários para acompanhar esses casos? As pessoas acabam por ser acompanhadas em estabelecimentos, públicos ou privados, com valências abaixo do necessário. Quando isto acontece com demasiada frequência, em muitos casos acabará por ser fatal. Se foi isso que aconteceu em 2018, o relatório da DGS irá dizer, mas não é muito difícil antecipar que certamente teve peso nos números finais. Afinal, as falhas graves no SNS só não teriam impacto nenhum na taxa de mortalidade materna se o SNS fosse inútil para esses resultados, o que ninguém acredita ser verdade.

O SNS tem um problema grave de gestão. Como todos os problemas de gestão, no público ou no privado, este ficou mais à vista quando começou a faltar dinheiro. Há problemas de gestão de recursos humanos, de recrutamento e formação.

Os profissionais, com razão, estão desmotivados e insatisfeitos. Acima de tudo, pela forma como o serviço é prestado, há poucos incentivos internos a gerir melhor e cada vez menos espaço orçamental para o conseguir fazer.

Uma das potenciais soluções seria uma articulação mais próxima com os privados, através de cheques-consulta por exemplo, permitindo que ao SNS libertar recursos para se concentrar nos casos mais graves onde tem uma vantagem pela dimensão. Os privados têm um incentivo à eficiência que não existe no prestador estatal. Com o tempo, talvez pudessem também adquirir a dimensão crítica para tratarem de casos mais graves como acontece noutros países.

Infelizmente, cada vez que se critica o modelo de SNS, é-se acusado de querer acabar com a saúde pública. Qualquer melhoria no modelo de gestão tem que enfrentar todos os interesses corporativos mais as obsessões ideológicas.

Para muitos socialistas, o objectivo de prestação de cuidados de saúde de qualidade é secundário perante a obsessão de que sejam prestados por uma única entidade estatal e burocrática (com muitos funcionários públicos eleitoralmente dependentes e chefias para nomear). A abertura da prestação de serviços de saúde pública a outros modelos de gestão privada ou cooperativa, como acontece em alguns dos melhores sistemas de saúde na Europa (incluindo o alemão, o francês ou o holandês), é vedada pela cegueira ideológica e obsessão pelo controlo estatal de tudo o que mexe.

A saúde é um sector complexo que terá que viver sempre com financiamento público (sim, leram bem), e a garantia de cuidados na doença é um pilar de qualquer democracia liberal. A forma como esses cuidados são garantidos (por estruturas estatais, privadas ou mistas) é que deve ser objecto de discussão política e baseada em critérios de eficiência.

O inverno demográfico está à porta e, infelizmente, o SNS está longe de estar preparado. A situação vai ficar cada vez mais dramática se nada for feito para aproveitar melhor os recursos existentes (públicos e privados) e melhorar os modelos de gestão. Pensar que se pode melhorar a gestão de forma mágica sem alterar o esquema de incentivos e o próprio modelo de prestação de serviços de saúde é irresponsável. Mas enquanto a saúde estiver nas mãos de pessoas mais preocupadas com ideologia do que com a saúde das pessoas dificilmente se resolverá a situação.

A Direção Geral de Saúde até pode concluir que os números da mortalidade materna de 2018 foram apenas um acaso estatístico, um conjunto de coincidências infelizes todas no mesmo ano, mas nas actuais condições só por acaso os indicadores não continuarão negativos. Sem repensar o modelo de gestão dos cuidados de saúde, arriscamo-nos a continuar a ter muitos “acasos” trágicos destes.

* Para o leitor mais desatento, o Twitter é a rede social onde meia dúzia de pessoas politicamente comprometidas discutem e insultam-se mutuamente na expectativa, permanentemente falhada, de conseguir convencer alguém.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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