A nossa alegre casinha
O Estado que nos diz que a morada fiscal dos deputados é irrelevante no acesso aos subsídios é o mesmo que nos disse que a morada fiscal é decisiva para a matrícula das crianças em cada escola.
Qual é, afinal, a nossa alegre casinha? Depende. Tratando-se de deputados, os serviços da Assembleia da República vieram esta semana esclarecer qual é o seu entendimento sobre o endereço que conta.
A questão é importante porque, como se sabe, os representantes do povo podem receber subsídios diferenciados de alojamento, deslocação e alimentação se residirem fora da região de Lisboa. Tem sido um tema recorrente porque se vai descobrindo que alguns deputados indicam como sua habitação a que lhes permite maximizar o salário que levam para casa ao fim do mês.
Chamada a pronunciar-se sobre o tema a pedido de Ferro Rodrigues, presidente do Parlamento, a auditora jurídica da AR — e socorro-me da notícia do Público — considera que “o domicílio fiscal é, em regra e por imposição legal, o local de residência habitual do sujeito passivo das obrigações tributárias”. Mas é uma “imposição legal” que não se aplica aos deputados, claro. Porque, acrescenta o parecer, “podendo não haver coincidência entre o domicílio fiscal e o local de residência habitual”, o primeiro “não serve como critério para integrar os conceitos de residência e de residência efectiva” que correspondem, ao “local onde o deputado tem a sua existência organizada e que, como tal, lhe serve de base de vida”.
Portanto, a morada fiscal dos deputados é indiferente para o acesso aos subsídios. Penso que conviveríamos bem com este critério — o que conta é a residência efectiva — se ele fosse de alguma forma verificado. Mas isso não acontece, já que, diz o parecer, ”não incumbe aos serviços da AR averiguar (fiscalizar) qual é, na realidade, o local da residência efectiva (habitual) do deputado, sendo a ele que incumbe declarar, para os efeitos em causa, qual é, em cada momento, essa residência”.
Temos, portanto, uma atribuição de subsídios que depende apenas da vontade e declaração dos próprios beneficiários, que ninguém controla nem está interessado em controlar. Isto, só por si, já violaria todas as regras do bom senso e do decoro na utilização de dinheiro dos contribuintes. Mas o caso não fica por aqui.
Julgavam que o povo tem direito ao mesmo tratamento dos representantes do povo? Tirem daí a ideia porque o Estado que agora nos diz que a morada fiscal dos deputados é irrelevante no acesso aos subsídios é o mesmo que em Abril nos disse que a morada fiscal é o critério determinante no acesso das crianças a cada escola. Foi isso que o Despacho Normativo n.º 6/2018 passou a determinar para evitar que os malandros dos encarregados de educação pudessem dar uma morada diferente na matrícula escolar dos miúdos. O diploma esclarece, orgulhosamente, o propósito da exigência da morada fiscal às famílias: “garantia da transparência e combate à fraude”.
Não sei que dados temos que nos provem que a declaração de honra de um deputado sobre a sua morada é mais séria do que a declaração equivalente de um qualquer cidadão na matrícula dos filhos. Mas sabemos que há honestos e desonestos em qualquer profissão, estatuto ou condição social e que os deputados não são, certamente, uma excepção.
Com isto, sabemos também que o Estado e o legislador são canalhas: a arraia miúda é tratada como culpada e golpista até prova em contrário, merecendo toda a desconfiança por princípio; já a elite política, tem-se a si própria como uma casta superior, moralmente acima do povo e merecedora de qualquer ausência de dúvida sobre a sua total seriedade. Vamos esquecer que 8,3% dos deputados foram ou são arguidos desde 2015 para podermos seguir em frente sem nos rirmos.
Há outro exemplo sobre esta chocante dualidade de tratamentos. Esta semana ouvi da Procuradora-Geral da República que não há maneira de fiscalizar de forma permanente e eficaz as declarações de património e rendimento a que estão obrigados por lei os detentores de cargos públicos. Joana Marques Vidal, que falava num debate organizado pelo Portugal XXI, já mostrou que não teme incomodar quem quer que seja e é insuspeita de fazer fretes a políticos. Mas, justificava, são cerca de 14 mil declarações e não há meios para isso.
A PGR tem razão mas o problema não está nos recursos, que nunca serão suficientes se a forma como são feitas, registadas e arquivadas as declarações não forem alteradas. A questão está na absoluta falta de vontade política para criar condições para que este procedimento de alegada transparência deixe de ser uma anedota.
Repare-se na lei: “É vedada a transcrição em suporte informático do conteúdo das declarações, sem prejuízo de o Tribunal Constitucional poder organizar um ficheiro informatizado contendo os seguintes dados: identificação, cargo e número do processo individual do declarante, datas do início ou da cessação de funções, datas da comunicação daqueles factos pelas secretarias administrativas competentes e, eventualmente, da notificação a que há lugar em caso de não apresentação de declaração no prazo inicial e, bem assim, da apresentação atempada da declaração e ainda a referência identificativa das decisões proferidas no caso de falta dessa apresentação”.
Ou seja, os políticos recusam que as suas declarações sejam tratadas informaticamente e o Tribunal Constitucional pode, eventualmente, fazer uma espécie de “ficheiro índice” — se o faz ou não e que utilidade lhe dá é uma incógnita.
De facto, assim é difícil lidar com 14 mil declarações em papel, uma a uma, muitas preenchidas com letra ilegível. É um método que já não se usa a não ser quando os interessados desse atraso tecnológico premeditado são os próprios legisladores.
O mesmo Estado que ainda não descobriu as maravilhas da tecnologia para tratar 14 mil declarações de rendimentos dos políticos é o mesmo que trata mais de 5 milhões de declarações de IRS e 465 mil declarações fiscais de empresas regularmente. E nós sabemos como é: contribuinte que se atrase uma hora a apresentar a declaração ou a pagar o imposto tem multa certa. Sem falhas e sem contemplações, como tem de ser.
O fisco sabe sempre que compramos um carro e no mês certo lá vem a factura do Imposto de Circulação. Tal como a PSP sabe se temos ou não a inspecção do automóvel em dia e, não tendo, lá pagamos a multa. Milhões de contribuintes, centenas de milhões de operações sujeitas a prestação de contas e tributo, milhares de milhões de e-facturas. Tudo fiscalizado rigorosa e implacavelmente com sistemas informáticos poderosos, cada vez mais aperfeiçoados e automatizados.
Para o povo fez-se o e-factura. Para os representantes do povo “é vedada a transcrição em suporte informático do conteúdo das declarações”.
Os ideais republicanos e democráticos são muito bonitos e ficam bem em qualquer discurso. Mas, como pensarão os políticos que vão fazendo estas leis, também não convém abusar deles. Porque tenhamos juízo: onde é que se viu duvidar da palavra de um político?
O autor escreve segundo as normas do antigo acordo ortográfico.
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