A Segurança Social tem licença para extorquir
A administração pública está na idade das trevas, veste de negro, e é inimputável. Para perseguir vale tudo, mas para responder perante os cidadãos nada.
Há dias recebi uma “simpática” carta da Segurança Social, intimando-me para pagar uma dívida de 6.981,36 euros, sob a ameaça de penhora, devido a uma alegada falta de pagamento de contribuições sociais de trabalho independente entre Abril de 2016 e Dezembro de 2018.
Sumariamente, foram-me apresentados os meses faltosos, mas nem uma linha a explicar o enquadramento substantivo e legal da alegada falta. A carta vinha assinada pelo coordenador da secção de processo do Porto, Miguel Oliveira, e também pelo presidente do Instituto de Segurança Social, Rui Fiolhais. Sem mais, sem sequer um aviso prévio a solicitar esclarecimentos sobre a questão, eis que este vosso concidadão, Ricardo Arroja, ficou sob risco de penhora iminente, tratado como um delinquente. Tenho agora 30 dias para pagar a dívida que me imputam, sob risco de penhora e de vir a figurar nas listas públicas de devedores ao Estado, ou para impugná-la “nos termos do Art.º 203º do Código de Procedimento e de Processo Tributário com base nos fundamentos estabelecidos no Art.º 204º”.
Quem atendeu o senhor do correio foi a minha mulher que, tendo recebido a carta, leu no envelope a seguinte advertência: “Em caso de entrega a pessoa diferente do destinatário deve o distribuidor do serviço postal adverti-la expressamente do dever de pronta entrega ao destinatário, e de que se assim não proceder incorrerá em responsabilidade em termos litigados equiparados à litigância de má fé”.
O senhor do correio, depois de olhar para a minha mulher, talvez de forma misericordiosa, não a advertiu. Fez bem, mas o mal estava feito. Grávida de sete meses à espera do nosso quinto, a minha mulher ficou naturalmente com a tarde estragada. Ligou-me de imediato, não fosse vir a ser acusada de má fé, e deu-me as novidades. Só faltou uma nota a acusar de delinquência o miúdo que está para nascer. Já o pai, esse pobre coitado, em breve poderá estar na lista pública de devedores ao Estado.
Rapidamente identifiquei o equívoco da Segurança Social. Os serviços da Segurança Social que tratam das contribuições sociais sobre os rendimentos de categoria B (trabalho independente) simplesmente não se terão dado ao trabalho de cruzar informação com os serviços que tratam dos rendimentos de categoria A (por conta de outrem). Como eu acumulo rendimentos de categoria A e B desde Abril de 2016, desde então tenho pago contribuições sociais sobre A e, segundo as regras em vigor até Dezembro de 2018, estava isento (na íntegra) de pagar sobre B. Mas os serviços da Segurança Social funcionam como silos incomunicáveis entre si. E pimba, aqui vai lenha.
Todavia, conforme se lê no respectivo sítio na internet, a isenção é atribuída “oficiosamente (por iniciativa dos serviços de Segurança Social) se as condições que a determinarem forem verificadas dentro do sistema de Segurança Social”. É o caso. Os dados estão todos na Segurança Social directa.
Ainda na semana passada eu aqui escrevia sobre a relação de confiança entre os cidadãos e os agentes do Estado. Nem de propósito, fiquei agora a saber que a Segurança Social tem licença para extorquir o contribuinte. A situação é inqualificável e, ao mesmo tempo, é também anedótica. É inqualificável porque na Segurança Social directa consta toda a carreira contributiva dos contribuintes, pelo que, o próprio sistema deveria bloquear automaticamente os equívocos descritos antes. E é também anedótica porque, existindo registos informáticos, e estando ali à mão de semear (dos contribuintes e dos serviços, é claro), a sua correcção deveria ser imediata. Infelizmente, não é isso que sucede na prática.
Para além do protesto por via administrativa o cidadão pouco mais poderá fazer, porque em Portugal uma acusação formal contra o Estado, que seria apropriada, acaba num tribunal administrativo (que julga em causa própria) e fica anos sem resposta.
Depois de ter protestado por email junto do meu centro distrital, o do Porto, recebi um email de uma outra secção em Viseu (sim, em Viseu!) a dar-me nota de que o meu pedido de análise seria remetido ao meu centro distrital do Porto (!!), concluindo o email da seguinte forma: “Deverá V. Exª contactar-nos dentro de 60 dias para aferir do resultado da mesma. Adverte-se que o presente pedido de análise não tem a virtude de suspender o processo de execução fiscal”.
Incrédulo com a triangulação jurisdicional descrita no email e com o prazo de resposta de 60 dias, muito superior ao prazo de pagamento de 30 dias sob risco de penhora, solicitei à funcionária que me indicasse a entidade junto de quem deveria impugnar o processo de execução fiscal. À hora a que escrevo este texto, continuo à espera de resposta. Corro, portanto, o risco de impugnar o processo junto de uma entidade errada porque a missiva original não explicita junto de quem o devo fazer. A habilidade de quem escreve as cartas enviadas aos contribuintes também vale dinheiro.
Esgotada a via electrónica, passei ao telefone. Falei primeiro para um número de uma secção de processo executivo que me disse que só tratava da cobrança de dívidas, mas não da apreciação do conteúdo do processo. Para tal teria que contactar o centro distrital do Porto, a entidade que o moveu, mas que para o fazer teria de ligar para um outro número. Assim fiz. Neste segundo número, a linha de apoio geral da Segurança Social, disseram-me que também não me podiam esclarecer sobre a matéria em questão, mas que me marcariam uma reunião presencial no referido centro distrital do Porto. Ficou para o próximo dia 11 de Novembro no Porto, na rua do Rosário às 9h00, quiçá o tempo suficiente para os seus responsáveis receberem o processo vindo de Viseu (!), sendo que o prazo de impugnação do processo terminará poucos dias depois. Ou seja, até lá, terei de impugnar o processo (depois de descobrir junto de quem o fazer) e informar a secção de processo responsável pela execução da impugnação, já que este Titanic é imparável. Entretanto, terei perdido tempo, paciência e, provavelmente, também dinheiro porque isto está feito para advogados. Relação de confiança? Foi-se, esfumou-se, como é evidente.
Quando se fala do Estado a espezinhar os cidadãos, é desta duplicidade de critérios e de meios que falamos, contra os quais o cidadão comum pouco pode fazer.
Primeiro, o cidadão é tratado como um delinquente. O que é infame. Num Estado democrático, antes de serem movidos processos de execução fiscal, as pessoas deveriam ser notificadas para prestar esclarecimentos. Mas não, o cidadão é atacado e intimidado sem mais. É a nossa tradição inquisitorial, na figura dessa nódoa cultural chamada direito administrativo.
E segundo, sendo a forma tão importante quanto o conteúdo neste tipo de processos, a maior parte das pessoas, ao receber uma carta que remete para o código do procedimento e processo tributário, nem sequer entende o que lhes está a ser dito. Têm que recorrer a um advogado e gastar recursos. Junto com as instruções de pronto pagamento da Segurança Social, tudo isto representa outra forma de intimidação administrativa sobre os cidadãos.
Eu, que conheço os meus direitos e garantias, serei uma excepção, mas no final estarei como a Polónia contra a Alemanha nazi. Eu a cavalo e do outro lado a divisão panzer. Ou, quanto muito, como o homem-tanque de Tiananmen.
A inépcia tecnológica da administração pública, quando lhe convém, e o seu alheamento perante os cidadãos, a quem deveria servir, representa o esmagamento do cidadão pelo Estado. É o Estado totalitário, a antítese do que se espera numa democracia, sobretudo na era do governo digital.
O cidadão é abusado, lesado e vilipendiado. Tem de apresentar reclamação documental, judicial e presencial quando o erro e os elementos de prova estão ali no próprio sistema à vista de todos os interessados. A situação é ridícula e revoltante, como também é ridícula e revoltante a forma como as pessoas são empurradas de telefone em telefone, de email em email, de funcionário para funcionário, sem que alguém dê respostas completas e definitivas.
A administração pública está na idade das trevas, veste de negro, e é inimputável. Para perseguir vale tudo, mas para responder perante os cidadãos nada. Nestes serviços públicos, o público é de facto uma maçada e dele não resta senão desconfiar. O estado geral é um de desorganização e o sistema está feito para lidar com canalhas. E isto, infelizmente, também diz muito acerca de quem o concebe.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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