A sua casa não é a sua reforma

Os portugueses têm uma adoração por betão: a residência principal pesa quase 50% da sua riqueza. E muitos veem a casa como um garante de uma futura reforma. Mas será que fazem bem? Eu acho que não.

A casa é o maior e o principal investimento de muitas famílias. A maioria, cerca de 70% (segundo os resultados dos Censos 2021) é proprietário ou coproprietário do imóvel onde vive. Os portugueses gostam de ter casa. É uma questão financeira (o mercado de arrendamento continua a ter muitos problemas), mas é sobretudo uma questão cultural que se reflete claramente na composição da riqueza das famílias. Mas será que fazem bem em pensar assim?

De acordo com o trabalho académico “A riqueza das famílias em Portugal e na área do euro”, desenvolvido por quatro economistas do Banco de Portugal em 2021, a residência principal pesa quase 50% do total de ativos e os outros imóveis quase 20%” na composição da riqueza dos portugueses.

Os investigadores revelam ainda que a dívida do agregado familiar, que equivale a cerca de 12% dos ativos, “é maioritariamente garantida por imóveis”. Isto significa que o portefólio de uma família tradicional portuguesa é feito de muito betão.

Parte da “adoração” por cimento é dado por uma ilusão de que a “casa não desvaloriza”, desde logo porque acompanha a evolução da inflação. Muitos consideram até que a casa poderá ser o garante de uma reforma tranquila quando os “Anos Dourados” chegarem. Dois erros neste raciocínio: não só as casas desvalorizam (como se viu na crise de 2008), como a reforma ou um complemento de reforma, pela sua própria natureza, pressupõe um rendimento que possa ser utilizado para pagar as contas quando se afasta da vida ativa – a não ser que esteja no horizonte vender a casa onde sempre viveu assim que fecha o ciclo profissional.

Independentemente da adoração por betão por parte dos portugueses, o certo é que este sentimento não é transversal a todas as famílias. E aquelas que se afastam da síndrome do betão tendem a apresentar carteiras mais recheadas.

Os mais ricos não gostam assim tanto de casas

Segundo um estudo de Edward Wolf sobre a formação de riqueza das famílias norte-americanas nos últimos 100 anos, as pessoas mais abastadas (em grande medida aquelas que enriqueceram a trabalhar e não por heranças) têm menos dinheiro investido em ativos imobiliários relativamente a capital investido em ações e a outros ativos financeiros.

Um outro estudo realizado por George William Domhoff da Universidade da Califórnia concluiu que 90% dos norte-americanos raramente investe mais de 20% da sua riqueza em ações ou fundos de investimento. Em vez disso, aplicam a maior parte do seu dinheiro na aquisição da sua habitação, em depósitos a prazo ou na contratualização de seguros de vida. Porém, quando é analisado o 1% da população mais rica dos EUA, 64% deste grupo concentra quase dois terços do seu capital em ações e em participações de negócios.

Estes dois estudos revelam que, enquanto a maioria da população americana apostou fortemente as suas poupanças na indústria do betão, em depósitos a prazo e em seguros que pouco deram a ganhar, os mais ricos investiram em ações e outros ativos financeiros que os tornaram ainda mais ricos – isto já retirando da equação aqueles que tiveram a sorte de herdar impérios feitos.

A criação de riqueza está fortemente ligada aos ativos em que as poupanças são aplicadas e no tempo que esses investimentos “amadurecem”. E isso é explicado pelas diferentes taxas de rendibilidade que cada um dos diferentes ativos oferece aos investidores ao longo do tempo.

Por exemplo, no caso do imobiliário, a mais conhecida (e reconhecida) série de preços reais do imobiliário criada por Robert Shiller e Karl Case, que estudaram o mercado imobiliário desde 1890, revela que nos últimos 120 anos (até 2010) as casas nos EUA valorizaram apenas 0,3% acima da inflação por ano. E se fosse retirado da equação os dois períodos de maior subida do mercado imobiliário (final da década de 1940 e década de 2000), poderia ter-se assistido a uma variação negativa no preço das casas neste período. Mas não nos fiquemos por esta série.

Recentemente, Ben Carlson, analista financeiro e autor do blogue Wealth of Common Sense, comparou o desempenho das ações, das obrigações e do mercado imobiliário e concluiu que entre 1928 e 2021 as ações valorizaram, em média, 10% ao ano, as obrigações 4,8% e os imóveis 4,1%. Mas descobriu mais.

Colocando na equação a inflação, os dados dos últimos 93 anos revelam que apesar de o preço das casas subir mais quando a inflação está a subir (daí se dizer que as casas são um ativo protegido pela subida generalizada de preços), as ações, apesar de sofrerem mais em períodos de subida da inflação, oferecem sempre ganhos acima de todos os outros ativos, quer a inflação esteja a subir ou a descer.

A história mostra-nos que o mercado imobiliário, como qualquer outro mercado, tem oscilações e os imóveis também podem perder valor. Mas isso não significa que a compra de casa deva ser eliminada da folha de objetivos de uma família.

Um imóvel é um importante ativo na acumulação de riqueza. Mas é muito importante que seja enquadrado numa carteira de investimentos que respeite os princípios de uma diversificação de risco e de ativos.

Efeito da inflação no desempenho dos ativos (entre 1928 e 2021)

Texto adaptado da sexta edição do Portefólio Perfeito, a newsletter de finanças pessoais do ECO, que pode subscrever a partir desde link

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