Acidentes de (Tele)Trabalho

  • Ricardo Lourenço da Silva
  • 24 Março 2022

O recurso ao teletrabalho conheceu um aumento súbito e progressivo e, por consequência, a nova dimensão desta realidade conduziu ao ressurgimento de velhas questões.

Face à evolução tecnológica e à pandemia assistiu-se a um aumento súbito e progressivo do recurso ao teletrabalho e, por consequência, a nova dimensão desta realidade conduziu ao ressurgimento de velhas questões no que concerne à segurança e saúde dos trabalhadores e ao enquadramento dos acidentes de trabalho “a partir de casa”.

Dito isto, perante uma realidade em que milhares de trabalhadores se encontram no seu próprio domicílio, assume particular pertinência (e urgência) procurar as respostas oferecidas (ou não) pela nossa legislação, nos casos de acidente sob a modalidade de teletrabalho.

Começando, desde logo, por uma questão complexa: onde (e como) se delimita, de facto, a fronteira entre o acidente doméstico, de cariz pessoal, portanto, e o acidente de trabalho?

Para o teletrabalhador, onde começam e terminam o local de trabalho, o tempo de trabalho e aquelas deslocações durante as quais a lei determina que um acidente se presuma de teletrabalho (vide artigo 9.º da LAT – Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro)?

Dentro das possibilidades infinitas de infortúnios que podem suceder em contexto de teletrabalho, como qualificar a queda de um objeto (um computador portátil, um ecrã, etc.) que magoou o trabalhador? A queimadura por ter vertido o chá enquanto participava numa reunião via “Microsoft Teams”? O pé torcido no trajeto entre a sua casa e um restaurante para tomar a sua refeição? Uma queda no percurso da cama para o seu escritório em casa ou, outrossim, para a cozinha para tomar o pequeno-almoço?

O Tribunal da Relação do Porto, num inovador Acórdão proferido em 2020, classificou como acidente de trabalho aquele que ocorreu quando a trabalhadora, ainda dentro da sua residência, caiu das escadas que dão diretamente para a garagem onde se encontrava o seu veículo automóvel. Para o efeito, considerou que um acidente, para ser considerado como acidente in itinere, não tem obrigatoriamente de acontecer na via pública, bastando que ocorra entre o trajeto que liga a habitação do sinistrado e as instalações do local de trabalho desde que tal trajeto seja o normalmente utilizado e durante o período normalmente gasto pelo trabalhador.

Muito recentemente também, um Tribunal superior alemão considerou “acidente de trabalho” a queda do quarto para o escritório em casa, uma vez que o trabalhador se estava a deslocar para o seu posto de trabalho.

A caracterização de um acidente como de trabalho de trabalho in itinere pressupõe sempre que exista uma ligação ao trabalho, isto é, uma conexão ou causalidade com a prestação laboral ou, pelo menos, com a relação laboral.

O propósito da lei é proteger o trabalhador do risco de ocorrência de acidente nos percursos –normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador – que carece de fazer para prestar o seu trabalho à entidade empregadora, no local por esta definido e dentro do horário que por aquela lhe esteja fixado, obrigações a que está vinculado pelo contrato de trabalho subordinado.

Deste modo, e tendo em conta essencialmente a mais recente tendência jurisprudencial nacional a este respeito, parece-nos que os N/Tribunais parecem “abrir portas” para admitir que um infortúnio no percurso do quarto para a zona de trabalho em casa ou para cozinha para tomar o pequeno-almoço, poderá ser enquadrado como sendo um acidente de trabalho, desde que a empresa tenha comunicado à seguradora que aquele é o seu local de trabalho.

Sem prejuízo do ora exposto, levantam-se, ainda assim, algumas dúvidas bastante pertinentes e atuais, uma vez que a legislação não refere via pública ou espaços comuns. Será que admitir, por isso e sem mais, a existência de acidentes de trabalho em espaços privados poderá extravasar o espírito da Lei? Repare-se que a LAT (nos seus artigos 8.º e 9.º) não contém qualquer previsão similar à que existia previamente na alínea a) do número 2 do artigo 6º do revogado Decreto-Lei n.º 143/99, de 30.04

Aqui chegados, cumpre-nos deixar quatro brevíssimas notas práticas:

  1. Caso o trabalhador esteja em regime de teletrabalho, é essencial que o empregador comunique à seguradora a morada da residência do trabalhador e o tempo de trabalho (sendo que, caso tal se verifique, deve ser indicado o horário flexível acordado) – devendo fazer constar do acordo escrito de teletrabalho a menção expressa a esse local e tempo de trabalho;
  2. Desde 01 de janeiro de 2022, com a entrada em vigor das alterações ao regime do teletrabalho, que o seguro de acidentes de trabalho e doenças profissionais se aplica às situações de teletrabalho – portanto, prevendo os seguros a comunicação de alteração de local de trabalho, recomendamos que as empresas diligenciem por comunicar o local de trabalho dos teletrabalhadores;
  3. Caberá aos empregadores definir expressamente instruções ou diretrizes mínimas sobre as condições de segurança e saúde, nas quais o trabalhador deverá desempenhar a sua atividade “em casa”, assegurando-lhe ainda a sua participação, no sentido de garantir esse mínimo;
  4. Uma vez que os deveres recaem sobre ambas as partes, parece-nos que o empregador poderá exigir do trabalhador que se comprometa (sob termo de responsabilidade, p. ex) com o cumprimento dessas instruções e que comunique ao empregador, de imediato, quando se encontre perante qualquer risco não identificado, de modo a contribuir assim com os seus deveres de cooperação e comunicação que a lei lhe impõe.

Perguntará (e bem) o leitor: e qual é a importância destas notas práticas para as empresas e para os trabalhadores? É que, assim, os eventuais infortúnios que o “teletrabalhador” sofra no seu “novo” local de trabalho (na quase totalidade dos casos, o seu domicílio), e durante a sua execução, terão de se presumir acidentes de trabalho para os efeitos aqui discutidos. Ainda que, posteriormente, possam ser avaliados sob o ponto de vista de negligência ou dolo, por parte do sinistrado, e de incumprimento das instruções que lhe foram impostas e com as quais se via obrigado a cumprir.

Além disso, consideramos que se deve estender igualmente tal conceito às deslocações que o trabalhador poderá ter de fazer para se alimentar (ida a supermercados, restaurantes, cafés, que aqui se enquadram como os «locais de refeição» para efeitos da LAT), nos intervalos ou pausas do seu trabalho, pois que já anteriormente se encontravam cobertas, quando prestava o seu trabalho nas instalações da empresa.

Cumpre reforçar que a falta de rigor na formalização do regime de teletrabalho, através da celebração de acordos escritos com os trabalhadores, poderá ditar zonas “cinzentas” e, consequentemente, “escancarar portas” para que as seguradoras recusem a respetiva cobertura do seguro.

Além destas situações, parece-nos que os modelos híbridos podem complicar todo o processo já de si bastante complexo. Atente-se na situação em que é acordado que o trabalhador pode ficar um determinado número de dias em casa e outros no escritório e que é o próprio que pode escolher os dias em que fica em casa ou que irá ao escritório.

Nestes casos, como bem se compreende, não é viável a empresa comunicar no próprio dia [ou mesmo no(s) dia(s) anterior(es)] à seguradora que “hoje” o local de trabalho é “em casa”, mas, em princípio, “amanhã” é no “escritório”, mas que confirma esta informação melhor “amanhã” que é quando o trabalhador vai, de facto, decidir onde fica a trabalhar…

Estas situações em que não esteja claro se naquele dia o local de trabalho era a sua residência ou o escritório, podem ditar que a seguradora considere que determinado evento ocorrido fora do local comunicado à segurada para aquele dia não está, por isso, coberto pelo seguro.

O mesmo sucedendo para situações em que existe flexibilidade horária, em que a seguradora pode colocar em causa se aquele infortúnio está (ou não) coberto pelo seguro – por isso, nestes casos, entendemos ser absolutamente crucial que se comunique previamente à seguradora eventuais horários flexíveis acordados com o trabalhador.

O “estado de arte” mostra-nos que seria de elementar utilidade proceder a uma redefinição dos conceitos, alargando-os até onde o novo cenário o justificasse, para desta forma se contribuir para a segurança e saúde dos teletrabalhadores e para o justo apuramento das responsabilidades das partes envolvidas (empregadores, seguradoras e trabalhadores), em casos de acidentes de (tele)trabalho.

Em razão do ora exposto, entendemos, assim, que a extensão da noção de acidente de teletrabalho já prevista no artigo 9.º da LAT deverá passar a integrar os eventos ocorridos durante o teletrabalho, sendo que, em consequência disso, passaria a existir a aplicar-se uma presunção de causalidade, “juris tantum” entre o acidente e as suas consequências, nos termos do n.º 1 do artigo 10.º da LAT.

  • Ricardo Lourenço da Silva
  • Advogado sénior da Antas da Cunha Ecija

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