António Costa, a simbiose entre o calculismo e o instinto de sobrevivência
Inteligente, perspicaz, audaz, mas igualmente calculista, com rasgos de oportunismo e muito ambicioso. Na semana em que perfaz 250 semanas como primeiro-ministro, eis o retrato de um sobrevivente.
António Costa completa 250 semanas como primeiro-ministro. Um número redondo que serve de pretexto para o caracterizar. As mesmas características que são aplaudidas e elogiadas por quem o apoia e admira, são aquelas que, por outro lado, são criticadas pelos demais.
Tem como principais trunfos o foco e a ambição. Os fins que define – relativamente às suas próprias ambições, e não necessariamente do país – são claros, enquanto os meios para os atingir vão sendo trabalhados à medida das circunstâncias. Dentro da esfera democrática é, quase, agnóstico em relação ao modo de alcançar tais objetivos. Esse desprendimento, frieza e quase desprezo pelas “regras naturais” da sociedade e política, permitiram-lhe arquitetar a famosa geringonça em 2015. Nem eu, nem a maioria dos portugueses, inclusive apoiantes do PS, acreditavam que esta solução governativa aguentasse até ao fim da legislatura. Uns consideram hoje que foi uma solução positiva, outros – como eu – estão convictos do contrário. Mas, independentemente das divergências de opinião quanto à qualidade de governação, há algo que todos tendem a concordar: este modelo de governação só foi possível graças a um político e negociador muito hábil, único no atual panorama político português.
Se, por um lado, é conotado por representar a ala esquerda do PS, por outro, Costa é aquilo que os eleitores do centro à esquerda quiserem que ele seja para se manter como primeiro-ministro. Neste ponto, faz lembrar Paulo Portas quando era líder do CDS. Apesar de afirmarem convictamente algumas posições ideológicas, facilmente alteram o sentido de atuação se for conveniente. Basta lembrar que, no passado, o próprio António Costa já nos deu algumas interessantes lições de liberalismo. Em 1997 (ano longínquo, eu sei) disse que “hoje em dia, nenhum partido socialista da Europa entende que as nacionalizações são instrumentos adequados à execução da sua política”. Entretanto, mudou de ideias. Mais recentemente, em 2013, afirmou que “os princípios que o liberalismo constitucionalizou no século XIX [serviram] precisamente para proteger o cidadão e o indivíduo relativamente ao poder do Estado: o princípio da confiança, o princípio da proporcionalidade, o princípio da igualdade formal do cidadão perante a lei“. No entanto, a governação de António Costa revela precisamente o contrário: o Estado está cada vez mais forte, mais interventivo, e o cidadão mais fraco, mais submisso.
Hoje, o primeiro-ministro mantém o governo à custa da relação construída com a extrema-esquerda desde a legislatura anterior. Contudo, não afasta o PSD do seu horizonte porque não sabe se poderá necessitar dos sociais-democratas no futuro. As peças no seu xadrez são jogadas com cautela. Se tiver de se aproximar da direita em prol da estabilidade governativa (ou melhor, da sua estabilidade enquanto primeiro-ministro), fá-lo-á, sem ressentimentos, sem qualquer complexo ideológico. Tem uma forte capacidade de transformar opositores em aliados, comprometendo-os com as decisões tomadas, reduzindo, por isso, espaço de crítica.
A destreza com que gere a sua exposição mediática é invejável. Fica com os louros, mas garante que nos temas mais sensíveis há sempre uma figura mais proeminente do que ele, para o caso de algo correr mal. Os incêndios de 2017 em Pedrógão Grande conduziram à demissão da ministra Constança Urbano de Sousa. A própria ministra terá confessado que “logo a seguir à tragédia de Pedrógão pedi [ao primeiro-ministro], insistentemente, que me libertasse das minhas funções e dei-lhe tempo para encontrar quem me substituísse”. Ora, o incêndio deflagrou a 17 de junho e a demissão da ministra confirmou-se apenas a 18 de outubro. O primeiro-ministro deixou-a, por isso, quatro meses a “queimar em lume brando”, servindo de escudo político face à desastrosa atuação nestes fogos. Em 2018, o desaparecimento e reaparecimento das armas de Tancos fez cair o ministro da Defesa, Azeredo Lopes. O primeiro-ministro não sabia de nada, naturalmente. Durante a pandemia, recebeu os louros do “milagre português”, por Marcelo Rebelo de Sousa. Aproveitou para participar em vários programas televisivos de entretenimento num ambiente mais amigável e foi aplaudido pelas intervenções ponderadas. Paralelamente, o desgaste e as críticas incidiram na Ministra da Saúde e na Diretora Geral da Saúde, ambas escolhidas, direta ou indiretamente, pelo próprio António Costa. Mais recentemente, na negociação com a TAP, o primeiro-ministro deu o palco a Pedro Nuno Santos. Coube ao ministro das infraestruturas as declarações polémicas, o braço-ferro, as decisões mais criticáveis.
O que têm em comum todas as situações descritas? António Costa remeteu-se para um segundo plano, deu a frente de batalha aos seus pupilos, armados em mártires porque, uma vez mais, o primeiro-ministro revelou uma enorme capacidade de leitura política e de antecipação de crises, das quais não quer fazer parte. Perante grande parte da opinião pública, sai quase incólume de algumas destas polémicas. Quando, ainda assim, algo lhe foge de controlo, usa o seu último recurso: adota uma estratégia de vitimização (ameaçando demitir-se, por exemplo, como aconteceu perante a polémica relacionada com o diploma sobre a contagem dos anos de serviço dos professores).
Referi, em 2019, que “António Costa não tem, nem nunca demonstrou ter (e provavelmente nem quer ter), uma visão reformadora para o país”. Gere o curto prazo, apaga os incêndios, camufla as crises. Para ele, a instabilidade é um terreno fértil para atuar. É um contexto em que António Costa revela, melhor do que os outros, os seus instintos de sobrevivência. Após quatro anos a controlar as contas públicas e a aproveitar – ou desaproveitar, depende da perspetiva – o contexto macroeconómico favorável, a segunda legislatura representaria um grande desafio para Costa. Exigir-se-ia, agora, muito mais do governo. E eis que surgiu a pandemia da COVID-19. António Costa voltou à sua zona de conforto, vestiu o fato de bombeiro.
Até onde vai a sua ambição? Não sei, mas não será difícil antecipar alguns objetivos que pairam na sua cabeça. Primeiro, tornar-se no primeiro-ministro em democracia que esteve mais tempo em exercício, ultrapassando os 10 anos de governação de Cavaco Silva. Depois, ser Presidente da República. Os dois objetivos cruzam e poderão condicionar-se mutuamente. Haverá eleições presidenciais em 2026, um ano antes do término de uma possível terceira legislatura como primeiro-ministro. Durante este percurso, outros voos internacionais poderão esperá-lo. No entanto, os anticorpos que vai criando com alguns parceiros europeus, nomeadamente com os países mais ricos, fazem prever que, ao contrário de alguns dos seus antecessores, a sua ambição será sobretudo nacional, mais do que internacional.
É, por isso, prematuro discutir a sua sucessão como líder socialista. Contudo, nos bastidores, António Costa vai preparando os prováveis sucessores. Entre Pedro Nuno Santos ou Fernando Medina, dois dos nomes mais falados, existe uma provável lealdade, admiração e até uma dívida com António Costa que lhe permite salvaguardar objetivos futuros, no caso de se concretizar a sucessão nos próximos anos.
Inteligente, perspicaz, audaz, mas igualmente calculista, com rasgos de oportunismo e muito ambicioso. Assim defino um político que deixa marcas. Difícil de combater, uma boa leitura política, um tático e estratega, desprendido de fortes matrizes ideológicas – ainda que as promova, por necessidade – que lhe permitem moldar-se a qualquer contexto. Ideologias e decisões políticas à parte, António Costa é o líder que uma parte da direita gostaria de ter e que, até hoje, ainda não conseguiu encontrar uma fórmula para o enfrentar, quanto mais para o derrotar.
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