António Costa está num ponto de interrogação

Que Costa vem aí? O primeiro-ministro que não teme decretar uma requisição civil? Ou o que promete uma viragem ideológica no SNS? Para já, só um Costa tático. E um ano perdido, a gerir circunstâncias.

1.
Esta semana, o primeiro-ministro socialista cercou os enfermeiros: decretou uma requisição civil, coisa que à esquerda não se via há muitos anos; mandou o PS propor um projeto de lei para proibir os financiamentos anónimos via crowdfunding (como se ele próprio não tivesse feito o mesmo quando era candidato à câmara de Lisboa). Numa entrevista à SIC, Costa deixou tudo claro: o Governo já foi ao limite das cedências, ao aceitar a criação de um escalão de enfermeiro-especialista. Mais não dá.

A discussão foi igual com os professores, lembra-se: Costa diz que não pode dar mais, ponto final. E se o Orçamento o obriga a negociar outra vez, ele responde: só nos sentamos quando eles cederem. Conclusão: centro volver.

2.
Esta semana, o primeiro-ministro socialista foi ao Parlamento dizer que era tempo de repor a ideologia na Lei de Bases da Saúde, explicando que a saúde não pode ceder aos interesses dos grupos privados. Antes, a sua ministra já tinha ordenado aos mesmos privados que lhe devolvessem mais de 30 milhões de euros dos acordos com a ADSE, relativos aos anos… 2016 e 2017 (mesmo que a ADSE seja, em si mesmo, um sistema sustentável). E já tinha atirado para depois das legislativas uma decisão sobre se os hospitais de Braga e Cascais ficam em PPP ou revertem definitivamente para o Estado.

Esta semana também, esse mesmo primeiro-ministro deu uma entrevista à SIC, dizendo que é “virtualmente impossível” o seu PS conseguir uma maioria absoluta, apelando a um novo entendimento com Bloco e PCP para a próxima legislativa. Conclusão: esquerda, volver.

3.
O que parece é que António Costa está num ponto de interrogação.

  • No Parlamento, tem presa há oito meses a nova legislação do trabalho, que a direita diz prejudicar as empresas e a esquerda diz prejudicar os trabalhadores. No debate quinzenal, Costa queixou-se que é tempo demais, mas a verdade é que sem saber com quem negoceia, o PS nada pode fazer.
  • No Parlamento, está também preso o pacto para a Justiça, aquele que o Presidente pediu ao setor e que o setor entregou aos partidos há mais de um ano. Até hoje, sem que o PS lhe tenha dado destino, nem à esquerda, nem à direita.
  • Assim como está presa no Parlamento, há seis meses, a nova lei de Bases da Saúde, aquela que Costa diz querer “ideológica”, mas que tanto pode ser de esquerda como de centro, conforme os olhos de quem a ler.
  • Já para não falar do célebre pacote das grandes obras públicas da próxima década, que tantas vezes foi prometido e só tarde chegou, mas que agora Rui Rio diz vir tarde para falar.
  • Nem para falar, também, do pacote da descentralização, que Rio abençoou mas cedo abandonou, deixando sem pai uma discussão que parece ser o preâmbulo de uma outra, a regionalização – que se perspetiva para a próxima legislatura.
  • Isto para não percorrermos as greves todas. A dos enfermeiros, a dos funcionários técnicos do SNS, a do Ministério Público, a dos funcionários judiciais, a dos guardas prisionais, o protesto dos polícias, o outro dos bombeiros. Para não falar dos funcionários do Fisco que, tal como os enfermeiros, se atrevem a dizer ao que vêm: isto é para manter até às eleições. É como quem diz: já sabemos que o ano está perdido, vamos pôr as cartas todas no processo eleitoral.

No fundo, já percebemos todos o mesmo. Daqui até outubro nada acontecerá em Portugal. Não há reformas, não há legislação, não há medidas. Na verdade, não há propriamente estratégia, senão a de fechar o ciclo. António Costa só tem isto para dizer: somos de esquerda nas ideias, de centro nas finanças públicas. Na verdade, só não se pode dizer que isto não é nada, porque é uma eficaz estratégia para ganhar eleições. E para deixar tudo, mesmo tudo, em aberto para depois de outubro. Centro, volver? Ou esquerda, volver?

4.
Dir-me-á o amigo leitor: mas não é isso que acontece sempre no ano de eleições? Termos um ano perdido, porque quem está no poder não quer perder votos?

E eu respondo: nunca tanto como agora. E nunca tanto como agora porque essa foi a opção de António Costa; e porque essa foi a escolha, também, de Marcelo Rebelo de Sousa.

  • Foi a escolha de António Costa porque, apesar de ter feito um acordo parlamentar com a esquerda para governar, decidiu deixar em aberto os termos da sua continuidade (ao contrário de Passos, ou de Barroso, por exemplo, que foram às eleições seguintes em coligação pré-eleitoral);
  • Foi a escolha de Marcelo, também, porque o Presidente de todos nós decidiu deixá-los a todos eles, os partidos, de mãos livres para fazerem o que quiserem depois de outubro. Foi o que fez, quando explicou que não iria exigir, ao contrário de Cavaco em 2015, qualquer acordo escrito para garantir uma maioria no Parlamento. Assim, desobrigou Jerónimo e Catarina de um compromisso estável; assim, deixou Costa entre um novo acordo com a esquerda e uma governação à Guterres – ora à esquerda, ora à direita, conforme as necessidades.

É por isso, caro leitor, que vamos ter um ano verdadeiramente perdido: estão todos em campanha, à espera do dia seguinte. Todos sabendo que Costa ganhará, mas sem saber com quem vai casar.

Costa, que é esperto e pragmático, também não nos dirá para onde vai. Ora pisca o olho à esquerda, ora pisca o olho à direita. Como quem diz: aqui não há ideologia, há lugar para todos. E onde prevalece a tática, pressentimos que não haverá programa. Na verdade, há mais de um ano que não há – acabou assim que se esgotaram os acordos da ‘geringonça’. Se desconfia de mim, veja o que disse Marcelo: “Os grandes debates ficaram um bocadinho entre parêntesis”.

Fazendo um esforço, talvez adivinhemos a interrogação de Costa: a próxima legislatura vai ter pior conjuntura do que a atual. Se o futuro é indefinido, o melhor é não escolher já.

5.
Pena é que, neste cenário, o Presidente não tivesse levado avante a sua ideia de marcar eleições legislativas para o dia das europeias. Sempre tínhamos poupado tempo ao país. E tantas escolhas que precisamos de fazer.

Notas soltas da semana

  • Costa vota Marcelo. Quando o primeiro-ministro socialista diz que o Presidente ganhará por larga margem se avançar com uma recandidatura, tira definitivamente espaço a qualquer candidato do PS. Na pior das hipóteses, não apresentará candidato. Na melhor, dar-lhe-à o seu voto.
  • Marcelo vota Marcelo. Quando vai ao bairro da Jamaica, o Presidente explica que não há filhos e enteados. A polícia não sabe que houve polícias a ir com ele?
  • Moreira vota Maduro: o presidente da Câmara do Porto deu uma conferência a atacar o Tribunal de Contas, chamando-lhe força de bloqueio por ter chumbado um projecto seu para a cidade. Diz que o TC pôs em causa a “soberania” dos municípios e que e violou o princípio da “separação de poderes”. O populismo começa assim.
  • Epur, si mouve: o país talvez continue, afinal, em convergência com a UE; o desemprego continuou a descer; o abandono escolar a diminuir; o Governo vai avançar, finalmente, com um estatuto para os cuidadores informais; Rui Rio contratou uma agência de comunicação e, de repente, parece ter acertado o tom. Talvez haja esperança.

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