As amnistias só beneficiam os infratores
As sucessivas amnistias, que enfermam sempre de enorme populismo, amputam a Justiça, pondo em causa as sentenças, libertando mais cedo os infratores e diminuindo a responsabilidade pelos danos.
No século XVIII, o barão Charles de Montesquieu, na sua famosíssima obra intitulada “Do Espírito das Leis” (De l’esprit des lois, Genève, 1748), desenvolveu a teoria sobre a separação de poderes, a qual influenciou, profundamente, a estrutura das democracias modernas, vincando, sem ambiguidades, a distinção entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Defendeu que tal distinção se afigurava essencial, a fim de evitar a concentração de poder numa única entidade, precavendo, desse modo, a tirania.
Cada um dos ditos poderes possui, naturalmente, funções claras, não interferindo nas atribuições dos demais. Esta ideia, que fazia então todo o sentido numa Europa das Luzes, hoje não passa de uma quimera, e ao que assistimos é à constante interferência do poder político no judicial, interferência essa que pode passar, pura e simplesmente, pela redução de verbas que impossibilitem a conclusão, em tempo útil, de processos em curso.
Essa Interferência do poder político no judicial vem igualmente, das habituais amnistias, ou seja, de medidas de clemência política geradoras de situações de arbitrariedade ou de atuação fora do quadro legal, violando a previsibilidade e a certeza exigidas pelo ordenamento jurídico, sendo contrárias, por conseguinte, aos princípios da legalidade e da segurança jurídica.
A legalidade implica não apenas a obediência à lei, mas também a ideia de que esta deve ser capaz de orientar o comportamento dos cidadãos. A legalidade atravessa todos os aspetos da vida quotidiana, com particular incidência nas decisões judiciais.
Os deputados têm aprovado leis de amnistia em efemérides, como as visitas a Portugal do Papa João Paulo II ou a eleição de Mário Soares como Presidente da República e, mais recentemente (19 de julho de 2023), aprovaram amnistias e perdões para crimes a propósito da Jornada Mundial da Juventude, ocorrida em Lisboa entre 1 e 6 de agosto últimos.
Em concreto, a lei publicada perdoa penas e amnistia infrações praticadas até 19 de junho por jovens entre os 16 e os 30 anos de idade, como segue: a) o perdão de um ano para todas as penas de prisão até oito anos (incluindo as executadas em regime de permanência na habitação); b) o perdão de penas de multa até 120 dias (a título principal ou em substituição de penas de prisão); c) o perdão das penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova; d) a amnistia de crimes cuja pena não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa; e) o perdão das sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo da coima aplicável não exceda 1.000 EUR; e f) a amnistia de infrações disciplinares (incluindo as militares) que não constituam crimes não amnistiados e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.
De fora ficaram a criminalidade violenta, e crimes de incêndio florestal, de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, a violência doméstica, os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, e alguns crimes económicos, designadamente tráfico de influências, peculato, participação fraudulenta em negócio, branqueamento e corrupção, além de crimes de tráfico de droga.
As sucessivas amnistias, que enfermam sempre de enorme populismo, amputam a Justiça, pondo em causa as sentenças, libertando mais cedo os infratores e diminuindo a responsabilidade pelos danos por eles causados. Embora a amnistia dos crimes não extinga a responsabilidade civil emergente dos factos amnistiados, conduz, forçosamente, a resultados de pouca ou de nula eficiência jurídica na reparação dos danos.
A dúvida é sempre a mesma: Existirá algum interesse coletivo em decisões políticas que impõem o esquecimento jurídico dos ilícitos beneficiando os infratores?
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